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Processo n.º 485/01 - 1ª Secção Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1.1. A. recorreu para o Plenário Geral do Tribunal de Contas da deliberação de
28 de Março de 2000 do Júri do concurso curricular para o recrutamento de juízes para o Tribunal de Contas – aberto por aviso publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Dezembro de 1999 –, que o excluíra do concurso. Por acórdão de
28 de Maio de 2001 o Plenário Geral do Tribunal de Contas julgou, porém, improcedente o recurso, mantendo a deliberação impugnada.
Inconformado, o interessado interpôs desse acórdão recurso para o Tribunal Constitucional, fundamentando-o nas alíneas b), g) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), visando impugnar a constitucionalidade da norma da alínea e) do artigo 19º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, que acusa de desconforme com os princípios consagrados nos artigos
13º, 47º, n.º 2, 268º, n.º 3, e 20º, n.º 4, da Constituição. Invoca ainda, com referência ao recurso baseado nas alíneas g) e i) da citada LTC, o Acórdão n.º
128/99 deste Tribunal Constitucional (in DR, II Série, de 6 de Julho de 1999).
Admitido, o recurso foi posteriormente alegado. As respectivas conclusões são do seguinte teor:
1. O Recorrente retira da deliberação do júri de 28 de Março de 2000 e do Acórdão no Tribunal de Contas n° 4/01 de 28 de Maio do Plenário Geral, já transitado em julgado, o reconhecimento do mérito do candidato e a comprovação como membro de Conselhos de Administração e de Conselhos Fiscais.
2. Resultando, como provado, o exercício de funções de Mandatário Geral Substituto da B., durante quatro anos e de Presidente do Conselho de Administração da C., durante três anos.
3. Detém, consequentemente, sete anos do exercício de cargos de
“direcção de empresas”, ao mais alto nível, isto é, de direcção cimeira, na interpretação de idêntico preceito, o do artigo 35º da Lei n° 86/89, que fez o Tribunal Constitucional no Ac. N° 129/97.
4. E que o júri do actual concurso estabelece no critério produzido como preliminar - critério H - II, acolhendo assim tal interpretação: “...o conceito de cargos de direcção de empresas engloba quer a direcção cimeira, quer a intermédia, nele não cabendo porém os cargos em órgãos de fiscalização - membro de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização.
5. O (mesmo) júri considera, ao invés do anteriormente, já não discutível, portanto, o exercício de quatro anos, um mês e cinco dias, como Mandatário Geral, como serviço em cargos de direcção de empresas (v. pág. 8 da Acta n° 3/03).
6. A não consideração no Ac. do T. Contas, em objecto nestes autos, também presente no critério preliminar H - II, dos cargos em órgãos de fiscalização, no conceito de direcção de empresas, não colhe o entendimento do Recorrente.
7. Com efeito, face ao requisito da al. e) da Lei Orgânica do T.C., a direcção cimeira corresponde a cargos em órgãos de administração (membro do Conselho), deste modo, computável para os dez anos de direcção de empresas.
8. Como a Lei equipara os cargos em órgãos de administração aos cargos em órgãos de fiscalização, o que bem se compreende, dada a competência material essencial do Tribunal de Contas e a “ratio legis” do normativo, temos que o exercício de cargos como membro de conselhos fiscais se integra no conceito de direcção (cimeira) de empresas.
9. Assim, se B (conselhos de adm.) = A (direcção cimeira de empresas) e se B = C (conselhos fiscais), logo C = A....
10. Neste entendimento, agora reconhecido pelo júri na fixação do critério preliminar da direcção cimeira e direcção intermédia, ao Recorrente tem que ser computado, porque provado, dezoito anos de direcção de empresas
(cimeira).
11. A exclusão dos órgãos de fiscalização promovida pelo júri e constante do Ac. recorrido, é pois ilógica e contraria a jurisprudência do Tribunal Constitucional (Ac. n° 129/97, como bem refere o Proc. Geral da República, no seu Termo de Vista, presente nestes autos de recurso.
