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Processo n.º 652/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. e B., reclamantes nos presentes autos em que é reclamado o Ministério da Defesa Nacional, intentaram ação administrativa especial junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, visando a defesa de diversos direitos retributivos. Por decisão de 1 de abril de 2009 (fls. 184 e seguintes), o Tribunal julgou procedente a exceção de caducidade do direito de ação, ao abrigo do disposto nos artigos 58.º, n.º 2, alínea a) e 89.º, n.º 1, alínea h) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), absolvendo o réu do pedido.
Os autores recorreram desta decisão mas foi-lhes negado provimento por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 23 de fevereiro de 2012 (fls. 261 e seguintes). Inconformados, tentaram interpor recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do artigo 150.º, n.º 1 do CPTA, o qual, no entanto, não foi admitido, por acórdão de 12 de junho de 2012 (fls. 332 e seguintes), pelo facto de não se encontrarem preenchidos os pressupostos de admissão do mesmo.
Notificados deste acórdão, os autores apresentaram requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (fls. 2 e seguintes) desse mesmo aresto, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), pedindo que “seja declarada a inconstitucionalidade do (…) identificado Despacho conjunto de 12 de dezembro de 2001, por violação do princípio constitucional de igualdade (artº 80.º da LOFPTC); ou, ainda que, se rejeitando a inconstitucionalidade da norma, considerando-a constitucional, deverá esta ficar condicionada a uma determinada interpretação (interpretação adequada ou conforme à Constituição) (artº 80º nº 3 da LOFPTC).”
2. O recurso não foi admitido no Tribunal a quo, por despacho de fls. 345-346, com os seguintes fundamentos:
“(…) [O]s preceitos invocados pelo recorrente e por si tidos por inconstitucionais não constituíram fundamento normativo ou ratio decidendi do decidido no dito aresto relativamente ao recurso de revista não admitido, sendo que tal não admissão é baseada apenas no artigo 150.º do CPTA, não equivalendo a qualquer coonestação no decidido nas instâncias. Ora, não tendo o recorrente questionado a constitucionalidade do citado artigo 150º, é patente não ser de admitir o recurso agora interposto para o Tribunal Constitucional.”
É deste despacho que vem deduzida a presente reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4 da LTC, que se transcreve no que é relevante para os presentes autos:
“ (…) À cautela, expressamente invocou a inconstitucionalidade, por manifesta violação do artigo 13° da CRP, do Despacho conjunto sem número de 12 de dezembro de 2001. 11. Perante este recurso, o Supremo Tribunal Administrativo, decidiu não admitir o recurso com os seguintes fundamentos: Sucede que, contra o que sustentam, os recorrentes, não é possível surpreender no Acórdão recorrido um qualquer erro grosseiro, sendo que a tese nele explanada é uma das soluções juridicamente plausíveis, situando-se na zona da discussão possível sobre a controvérsia de fundo, não se podendo, por isso ancorar a admissão do recurso numa hipotética necessidade de melhor aplicação do direito. 12. Com todo o respeito que tal decisão deve merecer, não pode deixar de se concluir que esta decisão contem uma decisão de mérito, a de não censurabilidade, das decisões recorridas, e por isso, se decide a final, não admitir o recurso, tornado pois as decisões recorridas definitivas e irrecorríveis. 13. Acresce que os reclamantes, apresentaram um pedido concreto e expresso sobre a inconstitucionalidade de um diploma legal, sobre que a decisão do STA nem sequer se pronunciou. II - DO INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE 14. Atenta esta decisão do STA, o reclamante interpôs o competente recurso para o Tribunal Constitucional, invocando expressamente a normas constitucionais violadas, dando cumprimento ao disposto no artigo 70°, 72° e 75° da Lei Orgânica Sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional. Aliás, se o requerimento de interposição do recurso não indicasse algum dos elementos previstos no artigo 75°, sempre o reclamante deveria ter sido convidado a prestar essa indicação no prazo de 10 dias (artigo 75° n° 5 da LOFPTC) 15. Por despacho de fls. 345, e com o fundamento de não tendo o recorrente questionado a constitucionalidade do citado artigo 150° do CPTA é portanto não ser de admitir o recurso agora interposto para o Tribunal Constitucional. 16. Salvo o devido respeito, não é a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do artigo 150° do CPTA que está em crise nos autos. 17. Para que perante um juiz se possa levantar a questão da inconstitucionalidade de uma norma jurídica é necessário que a questão suscitada tem de ser uma questão de inconstitucionalidade, isto é, tem de colocar-se o problema da conformidade ou desconformidade de uma norma com a constituição. No caso em concreto, estamos perante a exclusão de pessoal militar que foi destacado para exercer uma atividade diplomática, sendo que a base do dissídio assenta na discriminação do pessoal militar relativamente ao pessoal dos serviços externos do MNE e qualquer outro pessoal colocado no estrangeiro. Esta discriminação, em flagrante e clamorosa violação do princípio da igualdade, constitui e não pode deixar de constituir um problema de conformidade ou desconformidade do Despacho Conjunto com a Constituição. 