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Processo n.º 245/00
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por decisão do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, com data do dia 22 de Fevereiro de 2000, foi decidido absolver o arguido A, por, entre o mais e decisivamente, se ter aí considerado 'que enfermam de inconstitucionalidade as normas dos art.ºs 43º e 65º do D.L. 44623, de 10/10/62, quando conjugadas com o n.º 14º do edital da Direcção-Geral das Florestas, de 17 de Dezembro de 1999, decidindo-se, ao abrigo do art.º 204º da Constituição, não as aplicar ao caso concreto, devendo daqui ser retiradas todas as consequências legais'. Tal fundamentou-se em que:
'[...] Segundo o art.º 165º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa,
é da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal, salvo autorização do Governo. Por outro lado, o art.º 1º, n.º 1 do Código Penal, contendo a densificação normativa do princípio da legalidade, prescreve que a definição do que são crimes só pode ser feita por lei (com exclusão de quaisquer outras fontes de direito). Assim, daqui se retira que a determinação dos elementos típicos de um crime está sujeita a um princípio de reserva de lei, formal e material. Na primeira vertente, a reserva é meramente relativa, uma vez que a competência para legislar pode ser delegada no poder executivo; na Segunda vertente, e como decorrência da primeira, toma a forma de reserva de acto legislativo, ‘sendo indiferente que se trate de lei forma da AR ou de decreto-lei do governo’ (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, 1991, p. 800). Ora, in casu, a infracção de que vem acusado o arguido foi delimitada, não por acto legislativo (nem sequer pela portaria que rege o exercício da pesca na zona em apreço – sendo que nem esta o poderia fazer), mas por simples edital da Direcção-Geral das Florestas! Ou seja, um dos elementos do tipo-de-ilícito concreto aqui em questão – a dimensão da área de exclusão de pesca – foi definido por um acto de valor inferior a acto legislativo, o qual, aliás, nem tem sequer um específico carácter normativo. Eis-nos, portanto, perante uma inconstitucionalidade formal. Doutro ponto de vista, o primado da actividade legislativa incriminadora pertence, como já supra ficou dito, ao parlamento, podendo este, contudo, autorizar o governo a emanar decretos-leis sobre aquela matéria. Desta forma, e como corolário lógico desta restrição, está absolutamente vedado a uma Direcção-Geral criar ou modificar tipos de crime, sob pena de os actos normativos decorrentes dessa actividade se encontrarem viciados de inconstitucionalidade orgânica. O que também sucedeu, no caso sub judice..'
2. Interposto pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 70º, n.º
1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, o Procurador-Geral Adjunto em exercício de funções neste Tribunal conclui assim as suas alegações de recurso:
'1º - A norma resultante dos artigos 43º e 65º do Decreto-Lei n.º 44623, de 10 de Outubro de 1962, na parte em que tipifica e sanciona como crime de pesca ilegal a actividade piscatória exercida nas zonas aquáticas delimitadas e assinaladas pela Direcção-Geral das Florestas, em regulamento ou acto administrativo destinado a concretizar, em termos de mero juízo técnico, a protecção dos bens e valores ambientais subjacentes à norma incriminadora, não viola os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade.
2º - Termos em que – por não se verificar a inconstitucionalidade material das normas desaplicadas na decisão recorrida – deverá proceder o presente recurso.' O recorrido, notificado para responder, querendo, às alegações assim apresentadas, não apresentou qualquer alegação no prazo legal. Cumpre apreciar e decidir.
3. O presente recurso de constitucionalidade tem por objecto a apreciação da conformidade constitucional da norma resultante dos artigos 43º e 65º do Decreto nº. 44 623, de 10 de Outubro de 1962 em conjugação com o disposto no nº 14 do Edital da Direcção-Geral das Florestas de 17 de Dezembro de 1999. Dispõe aquele artigo 43º:
'É proibido pescar, em qualquer época do ano, nas zonas aquáticas designadas e assinaladas pela Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas para abrigos, desovadeiras e viveiros de reprodução, bem como, e independentemente de qualquer delimitação especial, dentro das eclusas, aquedutos ou passagens para peixes, e profissionalmente a menos de 200 m de barragens e 50 m de açudes, comportas, descarregadores ou quaisquer obras que alterem o regime normal de circulação de águas'. A sanção para a violação desta proibição vem prevista no artigo 65º do mesmo diploma legal:
'A pesca com inobservância do disposto no (...) artigo 43º (...), constitui crime punível com a pena de 10 a 30 dias de prisão e multa de 100$ a 2500$'. No presente caso, está em causa a conjugação da norma proibitiva do citado artigo 43º com o edital da Direcção-Geral das Florestas, de 17 de Dezembro de
1999 – publicado com expressa invocação do n.º 3 do do Regulamento da Zona de Pesca Profissional do Rio Lima aprovado pela Portaria nº 929/99, de 20 de Outubro –, o qual estabelece no seu nº 14:
'Tendo em vista a protecção das espécies aquícolas, é proibida a pesca nos seguintes locais: a) Açude de Ponte de Lima – 50 metros para montante e 200 metros para jusante;
(...)' A referida Portaria n.º 929/99, por sua vez, foi editada 'ao abrigo da base XXXIII da Lei n.º 2097, de 6 de Junho de 1959, da alínea d) do artigo 31º e dos artigos 41º e 84º do Decreto n.º 44623 (...)', criando uma zona de pesca profissional em determinado trecho do Rio Lima (1ª) e declarando 'proibida a pesca profissional em toda a rede hidrográfica do rio Lima, com exclusão da zona de pesca profissional criada nos termos do n.º 1 (...)'.