12. Diz que não é curial desvalorizar-se um requisito de excelência perante cargos de direcção de menor porte ou importância funcional.
13. Conclui o Recorrente pela interpretação que julga, também, dever ser acolhida pelo Tribunal Constitucional - a de que, a referida norma, ao exigir o exercício de três anos, ao mais alto nível, isto é, de direcção cimeira, na terminologia fixada, só pode significar três anos dos dez anos de direcção de empresas, e não 10 + 3.
14. Não se pode exigir dez anos de direcção de empresas, que inclui a cimeira, isto é, a administração de empresas (conselhos), e depois, considerar a exigência, de novo, de mais três anos de direcção cimeira (conselhos) a acrescer aos dez, onde ela já está incluída, se não por absurdo.
15. Mais a mais, quando se densifica, como se viu, o conceito de direcção de empresas a abarcar a direcção intermédia, como faz o júri do actual concurso e se reflecte nos Acórdãos referidos do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas ora recorrido.
16. Mas, também, ao nível da direcção intermédia, considera o Recorrente de ter, pelo menos, não abarcando os Conselhos Fiscais, mais cinco anos e seis meses como Assessor Técnico da Direcção do Contencioso do D., e um ano e seis meses como membro da Comissão Executiva, de que requereu junção por certidão aos autos, pelo “paralelismo” com o cargo de Adjunto do Director dos Serviços Comerciais para o Planeamento, do outro candidato, ora Recorrido n° 2, e ainda, cerca de um ano como Director do E. (doc. junto aos autos e ora em anexo ).
17. O Recorrente considera, por outro lado, que o fundamento da deliberação do júri, constante do Ac. do Tribunal de Contas Plenário, ora em recurso, já transitado em julgado, e “essa foi a decisão”, se reportou apenas ao
(não) preenchimento de dez anos de serviço em cargos de direcção de empresas (v. pág. 17 do referido Ac. )
18. Não qualquer outro fundamento, sob pena de o Recorrente ter direito ao recurso sobre todos os requisitos sobre os quais o Tribunal de Contas viesse a considerar “a posteriori” não preenchido.
19. Não discutiu, nem o júri, nem o Tribunal de Contas, dando como comprovado, o requisito do reconhecido mérito, que diga-se abrange-se não só o mérito jurídico, mas, e mais importante, o mérito decorrente do exercício de cargos de gestão ou de fiscalização (v. voto de vencido do Conselheiro Presidente do Tribunal de Contas e do júri).
20. Pois caso entendesse que ele não se verificava (como bem refere o Proc. Geral da República no Termo de Vista), devia-o ter feito expressa e fundamentadamente, até porque é o primeiro requisito a ser apreciado, logicamente, e não o segundo.
21. A desigualdade no tratamento das duas candidaturas e na apreciação curricular, como comprovada, seja a propósito do reconhecido mérito, seja a propósito do requisito da direcção de empresas, motivaram a impugnação da deliberação de admissão e graduação do ora Recorrido 2º.
22. A falta de fundamentação arguida (como bem refere o Proc. Geral da República) abrange, igualmente, os dois requisitos citados no ponto anterior.
1.2. Na sequência da apresentação das conclusões da alegação do recorrente foi proferido despacho nos seguintes termos:
“Equacionando-se agora a hipótese de não poder tomar-se conhecimento do recurso, em virtude de, face às conclusões apresentadas, se poder concluir que o Recorrente abandonou a questão de constitucionalidade, passando a discutir a decisão, em si mesma considerada e seus fundamentos, e que não se verificam os pressupostos do recurso relativamente aos fundamentos das alíneas g) e i) do n.
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por não ocorrer identidade entre a interpretação/dimensão normativa apreciada no Acórdão n.º 128/99 e a que está em causa nestes autos, entendo útil ouvir as Partes sobre este assunto. Prazo: dez dias.”
A Autoridade recorrida respondeu; é de parecer que o recorrente não tratou da questão de inconstitucionalidade suscitada no requerimento de interposição do recurso, apenas debatendo a conformidade constitucional da decisão recorrida. Por essa razão, não deveria – em seu entender – conhecer-se do recurso.
Por sua vez, e quanto ao que agora interessa, o recorrente pronunciou-se do seguinte modo:
[...] II
1. Compulsando o teor e os efeitos potencialmente decorrentes do Despacho, fica o Recorrente em situação de manifesta perplexidade, questionando-se sobre o alcance e intenção prático-normativa do Despacho em análise.
2. Ora, não querendo conhecer o Tribunal Constitucional do Recurso e seus fundamentos, conforme peticionado, alegado e concluído, mantém-se obscura a interpretação sobre o alcance e conteúdo prático-normativo dos requisitos postos em causa quanto à Fiscalização e Administração e respectivo modo de cômputo do tempo, ferindo sempre os princípios constitucionais já equacionados.
3. De outra parte, assim sendo, ficaria por analisar, face ao Despacho de V. Exa, a decisão de exclusão do Recorrente, em si mesmo, e seus fundamentos, não logrando o Recorrente visualizar e entender quais os efeitos constitucionais de eventual apreciação daí decorrente e o alcance da mesma.
4. Diz isto, o Recorrente, numa perspectiva de aclaramento do vertido no douto Despacho.
5. Até porque, sem prejuízo da independência dos concursos em objecto importará dar a conhecer a V. Exa o Despacho de Admissão do Recurso do Candidato, ora Recorrente, neste último Concurso (Concurso aberto pelo Aviso n°
12510/2002), publicado no Diário da República II Série de 25 de Novembro de
2002, ao Plenário do Tribunal de Contas.
6. Isto porque, exactamente, importará que o Tribunal Constitucional fixe a interpretação constitucional definitiva da alínea e) do n° 1 do artigo 19° da Lei n° 98/97, de 26 de Agosto e seus requisitos, ao caso vertente.
7. Porque, obviamente, em caso de não admissão do Candidato, ora Recorrente, confrontar-se, certamente, o Tribunal Constitucional, de novo, com Recurso, com o mesmo conteúdo e dimensão prático-normativa do presente, ora em causa.
8. A manifestação do Tribunal Constitucional como infra referido, no Acórdão 128/99, invocada como conflito de constitucionalidade, pelo ora Recorrente e pelo Procurador-Geral Adjunto, junto do Tribunal de Contas, ao relevar a fiscalização de empresas como equivalente à Administração de Empresas
(ao caso, Conselho de Gerência), mais não faz do que dar razão ao Recorrente, justificando, assim, a apreciação do Recurso, ao abrigo da alínea g) e i), in fine, do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional.
9. Até porque a não adopção da solução prático-normativa daí derivada, em sede de competência material essencial do Tribunal de Contas, implicou a exclusão do Recorrente no Acórdão de que se interpôs Recurso, ora em apreciação.
III
1. O Candidato reproduz na íntegra a Petição Inicial e as respectivas Alegações e Conclusões.
2. A interpretação desenvolvida no âmbito das Alegações e Conclusões é complementar da Petição e estas evidenciam a violação do princípio da Igualdade, do direito de acesso à Função Pública, do dever de fundamentação, do dever de celeridade, do princípio do inquisitório e do princípio da não discriminação.
3. Por outro lado, quando o Candidato se concentra na questão interpretativa ataca a decisão em si mesma e seus fundamentos, querendo evidenciar a violação de princípios resultantes daquela interpretação, parecendo descabido, aqui, nas Alegações e Conclusões, repetir a Petição Inicial.
4. Porquanto, a interpretação de uma norma em determinado sentido, como o fez o Tribunal de Contas no Acórdão em causa, conduz à violação dos princípios constitucionais enunciados no item 1.
5. Ao cumprir o Despacho de V. Ex.a - completar as alegações - entendeu o Recorrente não reproduzir; novamente, o peticionado no requerimento de interposição do recurso, cujo objecto é, em plenitude, a inconstitucionalidade da decisão do Tribunal de Contas, vertida no Acórdão.
6. Isto é, de que o ora Recorrente, não possui 10 anos de serviço em cargos de Direcção de Empresas, mas (mais de) 7 anos, sendo este o fundamento da sua Deliberação.
7. Sendo esta interpretação contrária à letra e ao espírito da norma constante da alínea e) do n° 1 do artigo 19° da Lei n° 98/97, de 26 de Agosto, como se demonstrou ao longo dos recursos interpostos, e os efeitos desta interpretação considerarem a violação dos princípios constitucionais elencados na petição inicial do Recurso ora em causa. Assim, o ora Recorrente, foca a sua atenção na questão interpretativa, uma vez que desta resultam os efeitos que conduzem à violação dos princípios constitucionais enunciados.
8. Com efeito, esta interpretação da norma, cuja aplicação conduz à produção de efeitos contrários aos princípios constitucionais, originou uma decisão contrária aos direitos do Recorrente.
9. Assim, nesta fase, a preocupação do Recorrente foi centrar a sua atenção na interpretação da norma (alínea e) do n° 1 do artigo 19° da Lei n° 98/97, de
26 de Agosto).
10. Deste modo, se a posição interpretativa for no sentido da adoptada pelo Acórdão do Tribunal de Contas, esta conduzirá à violação dos princípios constitucionais supra-indicados na petição inicial.
11. Se, pelo contrário, se adoptar a interpretação expendida pelo Recorrente, esta posição, como estará seguro, não conduzirá à violação dos mesmos princípios constitucionais.
12. O que, na prática, equivale a dizer que o Recorrente ao centrar-se na questão interpretativa, como o fez, não está a afastar-se da questão da constitucionalidade, como aventado, mas, ao invés, a centrar-se na sua essência, porquanto a decisão da inconstitucionalidade decorre dessa mesma questão interpretativa e dos seus efeitos em concreto.
13. Ora, quanto à afirmação, constante do Despacho, de que se não verificam os pressupostos do recurso relativamente aos fundamentos das alíneas g) e i) do n°
1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, por não ocorrer a identidade entre a interpretação/dimensão normativa apreciada no Acórdão n° 128/99, não podendo, assim, tomar conhecimento do recurso, por esta banda, refira-se que, conforme consta na parte III do item 14 das alegações (entrada n° 2692, de
31.10.2001), e da petição inicial- item 4, sob a epígrafe “Do conflito de constitucionalidade” e nos itens 33, 34 e 35, note-se que a equiparação que no Acórdão se faz entre Administração e Fiscalização, no quadro da competência material essencial do Tribunal de Contas é totalmente consentânea com a detenção pelo Recorrente, ora recorrente, dos requisitos exigidos pela norma constante da alínea e) do n° 1 do artigo 19° da Lei n° 98/97, de 26 de Agosto.
14. Dito de outra maneira, detém o Recorrente a “direcção cimeira” de empresas de módulo temporal, face ao Acórdão do Tribunal de Contas, ora objecto de recurso, de mais de 18 anos.
15. Independentemente e, sem prejuízo, da interpretação que vier a ser proferida por esse douto Tribunal sobre o modo do cômputo de tempo, contida na norma da alínea e) do n° 1 do artigo 19° da Lei n° 98/97, de 26 de Agosto, detém o Recorrente mais de 10 anos de Direcção de Empresas, sendo todos ao mais alto nível, passe a redundância.
16. Saliente-se, como se fez nos fundamentos da petição inicial, que para além da violação do princípio da Igualdade/Não Discriminação e do direito de acesso à Função Pública, foram, também, violados os princípios da celeridade, do inquisitório e do dever de fundamentação, que não foram observados pelo Tribunal de Contas na condução deste processo, constituindo igualmente violação da Constituição da República Portuguesa.”
2.1. De acordo com o respectivo requerimento, o presente recurso é interposto com fundamento nas alíneas b), g) e i) do n. 1 do artigo 70º da LTC, nele se pretendendo a apreciação da constitucionalidade da norma da alínea e) do artigo
19º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), com a seguinte redacção:
Artigo 19º Requisitos de provimento
1 – Só podem apresentar-se ao concurso curricular os indivíduos com idade superior a 35 anos que, para além dos requisitos gerais estabelecidos na lei para a nomeação dos funcionários do Estado sejam:
(...) e) Mestres ou licenciados em Direito, Economia, Finanças ou Organização e Gestão de Empresas de reconhecido mérito com pelo menos 10 anos de serviço em cargos de direcção de empresas e 3 como membro de conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização.
(...)”
Impõe-se, previamente, delimitar o recurso e apurar da verificação dos respectivos pressupostos.
2.2. E começa-se por afastar desde logo o recurso fundado na alínea i) do n.1 do artigo 70º da LTC, cuja invocação decorre de lapso manifesto do recorrente. Com efeito, este recurso tem por objecto – em qualquer das suas vertentes – uma norma legal conflituante com convenção internacional. Ora é patente que no caso em apreço se não coloca esta hipótese; não há a mínima referência a qualquer convenção internacional porventura relacionada com o assunto em discussão.
Cumpre, por isso, rejeitar o recurso fundado nesta alínea.
2.3. O Tribunal não pode, igualmente, conhecer do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC.
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas – como é o caso – destina-se a que o Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade durante o processo.
É o que resulta da própria Constituição (artigo 280º n. 1 alínea b) CR), e da lei (artigo 70º n. 1 alínea b) LTC), e tem sido repetidamente afirmado na jurisprudência (v.g., Acórdãos 612/94, 634/94 e 20/96 in DR, II Série, de
11JAN95, 31JAN95 e 15MAI96), ao exigir que a questão seja colocada perante o tribunal recorrido por forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a apreciar. Certo é, porém, que a questão nunca foi suscitada perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a conhecer dela. Para além da invocação da aplicação da norma já alegadamente julgada inconstitucional, matéria que nitidamente tem apenas a ver com o recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n. 1 do artigo 70º LTCA, a referência reiteradamente invocada reporta-se, pelo contrário, ao resultado decisório da aplicação feita da norma em causa (mais concretamente, a não verificação do requisito relativo aos 10 anos de serviço em cargos de direcção de empresas exigido pela alínea e) do n. 1 do artigo 19º da LOTC).
Para além disso, é ainda bem patente que na alegação do recurso interposto para este Tribunal nada se diz que possa concretizar a abordagem da questão de inconstitucionalidade da norma impugnada, limitando-se o recorrente a atacar a decisão recorrida que, em seu entender, teria feito uma errada interpretação dessa norma.
Aliás, é o próprio que reconhece, no seu último requerimento, o seguinte:
“entendeu o recorrente não reproduzir, novamente, o peticionado no requerimento de interposição de recurso, cujo objecto é, em plenitude, a inconstitucionalidade da decisão do Tribunal de Contas, vertida no acórdão recorrido” (cfr. ponto III.5.).
Na verdade, o que no recurso se questiona é a interpretação e aplicação da norma ao caso concreto e a consequente decisão de excluir o recorrente do concurso
“alegando que ele não comprovou possuir 10 anos de serviço em cargos de direcção de empresas, tal como o exige a alínea e) do n. 1 do artigo 19º da LOTC”.
Em suma, a conclusão de que, para além de não haver suscitado de modo adequado a questão de inconstitucionalidade normativa, o recorrente não tratou, na sua alegação, da matéria relativa ao recurso interposto pelo preceito em referência, conduz a que se deva rejeitar, por inverificação dos respectivos pressupostos, o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC.
2.4. Decorre da análise da alegação de recurso e, bem assim, da resposta dada ao despacho convite para se pronunciar quanto à questão suscitada oficiosamente, que o recorrente não pretende invocar a inconstitucionalidade da norma da alínea e) do artigo 19º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, mas tão somente a interpretação e aplicação dessa mesma norma ao caso concreto por forma que entende violadora do Acórdão 128/99 do Tribunal Constitucional (in DR, II Série, de 6 de Julho de 1999), aresto que julgou inconstitucional a norma da alínea c) do artigo 36º da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, cujo conteúdo se assemelha ao da norma aqui impugnada.
Vejamos, então, se existe fundamento bastante para o recurso previsto na alínea g) do n. 1 do artigo 70º da LTC, que obrigatoriamente deverá decorrer da aplicação, pela decisão recorrida, de norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
No Acórdão n.º 128/99 julgou-se inconstitucional, por violação dos artigos 13º e
47º, n.º 2, da Constituição, “a segunda parte da norma do artigo 36º, alínea c), da Lei n.º 86/89 de 8 de Setembro, na medida em que aí, na candidatura a juiz do Tribunal de Contas, em concurso curricular, não se considera o exercício durante três anos de funções de gestão em sociedades por quotas”.
Nesse aresto descreveu-se a questão do seguinte modo:
«O recorrente, com invocação de “Grau de Mestre em Gestão de Empresas”, apresentou-se ao concurso em causa, mas dele foi excluído por decisão do júri com fundamento de “não preencher os requisitos cumulativos da alínea c) do artigo 36º da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, pela qual concorre, porque tendo embora exercido durante 10 anos funções de direcção de empresas apenas exerceu esta direcção ao mais alto nível durante seis meses, ao invés dos três anos exigidos na parte final da referida alínea”, sendo que esta decisão foi mantida no acórdão recorrido, por não merecer “qualquer censura” e estar “em perfeita conformidade com o Direito aplicável” (e foi mantida nos exactos termos do seu inicial enunciado). Está, pois, em questão aquela norma do artigo 36º, c), da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro. A controvérsia quanto à interpretação com que essa norma foi aplicada no acórdão recorrido pode assim sintetizar-se:
- para o acórdão, “o legislador exigiu uma efectiva experiência ao nível da direcção cimeira e gestão de empresas que pratiquem um conjunto de operações financeiras no mercado financeiro, que só as empresas que possuem conselhos de administração e de gestão estão em condições de assegurar”, e, por isso, a exigência dos três anos “teve em vista, de forma clara e inequívoca, o exercício de funções de direcção cimeira em empresas que tenham como órgão de gestão ou conselho de administração ou conselho de gestão, ou seja, empresas públicas, instituições de crédito e companhias de seguro nacionalizadas, sociedades anónimas de capitais públicos, sociedades anónimas de economia mista, participadas ou controladas, sociedades anónimas em geral com estrutura monista
(conselho de administração) ou estrutura dualista (direcção e conselho geral) desde que o órgão de gestão seja um órgão de direcção colegial (direcção ou conselho de administração) ficando porém excluídas as funções de gestão em sociedades anónimas com administrador ou director único ou seja sociedades anónimas com capital social inferior a 20 000 contos (cfr. artigo 390º, 2 e artigo 424º do Código das Sociedades Comerciais) e, bem assim, as sociedades por quotas, em comandita ou em nome colectivo” ('Daí que o legislador tenha privilegiado de forma especial o exercício de funções como membro do conselho de administração ou de gestão de empresas com uma estrutura financeira de capital social e patrimonial que lhes permita assegurar uma visão completa e integral da totalidade das funções de direcção cimeira de empresas ao mais alto nível, designadamente ao nível do mercado financeiro que as funções de gerente de uma sociedade por quotas em nome colectivo e em comandita não lhe permite assegurar”
- insiste ainda o acórdão).
- (...)»
Apreciando a questão à luz do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, e reflectido no subprincípio da igualdade de acesso à função pública constante do artigo 47º, n. 2 da Constituição, entendeu-se no Acórdão n.º 128/99, que careceria de fundamento material bastante a interpretação normativa a que aderira o acórdão então recorrido quanto à norma da alínea c) do artigo 36º, “quer porque tratou com privilégio e de forma especial o exercício de funções de direcção em determinado tipo de sociedades comerciais, discriminando os demais tipos, quer porque acabou por distinguir tais funções das de membro de conselhos fiscais, ou de comissões de fiscalização, quando estes conselhos podem existir e funcionar nos mesmos termos numa sociedade por quotas.”
O recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como uniformemente tem afirmado este Tribunal, pressupõe que haja sido efectivamente aplicada na decisão recorrida uma norma anteriormente julgada inconstitucional. Se, como é o caso, uma norma apenas foi julgada inconstitucional numa sua “dimensão” de que “não houve efectiva aplicação” (Ac. n.º 94/95 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II, de 19 de Abril de 1995), o recurso não é admissível.
Deve ter-se em conta que a norma impugnada no aludido Acórdão n.º 128/99 não é a mesma que está em causa no acórdão recorrido; aquela reportava-se à alínea c) do artigo 36º da Lei 86/98 de 8 de Setembro, esta reporta-se à alínea e) do n. 1 do artigo 19º da Lei 98/97 de 26 de Agosto.
O certo é que nos casos considerados no Acórdão n.º 128/99 e no presente é questionada uma dimensão normativa claramente diversa; no primeiro caso, a questão consistia em saber se o exercício de determinadas funções em sociedades comerciais por quotas era relevante para a matéria em causa; no caso presente, a questão reside em saber se o exercício de funções em conselhos fiscais de empresas comerciais relevam para o efeito pretendido. Assim, mesmo que a norma da alínea e) do artigo 19º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, em causa no aresto ora recorrido, corresponda, com conteúdo muito semelhante, à norma da alínea c) do artigo 36º da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, visada no Acórdão 128/99, certo é que a pronúncia do Tribunal recaiu em dimensões normativas diversas, ou seja, em normas diferentes, como aliás é patente no seguinte trecho da decisão ora recorrida:
«[...]
4- Abordemos, agora, o outro aspecto da decisão do Júri em causa, relativamente
à conclusão de que o recorrente não teria comprovado possuir 10 anos de serviço em cargos de direcção de empresas. Com efeito, pretende o recorrente que dos factos comprovados no processo relativamente à sua carreira profissional, a conclusão a extrair seria precisamente a contrária, ou seja, que ele teria demonstrado efectivamente possuir os exigidos 10 anos de serviço em cargos de direcção. Será, no entanto assim? Segundo dispõe o já várias vezes citado art.º 19° n° 1 al. e) da lei n° 98/97, é exigido aos candidatos mestres ou licenciados em Direito, Economia, Finanças ou Organização e Gestão de Empresas que, para além do reconhecido mérito, comprovem ter tido, pelo menos, 10 anos de serviço em cargos de direcção de empresas e 3 como membros de conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização. O recorrente comprova
- ter exercido durante quatro anos as funções de mandatário geral substituto de uma companhia de seguros (B.);
- ter sido, durante três anos presidente do conselho de administração da empresa C.;
- ter sido durante onze anos presidente do conselho fiscal também de uma companhia de seguros. Será isto, no entanto, suficiente para se poder concluir estar comprovado ter ele exercido durante 10 anos cargos de direcção de empresas ? Não pondo em discussão - embora discutível - por disso não haver necessidade, assim poder ser considerado o exercício do cargo de mandatário geral substituto, para que, no caso, fosse possível concluir-se pelo exercício pelo recorrente de cargos de direcção de empresas durante 10 anos, importaria incluir no conceito de “direcção de empresas” o exercício do cargo de presidente de um conselho fiscal.
É o que o recorrente pretende ver reconhecido, invocando, para tanto, o art.º
278° do Código das Sociedades Comerciais. Mas não tem razão. Dispõe o aludido artigo o seguinte:
Art.º 278°
(Estrutura da administração e da fiscalização)
1. A administração e a fiscalização da sociedade podem ser estruturadas segundo uma de duas modalidades: a) Conselho de administração e Conselho fiscal; b) Direcção, Conselho geral e revisor oficial de contas.
2. Nos casos previstos na lei, em vez de conselho de administração ou de direcção poderá haver um só administrador ou director e em vez de conselho fiscal poderá haver um fiscal único.