18. A Constituição não restringe, antes pelo contrário, o recurso de inconstitucionalidade. Por isso, são sempre admissíveis recursos de inconstitucionalidade. Exige-se que a questão da inconstitucionalidade seja decisiva para a decisão do tribunal, ou seja, que a decisão judicial não possa ser emitida independentemente da resolução do problema prévio da inconstitucionalidade da norma ou normas a aplicar ao caso concreto. Esta relevância da questão prévia da inconstitucionalidade significa, em termos práticos, o seguinte: – que a norma (neste caso o Despacho Conjunto) tem pertinência na causa, de forma a poder dizer-se que da sua aplicação depende a satisfação da pretensão deduzida em juízo (o que se solicita a um órgão jurisdicional tem de fundamentar-se na norma em questão); – que a norma tem pertinência com a causa, de tal modo que a sua aplicação preclude a possibilidade do deferimento da pretensão intentada em juízo. Os tribunais têm acesso direto à Constituição, aplicando ou desaplicando normas cuja constitucionalidade foi impugnada no feito submetido a decisão judicial. Sendo assim, o juiz a quo não se limita a conhecer do incidente da inconstitucionalidade e a reenvia-lo para o tribunal Constitucional; decide o caso, interpretando a norma a aplicar como constitucional ou inconstitucional, independentemente do recurso posterior, restrito à questão da inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional. A solução contrária conduziria, em todo o seu rigor, a eliminar a fiscalização concreta do ordenamento constitucional português (In Direito Constitucional 3.ª Edição José Gomes Canotilho pp 753) 19. A questão da inconstitucionalidade deve pois ter por objeto normas que tenham de ser aplicadas na causa (fiscalização concreta), que não é o caso do artigo 150° do CPTA, mas sim a questão de saber se o referido Despacho conjunto discrimina ou não o pessoal militar de qualquer outro pessoal colocado no estrangeiro. 20. Acresce ainda que o incidente da inconstitucionalidade foi interposto no tribunal a quo de forma expressa, autónoma e à cautela, tratando este pedido autónomo de um pedido de fiscalização concreta. E a este respeito, o tribunal A quo não proferiu sequer qualquer decisão, a não ser de forma implícita, ao declarar que as decisões recorridas não merecem qualquer censurabilidade, não obstante de admitir que a solução das instâncias ser uma das soluções possíveis, situando na zona de discussão possível sobre a controvérsia de fundo. Ou seja, o próprio tribunal admite que a questão de fundo poderá ter outras soluções, designadamente, acrescente-se agora, a da questão da inconstitucionalidade, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. 21. Como é sabido, no Estado Democrático, o Estado e a Constituição Portuguesa não abrem mão em caso algum da garantia, a todos assegurada, do acesso à justiça. Não pode invocar-se, em contrário, uma norma processual que apenas pretende dar cobertura a uma maior e melhor racionalização de recursos aos Supremos Tribunais, a esmagadora maioria das vezes por razões meramente dilatórias. Quando a efetivação dessa garantia, como é o caso, requer o acesso ao Tribunal Constitucional, o único meio de evitar o resultado constitucionalmente inaceitável, de denegação da justiça, é o Tribunal Constitucional a reassumir a competência do tribunal judicial que violou o princípio fundamental do direito de acesso à justiça, que, aliás, neste caso se impõe, pois que, não se compreende como é que, após decorridos 38 anos, os militares ainda hoje são discriminados na sociedade portuguesa, como é o caso dos autos. E de duas uma: ou o dito Despacho Conjunto é inconstitucional por violar o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, ou a interpretação da administração e, neste caso, também dos tribunais, não se conforma com a Constituição. Atento ao exposto, deve, pois, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional deve ser admitido, devendo a presente reclamação ser deferida, e, consequentemente, o douto despacho de que se reclama ser revogado por outro que ordene o prosseguimento do recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da lei. Atento que a questão da inconstitucionalidade foi invocada em todos os articulados que constituem o presente processo, que os efeitos da recurso e da reclamação não interferem com os efeitos do recurso, mais se requer que a esta reclamação seja apensa o respetivo processo integral, que deverá acompanhar a presente reclamação.”
O Representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação (fls. 21 e seguintes), pelos fundamentos constantes do despacho impugnado.
II – Fundamentos
3. Em sede de reclamações deduzidas nos termos do 76.º, n.º 4 da LTC, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão e conhecimento do recurso constitucionalidade de modo a ter-se por justificada a revogação do despacho reclamado.
No presente caso, não restam dúvidas quanto ao acerto da decisão impugnada. Sendo o recurso de constitucionalidade, em qualquer das suas modalidades, instrumental face à causa em que o problema emerge, o respetivo objeto deve integrar, desde logo, aquela que foi a ratio decidendi da decisão recorrida. Se assim não fosse, a pronúncia do Tribunal Constitucional seria inútil pois sempre subsistiriam os fundamentos que conduziram ao juízo decisório, o qual se manteria inalterado.
Como salientou o despacho reclamado, o fundamento da decisão relativamente à qual os recorrentes tentaram interpor recurso de constitucionalidade residiu exclusivamente no não preenchimento dos pressupostos do artigo 150.º do CPTA, de modo a não ser admissível a revista e, consequentemente, não se podendo conhecer do mérito das questões relativas à impugnação do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. É certo que, quando apresentaram o requerimento de recurso de constitucionalidade, os reclamantes se encontravam ainda em tempo para poderem recorrer daquela decisão, face ao disposto no artigo 75.º, n.º 2 da LTC. No entanto, não o fizeram, enunciando claramente a sua intenção de recorrerem do acórdão (de não admissão da revista) do Supremo Tribunal Administrativo, o qual, como já se salientou, não versou qualquer das questões de constitucionalidade que pretendiam ver apreciadas.
Nos fundamentos da reclamação que apresentaram, insistem nas questões de constitucionalidade que anteriormente haviam suscitado, salientando que não está em causa qualquer problema de constitucionalidade do artigo 150.º do CPTA. No entanto, nada aduzem relativamente ao fundamento da não admissão do recurso, o qual assenta, precisamente, na evidência de que, pelo modo como conformaram o seu recurso de constitucionalidade, o mesmo apenas podia versar, em exclusivo, sobre aquele preceito, e não sobre qualquer outro problema que não foi apreciado nem decidido pelo Tribunal a quo.
III – Decisão
4. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 24 de outubro de 2012.- Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.