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Proc. n.º 498/01 Acórdão nº 152/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em Maio de 1997, A deduziu, junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra, oposição a uma execução fiscal, com fundamento na inconstitucionalidade material das normas dos artigos 43º, alínea g), e 237º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril, por violação do princípio da separação de poderes, bem como na inconstitucionalidade orgânica das mesmas normas, por violação do disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea q), da Constituição (na versão de 1989, que corresponde ao artigo 165º, n.º 1, alínea p), na redacção emergente da revisão constitucional de 1997). Alegou, em síntese, serem inconstitucionais as normas do Código de Processo Tributário que conferem ao chefe da Repartição de Finanças poderes para dirigir o processo de execução fiscal e nele praticar actos de natureza jurisdicional, reconduzindo-se a invocada inconstitucionalidade ao fundamento da oposição à execução previsto na alínea h) do n.º 1 do artigo 286º do Código de Processo Tributário. O Representante da Fazenda Pública junto do mesmo Tribunal contestou (fls. 40 e seguintes), pedindo que a oposição fosse julgada improcedente. O Ministério Público emitiu parecer (fls. 45), subscrevendo a contestação apresentada pelo Representante da Fazenda Pública.
Por sentença de 9 de Fevereiro de 1999 do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra (fls. 46 e seguintes), foi julgada improcedente a oposição.
2. Inconformado, A interpôs recurso da referida sentença para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (fls. 56), tendo nas alegações respectivas (fls. 64 e seguintes) concluído do seguinte modo:
'A) O processo de execução fiscal, na configuração delineada no Código de Processo Tributário, é um processo de natureza judicial. B) No processo de execução fiscal, em paralelo com actos com natureza materialmente administrativa, cabe nos poderes do Chefe da Repartição de Finanças a prática de actos materialmente jurisdicionais, como são a formulação do juízo sobre a exequibilidade do título executivo, a penhora (rectius, a decisão de penhorar) bem como a venda dos bens penhorados. C) As normas do Código de Processo Tributário, ao conferirem aos chefes das repartições de finanças poderes para a prática de tais actos, estão feridas de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da separação de poderes consagrado constitucionalmente, nomeadamente, nos arts. 111º, nº 2,
202º, nºs 1 e 2, 212º, nº 3, 268º, nº 5, da CRP. D) A douta sentença sob recurso, ao não considerar verificada a arguida inconstitucionalidade violou os invocados princípios e preceitos constitucionais. E) As mesmas normas do Código de Processo Tributário, que conferem poderes aos chefes das repartições de finanças para a prática dos referidos actos jurisdicionais, estão feridas de inconstitucionalidade orgânica, por violação do preceituado no artº 165º, nº 1, al. p) da CRP. F) A douta sentença, ao não declarar tal inconstitucionalidade, violou o invocado preceito legal.'
A Representante da Fazenda Pública contra-alegou (fls. 68 e seguinte), tendo assim concluído:
'a) A posição funcional do chefe da repartição de finanças em matéria de execução fiscal é definida pelo nº 2 do artigo 60º do ETAF. b) O nº 2 do artigo 60º do ETAF atribui ao chefe da repartição de finanças a posição de auxiliar do juiz. c) O ETAF foi emanado ao abrigo da autorização legislativa conferida pela Lei nº
29/83, de 8 de Setembro. d) A força executiva dos títulos de cobrança, com equiparação a decisão com trânsito em julgado, é de molde a atribuir ao acto de instauração da execução a qualificação de um acto de natureza administrativa própria de um auxiliar do juiz. e) As normas dos artigos 43º, alínea g) e 237º, nº 2 do CPT não enfermam de inconstitucionalidade material ou orgânica.'
O Ministério Público emitiu parecer no seguinte sentido (fls. 70 e v.º):
'No âmbito da execução fiscal, o Código de Processo Tributário atribuiu às autoridades administrativas apenas as diligências que não requeriam o conhecimento e resolução de questões jurisdicionais. Pelo que, tanto este S.T.A., como o Tribunal Constitucional, têm vindo a admitir que à administração fiscal seja cometida a prática de actos não jurisdicionais, no processo executivo fiscal. Vidé, neste sentido, os acs. deste S.T.A. de 19.1.92, recs. nºs 13763 e 13830, publicados na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 127, pág. 206, e BMJ
414, pág. 340, e acs. do T. Constitucional nºs 465/91, de 1.12.91, proc. nº
279/90, in BMJ 412, pág. 103, e ac. nº 331/92, de 1.10.92, in BMJ nº 420, pág.
125. Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso.'
3. Por acórdão de 2 de Maio de 2001 do Supremo Tribunal Administrativo
(fls. 74 e seguintes), foi negado provimento ao recurso, em síntese pelos seguintes fundamentos:
'[...] Baseia-se o recurso na inconstitucionalidade – material e orgânica – das normas do Código de Processo Tributário que conferem aos chefes de repartição de finanças poderes para a prática de actos que o recorrente considera materialmente jurisdicionais. Tais normas são, como refere na petição e no ponto
2 das alegações de recurso, os artigos 43º alínea g) e 237º nº 1 do Código de Processo Tributário. Em seu entender, elas violariam o princípio da separação de poderes, consubstanciando inconstitucionalidade material, por violação dos artigos constitucionais (na redacção anterior a 1997) 114º nº 2, 205º nº 1 e 2,
214º nº 3 e 268º nº 5, e inconstitucionalidade orgânica por atribuição ao chefe da repartição de finanças de poderes para a prática de actos jurisdicionais em violação do artigo 165º nº 1 al. p) da Constituição da República Portuguesa.
[...] Embora o processo de execução fiscal tenha natureza judicial, como refere o artigo 103º da Lei Geral Tributária, refere logo o mesmo artigo que tal ocorre sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional, com possibilidade de reclamação para o juiz, o que aliás está em consonância com os artigos do Código de Processo Tributário que o recorrente considera inconstitucionais. O que se verifica em ambos os casos é a existência de uma fase administrativa da competência do chefe da repartição de finanças que não pode abranger a decisão de qualquer questão de
âmbito jurisdicional, sendo as questões desse âmbito que no processo se suscitem, decididas pelos tribunais. Aquele artigo 237 [...] explicita perfeitamente essa divisão de competências entre as autoridades tributárias e os tribunais.
[...] No artigo 114° nº 2 da Constituição da República Portuguesa consigna-se que nenhum órgão de soberania pode delegar o seu poder noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei. No caso vertente não ocorre qualquer delegação de poderes por parte dos tribunais na administração fiscal, sendo as competências desta no processo executivo as que a lei lhe atribui. Por isso não padecem as normas em causa de tal inconstitucionalidade . No artigo [202°] da Constituição da República Portuguesa atribui-se aos tribunais a função de administração da justiça em ordem a assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, repressão da violação da legalidade democrática e resolução de conflitos de interesses públicos e privados. Não exercendo as entidades administrativas referidas nos questionados artigos do Código de Processo Tributário funções jurisdicionais não podem considerar-se tais normas inconstitucionais nos termos deste artigo. No artigo 214° nº 3 da Constituição da República Portuguesa atribui-se aos tribunais administrativos e fiscais competência para julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Não atribuindo os artigos em causa competência para julgar acções ou recursos às repartições de finanças ou a outros órgãos da administração fiscal não subsiste tal inconstitucionalidade. Por seu turno o artigo 268° nº 5 da Constituição da República Portuguesa garante aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Não condicionando os artigos em causa tal garantia não sofrem os mesmos de tal inconstitucionalidade. Face à apreciação que fizemos da conexão entre os artigos 43° al. g) e 237° do Código de Processo Tributário e os invocados artigos constitucionais terá de concluir-se que não ocorre a inconstitucionalidade material dos mesmos por tais normas, contrariamente ao que diz o recorrente, não conferirem ao chefe da repartição de finanças poderes para a prática de actos jurisdicionais. Quanto à inconstitucionalidade orgânica invoca o recorrente que as mesmas normas violam o disposto no artigo 165° n° 1 al. p) da Constituição da República Portuguesa. Tal norma atribui à Assembleia da República, salvo autorização ao governo, competência exclusiva para legislar sobre «organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos». Como vimos os artigos em causa não se reportam à organização e competência dos tribunais e magistraturas nem atribuem às repartições de finanças a competência para a composição de conflitos. Por isso não há qualquer violação da competência exclusiva da Assembleia por parte dos artigos citados, não sendo, como dissemos, os actos que praticam actos jurisdicionais.