3. (...).” Convirá também referir aqui o que dispõe o mesmo Código relativamente às sociedades por quotas. Diz o n° 1 do art.º 252° (Composição da gerência): “1 - A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena. (...)” E o art.º 262° (Fiscalização) : “1 - O contrato de sociedade pode determinar que a sociedade tenha um conselho fiscal, que se rege pelo disposto a esse respeito para as sociedades anónimas. 2 - As sociedades que não tiverem conselho fiscal devem designar um revisor oficial de contas para procederem à revisão legal
(...).” Vê-se, assim, que a lei expressamente estabelece a distinção entre administração e representação, por um lado, e fiscalização por outro. A administração e a representação competem ao conselho de administração ou à direcção e ao conselho geral (art.º 252° n° 1 e 278° nº1 ), enquanto que ao conselho fiscal ou aos revisores oficiais de contas cabem apenas funções de fiscalização ( art.ºs 262° n° 1 e 2, 263° n° 6 e 413° e segs.). Como é óbvio, o conceito de “direcção de empresas” engloba os órgãos com poderes de administração e de representação. Mas nele já não cabem os órgãos de fiscalização.
É que “direcção” implica poderes de decisão no sentido de serem atingidos os objectivos pretendidos com a criação de empresas, com respeito pelas deliberações dos sócios, mas não os poderes de vigiar e fiscalizar as decisões tomadas no sentido de se verificar se aquelas decisões respeitaram esses objectivos e foram conformes às disposições legais aplicáveis. Assim sendo, importa reconhecer que o exercício de funções em conselhos fiscais não é susceptível de ser qualificado como de “serviço em cargos de direcção de empresas”. E nem se procure sustentar a posição do recorrente invocando a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n° 128/99, processo n° 140/97. Em primeiro lugar, por ser diversa a questão ali suscitada, que se referia ao facto de o Tribunal de Contas ter unicamente admitido como relevante para o cômputo do prazo adicional de 3 anos previsto no art.º 36° al. c) da Lei n°
86/89, de 8 de Setembro (disposição a que corresponde, actualmente a al. e) do n° 1 do art.º 19° da Lei n° 98/97) o ter sido membro do Conselho de Administração, excluindo assim o exercício de qualquer outro cargo de administração de sociedades comerciais, no caso o cargo de gerentes de sociedades por quotas. Em segundo lugar, porque o referido acórdão ao estabelecer uma comparação entre o cargo de gerente e o de membro do Conselho Fiscal, o fez unicamente para salientar as incongruências que resultariam do facto de o exercício de 3 anos como membro do conselho fiscal de uma sociedade por quotas integrar a apontada exigência legal, mas não assim o exercício durante esse mesmo espaço de tempo das funções de gerente duma sociedade do mesmo tipo. Aquele acórdão aborda e resolve, assim, questões substancialmente diferentes daquelas que são suscitadas no presente recurso. Tendo, pois, em conta que o recorrente, para além de ter comprovado ter exercido as funções de Presidente do Conselho Fiscal durante 11 anos, apenas comprova ter sido durante 3 anos Presidente do Conselho de Administração e durante 4 anos mandatário geral substituto de uma Companhia de Seguros - funções estas que, sublinhe-se aqui, não seriam de aceitar como de 'direcção de empresas' - uma conclusão se impõe: a de que ele não comprovou ter exercido durante 10 anos cargos de direcção de empresas, um dos requisitos legalmente imposto para, ao abrigo da alínea e) do n° 1 do art.º 19° da Lei n° 98/97, se poder apresentar ao concurso curricular para o recrutamento de Juízes do Tribunal de Contas. Bem andou, por isso, o Júri do concurso ao ter decidido a sua exclusão como candidato ao mesmo.
[...]»
São, em suma, diversas as normas em confronto, razão pela qual não é possível dar por verificado que a decisão recorrida fez aplicação de norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Deste modo, também não ocorre o pressuposto do recurso previsto na alínea g) do n. 1 do artigo 70º da LTC.
3. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 unidades de conta.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida