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Processo n.º 514/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. e B. (arguidos e ora recorrentes) foram condenados, por sentença do Tribunal Judicial de Gondomar, pela prática de um crime de uso de documento autêntico falsificado (o primeiro) e pela autoria de um crime de falsificação de documento autêntico por funcionário (o segundo) em pena de multa e em pena de prisão de execução suspensa, respetivamente.
Por acórdão de 13 de julho de 2011, concedendo parcial provimento a recurso dos arguidos, o Tribunal da Relação do Porto alterou a qualificação jurídica dos factos, considerando que o documento em causa não integra o conceito de documento autêntico, e aplicou a ambos os arguidos pena menos grave do que aquela em que vinham condenados.
Os arguidos interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, dizendo fazê-lo ao abrigo das alíneas c) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC) e pretender “a fiscalização concreta da legalidade por este Tribunal nos termos do art.º 280.º n.º 2 alínea a) da C.R.P. da não aplicação do art.º 424 n.º3 do C.P.P. pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão proferido nos autos a 13/07/2011”.
2. Sobre este requerimento recaiu despacho do seguinte teor:
«(…)
É da competência deste Tribunal, decidir sobre a admissão de recurso, nos termos do art. 76º, n° 1 da LOFPTC.
A intervenção do Tribunal Constitucional ocorre por via de recurso, entre outros casos que para aqui não interessam, em relação a decisões dos Tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada no decurso do processo – art. 280º, nº 1, al. a) da CRP e 70°, n° 1, al. b) da LOFPTC (decisões negativas de inconstitucionalidade).
É a previsão que aqui se pretende fazer valer.
Porém, só pode interpor-se recurso para o Tribunal Constitucional se a inconstitucionalidade tiver sido suscitada no âmbito do processo que decorreu no Tribunal a quo. Não pode surgir como um elemento novo que as partes trazem ao processo em fase de recurso, após a decisão do Tribunal a quo ter sido já pronunciada.
Essa invocação terá de ser efetuada em momento em que o Tribunal a quo ainda possa conhecer da questão: ou seja, a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de esgotar o poder jurisdicional do Juiz sobre a matéria, a que a questão da inconstitucionalidade respeita.
Tal não ocorre neste caso.
Para justificarem esta não invocação atempada – reportando-se à não aplicação do art. 424º, nº 3 do CPP –, afirmam que nada os «fazia prever» que fosse esta a posição deste Tribunal.
Tal justificação carece, por completo, de sentido lógico.
Com efeito, a interpretação da mencionada norma processual foi efetuada na sequência do parcial provimento dos recursos dos mesmos, tendo-se procedido a uma alteração da qualificação jurídica, dentro do mesmo tipo – o de falsificação de documento – para uma modalidade menos gravosa, e nessa sequência, alterado para uma espécie menos grave a pena do B. (de prisão para multa), e diminuído a pena de multa em relação ao A..
Nesse contexto, referiu-se que esta alteração, não impõe o cumprimento do art. 424, nº 3 do CPP, pois a mesma constitui um minus, integra uma modalidade do tipo menos grave, relativamente à qualificação jurídica da pronúncia, ou àquela pela qual foi condenado e constitui o objeto do presente recurso – cfr. nesse sentido, Maia Gonçalves, CPP anotado, 16ª Edição, 2007, p.922.
Os recursos mostram-se, assim, manifestamente infundados, sendo evidentes as suas finalidades dilatórias do trânsito em julgado da decisão condenatória proferida.
O recurso mostra-se manifestamente infundado quando a análise meramente literal permite concluir com segurança que as questões suscitadas são manifestamente improcedentes, ou quando a sua improcedência é, a um primeiro exame, evidente, ou extensiva – Ac. do TC n.º 304/00, cit. No Breviário de Direito Processual Constitucional, Guilherme da Fonseca e lnês Domingos, Coimbra Editora, 2 Ed. P. 76, onde se cita também o Ac. 269/94, em que se escreveu: o legislador empenhado, como está, em impedir que o recurso de inconstitucionalidade sirva fins dilatórios, pretende que a questão de inconstitucionalidade só suba ao Tribunal Constitucional quando (...) apareça prima facie dotada de uma certa atendibilidade.
Pelo exposto, nos termos do art. 76º, nº 2, da LOFPTC, indeferem-se liminarmente os recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, pelos mencionados A. e B., por se mostrarem manifestamente infundados.»
3. Os arguidos reclamaram deste despacho, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da LTC. Na reclamação, os recorrentes insurgem-se contra o acórdão recorrido por “não dar cumprimento ao previsto no art.º 424.º, n.º3, do C.P.P.”, o que dizem violar o disposto nos n.ºs 1 e 5 da Constituição. E, quanto aos fundamentos do despacho de não admissão do recurso, alegam que não lhes era exigível que tivessem suscitado a questão de constitucionalidade antes de o acórdão ser proferido, porquanto só com a prolação deste ocorreu “aplicação ilegal do art.º 424.º n.º 3 do C.P.P.”, não podendo ser privados do direito de interpor recurso para o Tribunal Constitucional para “fiscalização concreta da legalidade por este Tribunal nos termos do art.º 280º n.º 2 alínea a) da C.R.P. da não aplicação do art.º 424.º n.º 3 do C.P.P. pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão proferido nos autos a 13/07/2011, por ter efetuado uma interpretação ilegal e violadora dos princípios do contraditório e das garantias de defesa do Arguido, que estão constitucionalmente previstos nos art.ºs 20.º n.º 4 e 32.º n.º 1 e 5 da C.R.P., além de que estão também consagrados em diplomas internacionais – 6º CEDH, 14.º, n.º 1 PIDCP; 47.º, n.º 2 da CDFUE”.
O Ministério Público responde à reclamação no sentido da improcedência, com os seguintes fundamentos:
«(,,,)
9. Deste despacho, entenderam os arguidos reclamar para este Tribunal Constitucional (cfr., quanto ao arguido A., fls. 1225-1240, 1241-1258, 1273-1285; quanto ao arguido B., fls. 1259-1271, 1290-1302 dos autos).
Invocam, fundamentalmente, “pretender a fiscalização concreta da legalidade por este Tribunal nos termos do art. 280 nº 2 alínea a) da C.R.P. da não aplicação do art. 424º nº 3 do C.P.P. pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão proferido nos autos a 13/07/2011, por ter efectuado uma interpretação ilegal e violadora dos princípios do contraditório e das garantias de defesa do Arguido, que estão constitucionalmente previstos nos arts. 20º, nº 4 e 32º nº 1 e 5 do C.R.P., além de que estão também consagrados em diplomas internacionais – 6º CEDH, 14º, nº 1 PIDCP, 47º, nº 2 da CDFUE …” (cfr. por exemplo, fls. 1284 e 1301 dos autos).
Vejamos, por isso, o que se poderá aduzir sobre a sua pretensão.
10. Os ora reclamantes, apresentaram os seus recursos de constitucionalidade “nos termos e para os efeitos do art. 76º, nº 1, 75º-A e 70, nº 1 alíneas c) e i) todos da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional” (cfr. designadamente fls. 1098 e 1157, 1116, 1135 e 1146 dos autos).
No entanto, e desde logo, não estamos, no caso dos autos, perante nenhuma situação de decisão do tribunal a quo, em que tenha havido lugar à recusa, pelo mesmo tribunal, de “aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado” (cfr. alínea c) do nº 1 do art. 70º da LTC), nem, por outro lado, à recusa de “aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional” (cfr. alínea i) do nº 1 do art. 70º da LTC).
Não há, pois, fundamento legal adequado para a interposição de ambos os recursos de constitucionalidade e, consequentemente, para a apresentação das reclamações, por não admissão de recurso, que se lhes seguiram.
11. Por outro lado, os recorrentes nunca chegam a identificar, devidamente, a alegada interpretação normativa supostamente feita pelo tribunal recorrido, do art. 424º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Afirmam, com efeito (cfr. fls. 1140-1141, 1161-1162 dos autos):
“Acresce dizer mesmo que, na alteração da qualificação jurídica impõe-se mesmo a obrigatoriedade da comunicação ao arguido, o que não tendo sido efetuado no caso em análise, é relevante e configura uma interpretação ilegal do art. 424º nº 3 do CPP, além de ser claramente violadora dos princípios constitucionais, pois só estas situações são suscetíveis de integrar situações «de indefesa constitucionalmente relevante». Sucede que, com o devido respeito pelo Acórdão, cuja a reforma aqui se requer, o certo é que, tal como dispõe o nº 3 do art. 424 do C.P.P. antes deste ser proferido deveria o Arguido ter sido notificado para exercer o seu direito ao contraditório quanto à alteração da qualificação jurídica operada, ainda que se entenda que esta tenha sido minus. Porquanto, atente-se que a alteração da qualificação jurídica operada tem a ver com posição tomada por este Tribunal quanto à natureza do documento em causa, sendo esta contrária à posição de direito defendida pelo Arguido no que respeita ao conceito de documento versada nas suas Alegações, e nesta medida assistia-lhe a este, porque assim decorre do art. 424 nº 3 do C.P.P., como do art. 32º da C.R.P., o direito do contraditório. Pelo exposto, não se entende a não aplicação/interpretação ilegal e claramente contrária aos arts. 20º, nº 4 e 32º nº 1 e 5 da C.R.P., 6º CEDH, 14º, nº 1 PIDCP, 47º, nº 2 da CDFUE que este Tribunal faz no Acórdão em crise, do previsto no art. 424º nº 3 do C.P.P.. Assim, compete ao Tribunal Constitucional conhecer da ilegalidade perpetuada pelo Tribunal da Relação do Porto ao não aplicar o art. 424º nº 3 do C.P.P., e por conseguinte ter violado e desrespeitado o princípio do contraditório e das garantias de defesa do Arguido, que estão constitucionalmente previstos nos arts. 20º nº 4 e 32º nº 1 e 5 da C.R.P., além de que estão também consagrados em diplomas internacionais – 6º CEDH, 14º, nº 1 PIDCP, 47º, nº 2 da CDFUE.”
12. Por outro lado, como facilmente se depreende deste excerto, limitam-se a referir preceitos constitucionais, sem apresentar, com um mínimo de razoabilidade e detalhe, as razões que, no seu entender, poderiam comprovar a violação dos princípios, que os integram.
Ora, este Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, que o recorrente tem o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional.
Como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e percetível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
13. Finalmente, concorda-se com o tribunal recorrido – Tribunal da Relação do Porto -, quando este conclui, que a argumentação dos recorrentes é manifestamente infundada.
Com efeito, não se vê que possa estar em causa o princípio do contraditório, quando os arguidos viram os seus argumentos apreciados por duas instâncias, sendo justamente a instância de recurso que, no seguimento de recursos seus, reduziu as respetivas penas, com base nos mesmos factos, apenas tendo procedido a uma alteração da sua qualificação jurídica, embora dentro do mesmo tipo de crime – falsificação de documento –, para uma modalidade menos gravosa, o que lhe permitiu atenuar as penas inicialmente impostas.
Assim, como bem referido pelo Acórdão recorrido, só pode concluir-se, que “esta alteração, não impõe o cumprimento do art. 424º, nº 3 do CPP, pois a mesma constitui um minus, integra uma modalidade do tipo menos grave, relativamente à qualificação jurídica da pronúncia, ou àquela pela qual foi condenado e constitui o objeto do presente recurso” (cfr. supra nº 7 do presente Parecer).
Não há, aliás, nenhuma recusa de aplicação deste preceito, mas, sim, a constatação, pelo tribunal recorrido, de que tal norma não é aplicável ao caso sub judice, o que é substancialmente diferente.
14. Refere o Acórdão 304/00, de 16 de junho (Conselheiro Tavares da Costa), sobre o caráter manifestamente infundado dos recursos (destaques do signatário):
“Equaciona-se, no entanto, a manifesta falta de fundamento do recurso subjacente.
Com efeito, o Tribunal Constitucional tem entendido que o caráter manifestamente infundado do recurso pode (deve) ser apreciado logo em sede de reclamação.
É que, como se escreveu no acórdão nº 294/99, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de julho de 1999, se o tribunal a quo pode não admitir o recurso com esse fundamento, dificilmente se compreenderia que o Tribunal Constitucional não pudesse proceder de igual modo quando, a um primeiro exame, se lhe afigurar evidente a improcedência (no mesmo sentido, v.g., o acórdão nº622/99, ainda inédito).
O problema coloca-se, deste modo, em sede de caracterização do recurso como manifestamente infundado.
Ora, entende-se que um recurso é assim qualificável quando a análise meramente liminar da argumentação aduzida pelas partes nas alegações apresentadas permita concluir, com segurança, que as questões suscitadas são manifestamente improcedentes (nas palavras de Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, pág. 479).
Surpreende-se, implícito, um juízo sobre a viabilidade do recurso.”
15. Parece ser este o caso dos autos.
Crê-se, pois, que a presente reclamação não deverá merecer acolhimento por parte deste Tribunal Constitucional.»
4. Os reclamantes foram ouvidos sobre as questões suscitadas nos nºs 9 a 12 da resposta do Ministério Público. Apenas respondeu o reclamante A., nos seguintes termos:
«(…)
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no que respeita ao teor dos pontos 9 e 10 , cumpre dizer que , pese embora o Arguido não tenha concordado com douto despacho de não admissão do Recurso proferido pela Relação do Porto, o certo é que , naquele despacho não foi apontada nenhuma falta de formalidade ao Requerimento de interposição de Recurso por este apresentado. Daí que,
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ainda que se discorde do disposto naqueles pontos 9 e 10 da resposta do Digno Magistrado do Ministério Público , a verdade é que certamente o Arguido não soube clarificar devidamente que o seu Recurso não versa sobre qualquer recusa de aplicação de norma pelo Tribunal da Relação do Porto da forma que consta nos preceitos legais ali referidos , mas , versa antes sobre a recusa que este Tribunal fez da aplicação do art.º 424 n ° 3 do C.P.P., o que se enquadra dentro do preceituado no art.º 70 n º 1 alínea c) do LTC. Pelo que,
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entendemos que não deve ser a Reclamação recusada, mas considerada suprida pelo presente requerimento , tal como dispõe o art.º 76 n º 2 da LTC . Por outro lado,
6
nos item 11 e 12 da Resposta do Digno Magistrado do Ministério Público é referido que o Arguido não identifica devidamente a alegada interpretação normativa feita pelo Tribunal recorrido do art.º 424 n º 3 do C.P.P., referindo que o Arguido se limita a referir preceitos constitucionais, o que, com a devida vénia, entendemos também que assim não ocorre. Todavia
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à cautela também ao abrigo do art.º 76 n º 2 da LTC apresente-se o seguinte suprimento
- entende o Arguido, e entende alguma da doutrina e jurisprudência que o aditamento do n ° 3 do art.º 424 do C.P.P., ocorrido com a alteração operada ao Cód. Processo Penal em 2007, veio reafirmar o principio do contraditório Aliás,
-veja-se que só tem sentido que assim seja, pois caso contrário não haveria necessidade de proceder ao aditamento do n.º 3 do art.º 424 do C.P.P. já que o art.º 423 n.º 5 do C. P. P. dispõe que à audiência dos recursos se aplica correspondentemente as regras do julgamento em instância e entre elas se conta o art.° 358 que estabelece o mesmo regime. Ora,
- mesmo dispondo desta forma o art.º 423 n.º 5 do C.P.P., sentiu o legislador necessidade de proceder ao aditamento do n ° 3 do art.º 424 do C.P.P. , pelo que , entende o Arguido que ao não dar cumprimento este Tribunal ao previsto naquele preceito legal , violou claramente o principio do contraditório , e por conseguinte padece de nulidade, a qual se argui nos termos e para os feitos dos art.º 424 n º 3 , 425 n º 4, 379 e 358 todos do C.P.P. . Aliás,
- não é só o Arguido que assim entende , mas pode-se ver in Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1991, pp. 428-429, onde se diz que No silêncio da lei, haverá de entender-se que o tribunal superior pode qualificar diversamente os factos, desde que se respeitem as regras estabelecidas nos art. 358 e seguinte (cfr. art. 423.º-59);
- Como in LOPES, Mara, O princípio da proibição da “reformatio in pejus” como limite aos poderes cognitivos e decisórios do tribunal - sentido e verdadeiro alcance, in Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. III 2010, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 980-985, que considerando maioritário o entendimento na doutrina e jurisprudência nacionais que os tribunais são, em regra, livres para poderem alterar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, pronúncia ou da sentença recorrida, aponta no entanto dois limites: a comunicação dessa alteração à defesa (i) e a proibição da reformatio in pejus... (o sublinhado é nosso). Daí que,
- defende o Arguido, como defende a jurisprudência, que o tribunal, seja no julgamento inicial, seja no recurso, não está limitado à qualificação jurídica proposta pela acusação pública ou a defesa, no primeiro caso, ou pelo sentenciamento do tribunal “a quo” ou pelas alegações de recurso , no segundo caso, desde que sejam asseguradas as garantias de defesa do arguido, designadamente as preceituadas no art.º 32 da C.R.P, o que não ocorreu in casu, com o não cumprimento do previsto no art.º 424 n.º 3 do C.P.P.. Pois
- as garantias constitucionais de defesa conferem um catálogo de direitos de modo a proibir situações de indefesa constitucionalmente relevante como seja a privação ou a limitação das possibilidades de defesa, de modo que a sua inobservância tenha, em concreto, uma relevância negativa no desfecho do litígio e, naturalmente, em desfavor do arguido. Aliás,
- catálogo esse de direitos constitucionais de defesa, que tem como pilar o direito a um processo justo e equitativo — art.º 20.º, n.º 4 C.R.P 6.º CEDH, 14.º, n.º 1 PIDCP; 47.º, nº 2 da CDFUE, que passa, na sua dimensão negativa, por não colocar a defesa numa posição de desvantagem em relação aos demais e, na sua dimensão positiva, em lhe conferir os mecanismos necessários e pertinentes para expor a sua prova e as suas razões. Deste modo,
- remetendo-nos ao caso em apreço verifica- se que ao não ser aplicado o previsto no art.º 424 n º 3 do C.P.P. pelo Tribunal recorrido, não foi respeitado o princípio do contraditório do Arguido , e por conseguinte, ocorreu a violação do art.º 32 da C.R.P. Porquanto,
- lido tal preceito legal verifica-se que este não contempla qualquer exceção para sua não aplicação, isto é, decidiu este Tribunal não aplicar tal norma legal, por entender que a alteração da qualificação jurídica que fez integra uma modalidade menos grave, contudo, atente-se que do texto daquela norma não resulta que tal situação conduza à sua não aplicação
-Isto para se dizer que, se o legislador quisesse que este artigo não fosse aplicado, quando a alteração da qualificação jurídica integrasse uma modalidade menos grave, teria certamente contemplado tal situação no seu texto, como uma exceção para a sua não aplicação, o que não ocorreu. Pelo que,
- com o devido respeito, ao interpretar o art.º 424 n º 3 do C.P.P. da forma que fez o Tribunal recorrido , violou o direito do Arguido ao exercício do contraditório, consagrado no art. 32.º, n.º 1 e 5 da Constituição, até porque do texto daquele preceito legal não resulta que no caso da alteração da qualificação jurídica ser para menos grave não ocorre a sua aplicação. Pois,
- entende o Arguido que o Tribunal recorrido ao não dar cumprimento ao previsto no art.º 424 n.º 3 do C.P.P. não respeitou o seu direito de ser ouvido , enquanto direito de dispor de uma efetiva oportunidade processual para tomar uma posição sobre aquilo que o afeta [Ac. do TC n.º 330/97 (DR II 1997/Jul./03); n.º 387/2005, (DR II 2005/Out./19)].(9), o que configura uma interpretação inconstitucional daquele preceito legal Ademais,
- sempre se diga, que no que concerne à alteração da qualificação jurídica, encontra-se atualmente ultrapassado o posicionamento de plena liberdade de qualificação jurídica sem haver comunicação prévia ao Arguido, pois impõe-se que esta se realize , vejam-se neste sentido os seguintes arestos no que respeita aos tribunais superiores Ac. TC 518/98; Ac STJ n.º 3/2000, de 1999/Dez./15. Aliás,
- hoje a lei é expressa nesse sentido – veja-se os art.ºs 358.º, n.º 3, 424.º, n.º 3 ambos do C.P.P. . Porquanto,
- veja-se que a alteração da qualificação jurídica operada tem haver com posição tomada por este Tribunal quanto à natureza do documento em causa, sendo esta contrária à posição de direito defendida pelo Arguido no que respeita ao conceito de documento versada nas suas Alegações , e nesta medida assistia-lhe a este , porque assim decorre quer do art.º 424 nº 3 do C.P.P. , como do art.° 32 da C.R.P. , o direito do contraditório .Pelo exposto
- não se entende esta aplicação ilegal e inconstitucional que o Tribunal recorrido fez do art.º 424 nº 3 do C.P.P. , quando ao decidir a situação idêntica , designadamente o não cumprimento pelo Tribunal de 1ª Instância do previsto no art.º 358 n º 1 e 3 do C.P.P. , entendeu que ao Arguido deveria ter sido comunicada a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia – veja-se Acórdão proferido a 07/04/2010 nos autos.»
5. Cumpre decidir a reclamação, tendo presente que, fazendo a decisão a proferir caso julgado quanto à admissibilidade do recurso (n.º 4 do artigo 77.º da LTC), o Tribunal deve apreciar e pode decidir qualquer questão que obste à admissibilidade ou ao conhecimento do objeto do recurso, independentemente do que tenha sido e da aceitação que mereça a fundamentação do despacho reclamado.
Ora, é manifesta a procedência da argumentação do Ministério Público no sentido de que não se verificam os pressupostos de recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas c) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, que são aquelas a que os recorrentes se acolheram.
Desde logo porque o tribunal a quo não recusou a aplicação de qualquer norma. Com efeito, só pode falar-se de recusa de aplicação, para efeitos do controlo de constitucionalidade ou de legalidade que ao Tribunal Constitucional compete, quando o tribunal da causa, embora reconhecendo que a situação preenche (ou pode preencher) determinada hipótese normativa, nega validade a essa previsão ou estatuição, com fundamento na sua contrariedade ou desconformidade a regras ou princípios constitucionais, convenção internacional, lei de valor reforçado ou estatuto de região autónoma. Não assim quando, interpretando a norma de direito ordinário, a decisão recorrida entende que determinada estatuição nela contida não abrange o caso sujeito. Nesta hipótese – como é o caso dos autos – o que sucede é que a norma é interpretada e aplicada com determinado sentido normativo e a questão decidida em conformidade. Poderá, verificados os demais pressupostos e requisitos, abrir-se a correspondente via de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade ou ilegalidade qualificada (v.gr. ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC), mas não ao abrigo das referidas alíneas c) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (recurso de decisões positivas de inconstitucionalidade ou ilegalidade).
O que basta para que o recurso não possa ser admitido e, consequentemente, a reclamação improceda, sem necessidade de examinar o bem ou mal fundado das razões do despacho reclamado, cuja apreciação fica prejudicada
6. De todo o modo, também é exato que os recorrentes não lograram definir normativamente, como é seu ónus (n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC), o sentido normativo que pretenderiam submeter a apreciação por parte do Tribunal Constitucional. Como refere o Ministério Público impõe-se que quando questiona uma certa interpretação de determinada norma legal o recorrente enuncie esse sentido (essa interpretação) de modo claro e preciso. Ónus que, no caso, não foi cumprido.
Aliás, a extensa argumentação que é desenvolvida, seja nos requerimentos de interposição o recurso por ambos os recorrentes, seja pelo recorrente Santos Castro quando respondeu às questões suscitadas pelo Ministério Público, revela que não se pretende a apreciação de qualquer questão de constitucionalidade normativa. O que verdadeiramente se pretende censurar é o entendimento do acórdão recorrido no sentido de que do n.º 3 do artigo 424.º do C.P.P. decorre que a alteração da qualificação jurídica dos factos pelo tribunal de recurso que consista na sua integração numa modalidade menos gravosa, dentro do mesmo tipo de crime, não exige a prévia notificação do arguido para sobre ela se pronunciar. Os arguidos entendem que este entendimento é errado, socorrendo-se de opiniões doutrinárias e da evolução legislativa. Mas isso não é matéria da competência do Tribunal Constitucional, que é restrita a questões de constitucionalidade de normas e não das decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
7. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, com 20 (vinte) UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 24 de outubro de 2012.- Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.