[...] Por tudo o que ficou exposto terá de concluir-se que os normativos arguidos de inconstitucionalidade pelo recorrente não padecem de tal vício, não lhe assistindo por isso razão.
[...].'
4. De novo inconformado, A interpôs recurso do referido acórdão do Supremo Tribunal Administrativo para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que seja apreciada a inconstitucionalidade material das normas dos arts. 43º, al. g), e 237º, nº 1, do CPT, por violação do princípio da separação dos poderes, com consagração constitucional, nomeadamente, nos arts. 111º, nº 2,
202º, nºs 1 e 2, 212º, nº 3, 268º, nº 5, da CRP, bem como a inconstitucionalidade orgânica das mesmas normas por violação do disposto no art. 165º, nº 1, al. p), da CRP, tendo tais questões sido suscitadas quer na petição inicial de oposição à execução quer nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo' (fls. 84). O recurso foi admitido por despacho de fls. 89.
5. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 95 e seguintes), concluiu como no recurso para o Supremo Tribunal Administrativo
(supra, 3.), aduzindo, em síntese, os seguintes argumentos: a. O acórdão recorrido não se pronunciou sobre todas as questões submetidas à sua apreciação, nomeadamente sobre a natureza materialmente jurisdicional, administrativa ou outra, do juízo sobre a exequibilidade do título executivo, da decisão de penhorar e da penhora e venda dos bens penhorados (fls. 97-98); b. Os fundamentos do acórdão recorrido não são suficientes nem adequados para concluir pela conformidade das normas questionadas com a Constituição (fls.
98); c. A actividade, 'traduzida na verificação, em face da certidão de dívida, se esta tem condições para servir de base à execução, ou seja, ajuizar da exequibilidade do título dado à execução bem como da certeza, da exigibilidade e da liquidez da dívida exequenda não pode deixar de ter-se por materialmente jurisdicional' (fls. 112); d. A natureza jurisdicional é ainda mais evidente na decisão de penhorar e na venda de bens penhorados (fls. 112); e. '[A] penhora contende com um complexo de direitos subjectivos dos particulares cuja afectação não pode ficar a descoberto de uma decisão
(primária) do titular do poder judicial' (fls. 118); f. 'Pelos mesmos motivos, ainda que com agravantes decorrentes dos seus próprios efeitos, de igual modo se passam as coisas com a venda executiva, tendo em especial atenção o facto de esses efeitos extravasarem a esfera jurídica do executado e poderem projectar-se sobre terceiros' (fls. 119); g. Mal se compreende que a lei configure o processo de execução fiscal como processo judicial, quando ele não é tramitado fisicamente no tribunal tributário e o juiz não pode proferir quaisquer decisões ou ter uma qualquer intervenção no processo, a não ser a instâncias do executado ou de terceiro
(fls. 121). Decorrido o prazo, a recorrida não respondeu (fls. 158). Cumpre apreciar.
II
6. Os recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – como é o caso do presente recurso – pressupõem que a norma (ou a norma, numa certa interpretação) cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida. Importa, pois, e em primeiro lugar, determinar se tal pressuposto está preenchido no recurso ora interposto. Resulta do requerimento de interposição do recurso e das alegações produzidas junto deste Tribunal, bem como das restantes peças processuais apresentadas pelo recorrente durante o processo, que se pretende a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, da conformidade constitucional das normas dos artigos 43º, alínea g), e 237º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril. Como adiante se demonstrará (infra, 7.), nem todas as normas constantes de tais preceitos foram aplicadas na decisão recorrida, pelo que quanto a elas não é possível conhecer do objecto do presente recurso.
É o seguinte o teor dos referidos preceitos:
'Artigo 43º Competência da administração fiscal Aos serviços da administração fiscal cabe:
[...] g) Instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a eles respeitantes, salvo o que se dispõe no n.º 2 do artigo 237º;
[...].'
'Artigo 237º Competência
1 – É competente para o processo de execução fiscal a repartição de finanças do domicílio ou sede do devedor, salvo tratando-se de coima fiscal e respectivas custas, caso em que será a repartição de finanças onde tiver corrido o processo da sua aplicação.
[2 – Compete ao tribunal tributário de 1ª instância da área onde correr a execução, depois de ouvido o Ministério Público, nos termos do nº 2 do artigo
41º, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, a verificação e graduação de créditos e a anulação da venda, bem como os recursos referidos no artigo
255º.]
[...].'
A questão colocada pelo recorrente prende-se com a conformidade constitucional da atribuição, à administração fiscal, de certos poderes reservados aos juízes no processo de execução comum, já que, nos termos do n.º 2 do artigo 237º do Código de Processo Tributário (preceito este ressalvado pela alínea g) do artigo
43º), a competência dos tribunais tributários apenas abrange a decisão dos incidentes, dos embargos, da oposição, da verificação e graduação de créditos, da anulação da venda e de recursos de certos actos praticados pela própria administração fiscal. Ora, segundo o recorrente, cingindo-se a competência dos tribunais tributários apenas a esses actos, os restantes actos decisórios do processo de execução fiscal (por exemplo, a decisão de penhorar bens, ou de proceder à respectiva venda) competem à administração fiscal. É esse resultado – que retira da interpretação dos preceitos acima transcritos – que o recorrente contesta.
7. Sucede, porém, que no processo de que emergiu o presente recurso – e como se deduz da matéria de facto em que assentou a decisão recorrida (cfr. fls.
75-76) –, nunca esteve em causa qualquer decisão a ordenar a penhora de bens do ora recorrente, nem qualquer acto de penhora de bens seus, nem tampouco um acto determinativo da venda de bens. Na verdade, a decisão recorrida partiu, em síntese, da seguinte factualidade: a. Ao opoente, ora recorrente, foi enviado, pela 2ª Repartição de Finanças de Coimbra, um aviso no sentido de que contra si corria um processo executivo
(processo que se identificou no aviso); b. Esse aviso encontrava-se acompanhado de uma certidão, passada pelo Chefe dessa Repartição de Finanças, atestando que o ora recorrente era devedor à Fazenda Pública de determinada quantia e que não havia satisfeito o seu pagamento no prazo de cobrança voluntária; c. Essa certidão, como se refere na sua parte final, foi passada 'para que de conformidade com o mesmo Código [o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado], se proceda executivamente contra o referido devedor [o ora recorrente]'. Foi na sequência do mencionado aviso, acompanhado da certidão de dívida, que o ora recorrente deduziu a oposição à execução que originou o presente processo. Assim sendo, o único acto praticado pela administração fiscal no presente processo, e que releva para a apreciação do recurso ora interposto, é o acto do chefe da repartição de finanças a que alude o artigo 272º, n.º 1, do Código de Processo Tributário: isto é, o acto de instauração da execução mediante despacho lavrado no título executivo. Está, portanto, apenas em causa, no presente recurso, a apreciação da conformidade constitucional da norma constante da alínea g) do artigo 43º e do n.º 1 do artigo 237º do mesmo Código que atribui aos serviços da administração fiscal competência para instaurar os processos de execução fiscal. A atribuição de competência para a prática de outros actos, também decorrente daquela mesma norma, não pode evidentemente estar em causa no presente recurso, já que tais actos não haviam sido praticados pela administração fiscal aquando da dedução da oposição à execução e, como tal, a decisão recorrida não assentou em tal factualidade. Poderá objectar-se, dizendo que, mesmo não tendo sido praticados tais actos, o que é certo é que a decisão recorrida – bem como, aliás, a da 1ª instância – se pronunciou sobre o problema genérico colocado pelo ora recorrente, isto é, sobre o problema da competência dos serviços da administração fiscal para a prática da generalidade dos actos respeitantes aos processos de execução fiscal
(ressalvados os actos a que alude o n.º 2 do artigo 237º). Todavia, a circunstância de ter havido pronúncia sobre tal problema genérico – certamente por se ter entendido que a tal obrigava o disposto no n.º 2 do artigo 660º do Código de Processo Civil – em nada releva para a apreciação da verificação do pressuposto processual a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: o da aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja conformidade constitucional se questiona. É que tal aplicação não pode traduzir-se na resolução de uma questão teórica ou de um problema jurídico abstracto que tenha sido discutido no processo, mas apenas na solução jurídica de um caso concreto submetido ao tribunal recorrido, sob pena de desvirtuamento da própria função de fiscalização concreta de constitucionalidade confiada ao Tribunal Constitucional. Poderá ainda dizer-se que, além da própria instauração da execução pelos serviços da administração fiscal, um outro acto foi praticado no presente processo por esses serviços, e com relevo para a apreciação do presente recurso: o próprio acto de citação do ora recorrente. Mas, quanto a este acto de citação, não se afigura que o recorrente questione a conformidade constitucional da norma que prevê a competência da administração fiscal para a sua prática. Assim, nas alegações para este Tribunal, a fls. 111, diz o seguinte: '[...] importa que nos centremos sobre a natureza dos actos cujas normas atributivas de competência são arguidas de inconstitucionais, quais sejam a formulação do juízo sobre a exequibilidade do título executivo ao instaurar a execução, a decisão de penhorar bem como a penhora e a venda dos bens penhorados'. E nas conclusões das alegações também não se faz referência a uma eventual natureza materialmente jurisdicional do acto de citação nem à desconformidade constitucional da norma que prevê a prática desse acto pelos serviços da administração fiscal. Portanto, e em conclusão, o objecto do presente recurso é apenas este: a conformidade constitucional da norma da alínea g) do artigo 43º e do n.º 1 do artigo 237º do Código de Processo Tributário que atribui aos serviços da administração fiscal competência para instaurar os processos de execução fiscal
(competência a que também se refere o artigo 272º do mesmo Código – não relevando, pois, as considerações assinaladas supra, 5., a), b) e d) a g)). Ora, segundo o recorrente, a actividade, 'traduzida na verificação, em face da certidão de dívida, se esta tem condições para servir de base à execução, ou seja, ajuizar da exequibilidade do título dado à execução bem como da certeza, da exigibilidade e da liquidez da dívida exequenda não pode deixar de ter-se por materialmente jurisdicional' (supra, 5., c)). Vejamos se assim é, assinalando mais uma vez que este é o único argumento que importa analisar.
8. Assim delimitado o objecto do recurso, verifica-se que o ora recorrente não centra o problema na possibilidade de criação, pela própria administração fiscal, de títulos executivos. Na verdade, tal possibilidade não está sequer contemplada nos preceitos legais que o recorrente indica, encontrando-se antes prevista nos n.º s 1 e 4 do artigo 110º do Código de Processo Tributário. Às espécies e requisitos dos títulos executivos aludem também os artigos 248º e 249º do mesmo Código. O recorrente centra o problema na formulação, aquando da instauração da execução, de um juízo sobre a exequibilidade do título executivo e sobre a verificação dos demais pressupostos de admissibilidade da acção executiva, juízo esse que, em sua opinião, devia estar vedado à administração fiscal. Repare-se, aliás, que se o recorrente centrasse o problema na possibilidade de criação do título executivo pela administração fiscal, dir-se-ia que a questão a analisar no presente recurso seria semelhante à analisada nos acórdãos do Tribunal Constitucional referentes ao artigo 5º do Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro (entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro), diploma esse que regulava a injunção. Dispunha, de facto, tal preceito que, na falta de oposição pelo requerido, ou em caso de desistência da mesma, o secretário judicial apunha a fórmula 'Execute-se' no requerimento de injunção, sendo que o Tribunal Constitucional considerou que não se deparava, na actividade do secretário judicial consistente na aposição da fórmula executória, qualquer forma de composição de um litígio e, portanto, concluiu pela não inconstitucionalidade (veja-se, nomeadamente, o acórdão n.º 394/95, de 27 de Junho, publicado no Diário da República, II Série, n.º 264, de 15 de Novembro de
1995, p. 13675). Seria, igualmente, uma questão semelhante à analisada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 376/96, de 6 de Março (publicado no Diário da República, II Série, n.º 160, de 12 de Julho de 1996, p. 9416) – a de saber 'se, de um lado, será permitido ao Governo não munido da adequada credencial parlamentar, criar novos títulos executivos extra-judiciais, designadamente títulos administrativos e, de outro, suposto que o poderá fazer, se a criação operada por via e nos termos do art.º 2º do D.L. 194/92 se configura conforme à Lei Fundamental' –, sendo que nesse aresto se observou que 'a emissão da certidão levada a cabo por uma entidade pertencente à Administração e que lhe vai conferir a característica de título executivo mais não é que uma simples operação de certificação de um crédito detido por essa mesma entidade em razão da actividade que despendeu em benefício de outrem, não representando, por isso, qualquer forma de composição de litígio ou de definição dos direitos de determinado credor'. Mas, como se sublinhou, o recorrente não questiona a possibilidade de criação de um título executivo pela administração fiscal, pelo que este problema não deve ser aqui sequer considerado. Tudo se resume, afinal, a saber se traduz uma actividade materialmente jurisdicional a actividade de instauração da execução pela administração fiscal, já que a mesma envolve, segundo o recorrente, um juízo sobre a exequibilidade do título executivo e sobre a verificação dos demais pressupostos de admissibilidade da acção executiva. Cumpre então perguntar: ao instaurar a execução, formulando o referenciado juízo, a administração fiscal desenvolve alguma actividade de natureza substancialmente diversa da realizada por qualquer exequente, ao promover a execução? Como se assinalou no acórdão deste Tribunal n.º 332/2001, de 10 de Julho
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 237, de 12 de Outubro de 2001, p. 17041), proferido a propósito do artigo 272º, n.º 1, do Código de Processo Tributário, mas versando sobre questão diversa daquela que agora está em análise:
'[...] Os processos de execução fiscal são, pois, instaurados pelos serviços de administração fiscal, competindo a esses mesmos serviços «realizar os actos a eles respeitantes» [cf. artigo 43º, alínea g), do mesmo Código], salvo aqueles que a lei comete aos tribunais tributários de 1ª instancia. [...] O que marca a instauração da execução é o despacho do chefe de repartição de finanças, que o deve proferir no prazo de 24 horas após o recebimento dos respectivos títulos executivos ou da relação dos mesmos (cf. o artigo 272º, n.º 2). Os títulos executivos são as certidões de dívidas fiscais, que os competentes serviços devem extrair, findo o prazo de pagamento voluntário estabelecido nas leis tributárias (cf. o citado artigo 110º, n.º s 1 e 4). Em síntese, pois: findo o prazo do pagamento voluntário do imposto estabelecido na respectiva lei tributária, extrai-se certidão de dívida (artigo 110º, n.º 1, citado), para servir de base à instauração da execução fiscal (artigo 110º, n.º 4, citado), que se inicia com o despacho do chefe de repartição de finanças, a proferir no prazo de 24 horas após o recebimento daquela certidão (artigo 272º, n.º 1, citado).'
Logo por esta descrição se vê que a instauração da execução pela administração fiscal só difere da promoção da execução por qualquer outro credor que disponha de título executivo na medida em que pressupõe despacho do chefe da repartição de finanças. Ela não envolve um juízo definitivo sobre a exequibilidade do título ou sobre a verificação dos pressupostos da acção executiva. Na verdade, o aludido despacho do chefe da repartição de finanças mais não é do que o próprio acto de promoção da execução, nada acrescentando a certificação nele contida em relação à certificação constante do próprio título. Não se vislumbrando qualquer composição de interesses no acto de instauração da execução pelos serviços da administração fiscal, não pode naturalmente aceitar-se a sua natureza materialmente jurisdicional (no sentido de que o processo de execução fiscal envolve 'uma actividade que se enquadra ainda no exercício da função tributária, isto é, que assume fundamentalmente um carácter administrativo', sem deixar de reconhecer que esse processo 'comporta, em todo o caso, alguns momentos claramente jurisdicionais (como a oposição e a verificação e graduação de créditos)', José Manuel Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 1972, p. 113-114, nota (2)). Como tal, não tem o recorrente razão quando invoca a inconstitucionalidade material da norma objecto do presente recurso, à luz do disposto nos artigos
111º, n.º 2, 202º, n.º s 1 e 2, 212º, n.º 3 e 268º, n.º 5, todos da Constituição, preceitos esses que aludem à competência dos tribunais para o exercício da função jurisdicional. Não tem também razão quando invoca, a este propósito, a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de organização e competência dos tribunais e do Ministério Público, ou das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos (artigo 168º, n.º 1, alínea q), da Constituição, na versão de 1989, que corresponde ao artigo 165º, n.º 1, alínea p), na redacção emergente da revisão constitucional de 1997), já que a norma em apreciação em nada se prende com o exercício da função jurisdicional.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 43º, alínea g) e
237º, n.º 1, do Código de Processo Tributário aprovado pelo Decreto-Lei n.º
154/91, de 23 de Abril, que atribui aos serviços da administração fiscal competência para instaurar os processos de execução fiscal; b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 17 de Abril de 2002 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa