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Proc.º n.º 449/2001.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Nos autos de impugnação judicial relativa à impugnação do imposto sucessório que foram instaurados por M..., O..., J... e L..., foi, em 6 de Outubro de 2000, proferida, pelo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal agregado do Funchal, sentença que julgou improcedente tal impugnação.
Interposto recurso pelos impugnantes, o Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 2 de Maio de 2001, concedeu-lhe provimento.
Pode ler-se, nesse aresto, para o que ora releva.
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À data em que ocorreu o facto tributário em que se baseia a impugnada liquidação (sucessão mortis causa), vigorava o CPCI, diploma que não estabelecia prazo geral de caducidade do direito de liquidar tributos, sendo que cada cédula fixava o seu - cf. artigos 43º do CIC, 35º do CIP, 238º e 239º do CCP, 28º do CMV, 94º do CCI e 36º do CIT.
Pela Lei n.º 37/90, de 10 de Agosto, ficou ‘o Governo autorizado a elaborar um Código de Processo Tributário, em substituição do ... Código de Processo das Contribuições e Impostos’ - artigo 1º.
Entre outros parâmetros para o novo compêndio adjectivo, fixou tal autorização parlamentar o de serem ‘fixados prazos gerais de 10 anos para prescrição das obrigações tributárias e de 5 anos para caducidade da liquidação de impostos’ - artigo 3º.
Como bem refere o distinto PGA, ‘a Assembleia quis mandar estabelecer um só prazo de caducidade para todos os impostos’. Claramente, foi intenção dos parlamentares a consagração de um só prazo de caducidade (idem, quanto ao de prescrição) para a generalidade das obrigações tributárias.
Sucede que no artigo 4º do DL n.º 154/91, de 23.IV (diploma que aprovou o Código de Processo Tributário), se dispôs que os novos prazos de caducidade e prescrição só serão aplicáveis à sisa e ao imposto sobre as sucessões e doações após introdução no respectivo Código das normas necessárias de adaptação.
Como assim, o Governo postergou aqui o sobredito artigo 3º, afastando, ainda que temporariamente, da aplicação dos artigos 33º, 1, e 34º, 1, do CPT o imposto sucessório e a sisa.
Ora, é sabido que ‘os decretos-lei autorizados que não respeitem a lei de autorização ... são inconstitucionais, pois que, tratando-se de matéria de competência reservada da AR, só é lícito ao Governo legislar sobre ela nos precisos termos da autorização. A desconformidade com a lei de autorização implica directamente uma ofensa à competência da AR e, logo, uma inconstitucionalidade orgânica, total ou parcial. Podem ser vários os motivos da inconstitucionalidade: exceder os limites da autorização (legislar sobre matéria diferente ou para além da autorizada), desrespeito do sentido e extensão da autorização (legislar em sentido divergente do autorizado)’ - Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, nota XXXVII, a págs. 682 da CRP por si comentada.
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Como assim, o artigo 4º do DL 154/91 enferma, efectivamente, de inconstitucionalidade orgânica, por isso que haverá de considerar-se que o artigo 33º do CPT abarcou, desde sempre, todos os impostos.
Segundo o seu n.º 1 (redacção originária), o direito à liquidação de impostos e outras prestações de natureza tributária caduca se não for exercido ou a liquidação não for notificada ao contribuinte no prazo de cinco anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo daquele em que se verificar o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu.
Temos, pois, que, em 1 de Julho de 1991 (dia da entrada em vigor do CPT - cfr. artigo 2º, 1, do DL n.º 154/91), o prazo de caducidade de liquidação do imposto sucessório passou a ser de cinco anos, contados da data do óbito do de cujus.
No caso dos autos, este ocorreu em 6.XII.1980, pelo que, em
1.VII.1991, ainda faltavam nove anos para se perfazer o velho prazo de caducidade do artigo 92º do CIMSISSD - 20 anos.
Como assim, é de aplicar o novo prazo de caducidade - 5 anos -, por inferior àquele remanescente, contando-se, porém, a partir da entrada em vigor do CPT (artigo 297º, 1, do C Civil, tradutor de um princípio geral decorrente da CRP).
Deste modo, encontramos o dia 1 de Julho de 1996 como data limite para a notificação da liquidação do imposto sucessório em causa.
Ora, do teor da alínea c) do probatório resulta que ela ocorreu em momento ulterior, sendo que a informação de fls. 32-34 nos dá conta de que só em
22 de Abril de 1998 se procedeu a tal liquidação.
Temos, pois, que a impugnada liquidação foi feita fora do prazo legal, perfilando-se, efectivamente, a alegada caducidade.
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É deste aresto que, pelo Representante do Ministério Público e fundado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vem interposto o vertente recurso.
2. Determinada a efectivação de alegações, rematou o recorrente a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
' 1 - A matéria atinente ao regime de caducidade da liquidação dos impostos situa-se no âmbito da ‘reserva de lei fiscal’, por directamente conexionada com o tema ‘garantias dos contribuintes’.
2 - Não é lícito ao legislador, no exercício de autorização legislativa, proceder a uma verdadeira ‘interpretação autêntica’ dos termos da credencial parlamentar que lhe foi outorgada, de modo a estabelecer de forma expressa e autónoma, em norma transitória, quais os ‘prazos especiais’ de caducidade da liquidação que não são afectados pelo estabelecimento dos ‘prazos gerais’ de caducidade da liquidação dos impostos.
3 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica da norma desaplicada na decisão recorrida'.
Por parte dos recorridos não foi apresentada alegação.
Cumpre decidir.
II
3. É facto assente que, na vigência do Código de Processo das Contribuições e Impostos, não era nele estabelecido qualquer norma geral que consagrasse um prazo de caducidade do «direito à liquidação dos impostos»
(quanto à prescrição das dívidas de impostos - que extinguia o direito do Estado
à «cobrança» do «imposto» - veja-se o artº 27º daquele corpo de leis, que, de qualquer modo, não era aplicável a outros regimes contributivos ou, se se quiser, a outras prestações tributárias - verbi gratia, taxas de radiodifusão, multas fiscais e contribuições para a Segurança Social - cfr. anotação a esse artigo efectuada por Alfredo José de Sousa e José da Silva Paixão, in Código de Processo das Contribuições e Impostos, Comentado e Anotado, 2ª edição, 146).
Aquela caducidade ocorria, relativamente a muitos impostos, em cinco anos, como se extraía, então, por exemplo, dos artigos 43º, do Código do Imposto de Capitais, 35º, do Código de Imposto Profissional, 238º e 239º, do Código da Contribuição Predial, 28º, do Código do Imposto de Mais-Valias, 94º, do Código da Contribuição Industrial, 41º, do Código do Imposto Complementar, e 36º, do Código do Imposto de Transacções.
Significa isto que, na hipótese de um determinada cédula consagrar um maior prazo de caducidade, era a esse que se teria de atender.
Era o que sucedia, por exemplo, com o hoje denominado Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto Sobre Sucessões e Doações, que consagrava o prazo de vinte anos (cfr. o seu artº 92º do Código da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações), posteriormente fixado em dez com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 119/94, de 7 de Maio, editado ao abrigo da autorização legislativa dada pela Lei nº 75/93 de 20 de Dezembro.
4. Com a Lei nº 37/90, de 10 de Agosto, a Assembleia da República conferiu autorização ao Governo para elaborar um Código de Processo Tributário, em substituição do Código de Processo das Contribuições e Impostos.
De entre as linhas rectoras do elaborando código, surpreende-se a que consta do artº 3º daquela Lei, que dispôs que seriam fixados prazos gerais de 10 anos para prescrição das obrigações tributárias e de 5 anos para caducidade da liquidação dos impostos.
Pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril (rectificado no Diário da República, 1ª Série-A, de 29 de Junho de 1991), veio a ser aprovado o Código de Processo Tributário (hoje já não em vigor, pois que foi revogado pelo Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº433/99, de 26 de Outubro, o qual, posteriormente, veio a sofrer as alterações decorrentes da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), e aí - o nº 1 do seu artº 33º (redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 47/95, de 10 de Março) -, veio dispor-se que o direito à liquidação de impostos e outras prestações tributárias caduca se a liquidação não for notificada ao contribuinte no prazo de cinco anos contados,
... , nos impostos de contribuição única, da data em que o facto tributário ocorreu.
No diploma aprovador do Código de Processo Tributário (o já falado Decreto-Lei nº 154/91) veio, porém, a estabelecer-se que os novos prazos de caducidade ... só serão aplicáveis à sisa e ao imposto sobre as sucessões e doações após a introdução no respectivo Código das normas necessárias de adaptação.
É, pois, esta norma, de índole temporária, cuja conformidade com a Constituição constitui objecto do vertente recurso, sendo certo que não está aqui em causa saber, por isso se situar fora dos poderes cognitivos deste Tribunal, do acerto da solução dada pelo aresto impugnado quanto à questão de saber do modo e do regime aplicável à contagem do prazo de caducidade.
5. O recorrente, começando por entender que a matéria que concerne à fixação dos prazos de caducidade da liquidação das obrigações tributárias, porque ligada às garantias dos contribuintes, se situa no âmbito da denominada
«reserva de lei fiscal», continua expendendo que só é lícito ao Governo emitir normação sobre ela se se encontrar parlamentarmente autorizado, vindo a concluir que a norma em apreço mais não fez do que derrogar a imediata aplicabilidade dos prazos gerais consagrados no artº 33º do Código de Processo Tributário, dessa sorte fazendo uma 'verdadeira ‘interpretação autêntica’' do teor da autorização legislativa constante do artº 3º da Lei nº 37/90, no ponto em que, 'dados os termos de tal autorização legislativa, apenas era lícito ao legislador fixar, no Código de Processo Tributário, os prazos gerais de caducidade da liquidação dos impostos, cumprindo naturalmente aos tribunais, na sua actividade de interpretação e aplicação do direito, ajuizarem sobre se o regime estabelecido nos artigos 33º e 34º do Código de Processo Tributário, tinha ou não determinado a revogação das normas especiais que - nos vários impostos cedulares - regiam sobre tal matéria'. E, na sequência do seu entendimento, concluiu pela inconstitucionalidade orgânica no normativo sub iudicio.
A primeira questão é a de saber, em primeiro lugar, se a norma em causa deve ser perspectivada como versando matéria conexionada com as garantias dos contribuintes e, consequentemente, sujeita à reserva de lei parlamentar.
Neste particular, o Tribunal perfilha a óptica de harmonia com a qual, efectivamente, a matéria respeitante à caducidade da liquidação dos impostos, há- -de ser considerada como algo ligado às garantias dos contribuintes.
De facto, porque a caducidade determina a extinção do direito do Estado à cobrança do imposto, uma vez extinto aquele direito, ficará o contribuinte com jus à não exigibilidade do tributo que eventualmente venha a ser liquidado fora do prazo para tanto estipulado pela lei, anotando-se que o nº
3 do artigo 103º da Constituição dispõe que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos ... cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.
Trata-se, pois, de uma garantia do contribuinte que, perante o estatuído no nº 2 daquele artigo, tem de ser determinada por lei.
As garantias dos contribuintes, como tem sido realçado pela jurisprudência deste Tribunal (cfr., verbi gratia, os Acórdãos números, 321/89,
231/92, 268/97, 504/98 e 63/2000, publicados, o primeiro, na 1ª Série do Diário da República de, 20 de Abril de 1989, e os restantes na 2ª Série daquele jornal oficial de, respectivamente, 2 de Novembro de 1992, 22 de Maio de 1997, de 10 de Dezembro de 1998 e de 27 de Maio de 2001) e pela doutrina (cfr. Cardoso da Costa, in O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Perspectivas Constitucionais, Nos 20 anos da Constituição de 1976, 2º Vol., maxime, 409, Ana Paula Dourado, O Princípio da Legalidade Fiscal na Constituição Portuguesa, na mesma colectânea de textos, 438 e segs., Alberto Xavier, Conceito e natureza do acto tributário,
343 e segs., Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 32 e 38 e segs.), é algo que, indubitavelmente, se deve considerar como sujeito à denominada
«reserva de lei formal e parlamentar».
É certo que daquela jurisprudência se pode extrair que a normação tocante à liquidação e cobrança dos impostos se não encontra na reserva de lei parlamentar de criação de impostos e sistema fiscal, consequentemente podendo tal matéria ser regulada por decretos-leis.
E, neste particular, a doutrina tem colocado algumas interrogações
(cfr. Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, 107e segs, Pamplona Corte-Real, Curso de Direito Fiscal, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 83, Casalta Nabais, Contratos Fiscais, 246).
Simplesmente, se, na normação atinente à fase procedimental ou burocrática da liquidação dos impostos, se incluir algum preceito que, ao menos directamente, reja sobre situações ou circunstâncias que devam ser perspectivadas como estatuindo uma garantia dos contribuintes, então não se divisa na doutrina ou jurisprudência qualquer postura de onde decorra que tal preceito não tenha de estar submetido à reserva de lei parlamentar.
Significa isso que, concluindo-se, como se concluiu, que o estabelecimento da figura da caducidade, é representativo de uma garantia do contribuinte, no passo em que desenha uma «segurança» jurídica, concluir-se-á também que a edição normativa dessa figura terá de ser levada a efeito pelo Parlamento ou pelo Governo devidamente credenciado pela Assembleia da República.
6. Como se disse já, a Lei nº 37/90, no citado artº 3º, determinou que o editando Código de Processo Tributário teria, inter alia, de fixar um prazo geral de 5 anos para a caducidade das obrigações tributárias e, por isso, o Governo, ao editar aquele compêndio normativo, estabeleceu a regra que hoje consta do nº 1 do seu artº 33º.
Este indirizzo - que apontou para a obrigatoriedade de consagração no futuro Código de Processo Tributário de uma regra segundo a qual se estabeleceria um determinado prazo geral para a caducidade da liquidação -, por um lado, poderá (atendendo a que, até então, se não estabelecia qualquer normação de onde decorresse a estipulação de «prazos gerais» para a prescrição das obrigações tributárias e para a caducidade da liquidação dos tributos) ser passível de um entendimento segundo o qual todos os prazos ínsitos nos vários impostos se haverão de considerar derrogados; e, por outro, é igualmente defensável interpretar a prescrição legal constante da lei de autorização legislativa em termos de se entender que, a considerar-se que haverá, de certo modo, uma «regra geral» para os prazos de caducidade (regra essa unicamente decorrente de muitos dos compêndios normativos tocantes a diferentes impostos consagrarem idêntico prazo para a caducidade), isso não significava que o legislador parlamentar quisesse, ao prescrever a obrigatoriedade de «prazos gerais», que, com a entrada em vigor do Código de Processo Tributário, os lapsos
(ou, ao menos, um dos lapsos) temporais ali estatuídos fossem (ou fosse) aplicáveis (ou aplicável) à fase da liquidação do ou dos impostos em que aquela
«regra geral» não fosse seguida, ou seja, em que o prazo de caducidade fosse diferente do da generalidade dos outros impostos.
A assunção de qualquer um daqueles dois entendimentos, releva, assim, como não pode deixar de ser, do recurso a uma hermenêutica interpretativa.
Ora, o que se passou é que o legislador autorizado (in casu, o Governo), ao editar a norma que veio a constituir o artº 4º do Decreto-Lei nº
154/91, veio, em rectas contas, a perfilhar uma interpretação da credencial parlamentar que indiscutivelmente aponta para o segundo dos entendimentos atrás elencados.
Uma lei de autorização legislativa, como qualquer lei, é passível de interpretação jurídica, e o raciocínio interpretativo, claramente, deve ser prosseguido pelo Governo ao fazer uso da credencial que lhe foi dada.
Ao Tribunal Constitucional compete, no confronto de um decreto-lei autorizado com a lei autorizadora, avaliar se as disposições daquele se inserem ou integram no sentido dos normativos desta, o que inculca que há-de, assim, avaliar o sentido da lei credenciadora.
Nesta perspectiva, e como se considera que o mencionado segundo entendimento não é afastável pelo teor da norma do artº 3º da Lei nº 37/90, haverá de concluir-se que o Governo, ao editar o artº 4º do Decreto-Lei nº
154/91, não desbordou o sentido do que se comanda naquele artº 3º e, consequentemente, não se poderá falar em que a norma em apreço padeça de inconstitucionalidade orgânica.
III
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, determinando-se a revogação do acórdão impugnado, a fim de o mesmo ser reformado de harmonia com o juízo ora efectuado sobre a questão de inconstitucionalidade. Lisboa, 17 de Abril de 2002 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa ( Votei a decisão - mas, no que me diz respeito, o fundamento que a resposta é, tão-só – 'subsidiário'. É isso porque não se me afigura que a fixação do prazo – (da duração do prazo – de caducidade da liquidação deva considerar-se uma 'garantia' dos contribuintes, para o efeito da reserva parlamentar em matéria de impostos feita esta ressalva, vejo-me, neste momento, na contingência de não poder justificar tal ponto de vista, por razões de celeridade processual).