4. Sobre a questão de constitucionalidade a decidir no presente recurso foi proferido recentemente por este Tribunal, na 1ª secção, o Acórdão n.º 545/2000
(publicado no Diário da República, II série, n.º 31, de 6 de Fevereiro de 2001), que concluiu no sentido da não inconstitucionalidade da norma em causa. Conforme se disse nessa decisão, em termos igualmente aplicáveis ao presente caso:
«(...) o Regulamento aprovado pelo Decreto nº 44623, relativamente a pesca em locais onde esta é proibida, apenas pune (com ressalva do disposto no artigo
42º, que para o caso não interessa) e como crime, no citado artigo 65º, as condutas previstas no artigo 43º, ou seja: a) a pesca, em qualquer época do ano nas zonas aquáticas designadas e assinaladas pela Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas para abrigos, desovadeiras e viveiros de reprodução e, b) independentemente de qualquer delimitação especial, dentro das eclusas, aquedutos ou passagens para peixes e, profissionalmente, a menos de 200 metros de barragens e 50 metros de açudes, comportas, descarregadores ou quaisquer obras que alterem o regime normal de circulação das águas. No caso, nunca a punição se poderia fundar na 1ª parte do citado artigo 43º - o arguido não se encontrava a pescar em zona aquática designada e assinalada pela referida Direcção-Geral (hoje Direcção-Geral das Florestas) para abrigos, desovadeiras e viveiros de reprodução. Foi, aliás, a 2ª parte do preceito que a sentença recorrida ponderou para concluir que os limites estabelecidos no Edital eram diversos do que naquela se dispunha, sem que nela houvesse qualquer reenvio. Ora, afigura-se que, ressalvando 'qualquer delimitação especial', o citado artigo 43º, ao mesmo tempo que estabelece a proibição de pesca em todos os açudes e fixa a referida fronteira de 50 metros, 'recebe' igualmente outros limites na definição dessa área de proibição. E que delimitações especiais podem ser essas ? Desde logo, as que podem resultar da regulamentação de zonas de pesca profissional que o citado artigo 31º alínea d) permite demarcar mediante portaria do Secretário de Estado da Agricultura, regulamentação que, no caso da pesca no rio Lima, admite a definição, por edital da Direcção-Geral das Florestas de zonas de protecção (onde é proibida a pesca), sinalizadas com placas previstas na legislação em vigor. Pode, pois, afirmar-se que a 2ª parte do artigo 43º do Regulamento aprovado pelo Decreto nº 44623 prevê directa e expressamente uma proibição – a de pescar em todo e qualquer açude (com uma área que delimita) – reenviando para outras normas, não eventuais alterações a essa proibição, mas a fixação de limites especiais à área de proibição. Compreende-se, aliás, que o faça. A multiplicidade de situações possíveis nas inúmeras bacias hidrográficas do país, exigindo, no âmbito de uma política de fomento piscícola e de protecção das espécies (e da própria pesca, como actividade lúdica ou profissional), regulamentação (e proibições) específicas, não pode ser abrangida por um diploma geral aplicável em todo o território nacional. Estará, assim violado o princípio da legalidade em matéria penal ? Afigura-se que não. Antes do mais, importa acentuar que o Tribunal apenas pode ajuizar se ocorre incompatibilidade material com as normas ou princípios constitucionais por força do disposto no artigo 290º nº 2 da CRP, já que sendo o Decreto nº 44623 anterior
à Constituição, está vedado conhecer de eventuais inconstitucionalidades orgânicas ou formais. Sendo assim, o que está em causa é saber se - por força dessa remissão ou reenvio que decorre da letra do próprio artigo 43º do Decreto nº. 44 623 - a relevância axiológica do bem a tutelar e os elementos constitutivos do tipo se alcançam apenas e directamente através daquela norma legal ou se, pelo contrário, o bonus pater familias necessita de a completar com as disposições constantes do edital emitido pela Direcção-Geral das Florestas, ou seja, por outras palavras, saber se a dimensão axiológica do bem, o desvalor da acção, a consciência do ilícito se alcançam através apenas do artigo 43º em conjugação com o artigo 65º do Decreto nº. 44 623, que estabelece a respectiva punição, ou se o tipo só está completo em termos de permitir ao agente avaliar a ilicitude da sua conduta e determinar o seu comportamento de acordo com essa avaliação com recurso à incorporação da norma constante do edital, em especial do seu nº. 14. A resposta a esta questão só pode ser no sentido do primeiro termo da alternativa. Na verdade, o nº. 14 do edital não cria/modifica um novo tipo legal de crime, diferente e autónomo do previsto e punido pelos artigos 43º e 65º do Decreto nº.
44 623, de 10 de Outubro de 1962.
É que pela norma incriminatória e independentemente do reenvio normativo – que se cinge à limitação da área de proibição de pesca num determinado açude – o comportamento sancionado é objectivamente determinável, tornando-se claro o juízo de censura penal para os cidadãos que, deste modo, podem orientar a sua conduta de acordo com esse juízo normativo (cfr. 'Direito Penal – Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime' - apontamentos e materiais de estudo da cadeira de Direito Penal segundo as lições dos Profs. Figueiredo Dias e Costa Andrade, pag. 172). Saliente-se que a norma remissiva não delega na Direcção-Geral de Florestas o poder de definir o conteúdo da incriminação, já que os critérios do ilícito penal (desvalor de acção, desvalor de resultado e identificação do bem jurídico tutelado) e os elementos constitutivos do tipo se encontram expressamente previstos nos artigos 43º e 65º do Decreto nº. 44 623, de 10 de Outubro de 1962
(cfr. em caso semelhante o Acórdão nº. 427/95 in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 31º vol., p. 697 e segs.). Neste enquadramento, a prescrição do nº 14 do Edital tem, como bem acentua o Exmo Magistrado do Ministério Público 'uma dimensão essencialmente técnica e casuística – traduzindo, deste modo, não a formulação de um juízo valorativo de natureza criminal mas a sua execução e concretização (...)' Pelo que se deixa dito, não parece que se possa qualificar a norma do artigo 43º do Decreto nº 44623, como norma legal em branco, considerando como normas penais em branco aquelas que '(...) que cominam uma pena para comportamentos que não descrevem, mas se alcançam através de uma remissão da norma penal para leis, regulamentos ou inclusivamente actos administrativos autonomamente promulgados em outro tempo e lugar' (cfr. Figueiredo Dias e Costa Andrade, ob. cit., pp. 171 e 172) – a concreta delimitação espacial das zonas de exclusão de pesca – açudes, no caso em apreço – não se configura como elemento constitutivo essencial do tipo de ilícito, impedindo que o agente oriente a sua conduta de acordo com o direito. Estamos, assim, perante uma situação em que o reenvio se circunscreve aos casos relativamente aos quais 'a norma penal indica já por si mesma a esfera e conteúdo de desvalor que a norma pretende impor e se relega para o regulamento tão só a enunciação técnica detalhada (...) enunciação técnica que, ainda, deve ser expressão de um critério técnico já locaIizável na norma penal de fonte legislativa' (citando Bricola, Luis Arroyo Zapatero 'Princípio de legalidad y reserva de ley en materia penal' in 'Revista Española de Derecho Constitucional' Maio/Agosto 1983, t. 8, pags. 34). O princípio da legalidade não resulta assim violado, nomeadamente no plano da determinabilidade, visto que a utilização do reenvio normativo, que assinala in casu que a pesca no açude de Ponte de Lima é proibida, não obsta à determinabilidade objectiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos; enfim, a certeza do direito, a cognoscibilidade acerca de quais as condutas puníveis não é minimamente afectada pela técnica de reenvio utilizada.» Remetendo para estes fundamentos pode, pois, concluir-se que a norma em questão não é inconstitucional – tal norma estabelece já por si a proibição penal e prevê os diversos elementos constitutivos do tipo, abrangidos pela ratio do princípio da legalidade, apenas remetendo para edital a fixação da concreta delimitação espacial, por aplicação de critérios técnicos a cada área.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 43º e 65º do Decreto n.º 44 623, de 10 de Outubro de 1962 em conjugação com o disposto no n.º
14 do Edital da Direcção-Geral das Florestas de 17 de Dezembro de 1999; b) Por conseguinte, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da sentença recorrida de acordo com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 17 de Abril de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa