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Processo n.º 537/00
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório:
1. A foi condenado, por sentença do Tribunal da Comarca de Santo Tirso de 3 de Outubro de 1996, na pena de 18 meses de prisão, com execução suspensa pelo período de dois anos, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos
11º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro e 313º e
314º, alínea a), do Código Penal de 1982. Antes de proferida a decisão e no decurso do processo criminal a denunciante, B, em audiência de julgamento, declarou desistir da queixa, tendo esta declaração sido aceite pelo arguido. No entanto, como à data os factos em questão preenchiam um tipo de crime de natureza pública, tal desistência não operou quaisquer efeitos relevantes. Entretanto, surgiram alterações legislativas ao regime jurídico-penal do cheque sem provisão com o Decreto Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro tendo, consequentemente, sido alterada a natureza do tipo legal de crime: de público passou a semi-público. Desta forma, em 26 de Maio de 2000 o Procurador-Adjunto promoveu no sentido de se considerar 'sem efeito a condenação respectiva e cessados os respectivos efeitos penais', nos seguintes termos:
'Concordantemente com a decisão da 2ª Secção do Tribunal Constitucional que, no seu Acórdão n.º 677/98, de 2/DEZ/98 (pr. N.º 194/97), decidiu ‘Julgar materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no n.º 4 do artigo 29º da Constituição, a norma constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória’, cremos que, por tal motivo não devendo produzir efeito a ressalva final daquele n.º 4 do artigo 2º do Código Penal também no caso dos autos, deverá alcançar relevo e eficácia retroactiva a transformação verificada com a entrada em vigor no dia 1/JAN/98 do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/DEZ, de que resultou além do mais que o procedimento criminal pelo crime de emissão de cheque sem provisão passou a depender de queixa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 11º-A daquele Decreto-Lei n.º 454/91. Atento o exposto e o disposto nos citados normativos, no n.º 2 do artigo 116º do Código Penal e no artigo 51º do Código de Processo Penal, promovo que, na aplicação ao arguido do novo regime penal mais favorável decorrente da verificada transformação em crime semi-público do crime público de emissão de cheque sem provisão p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos
11º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/DEZ, e 313º e 314º, a) do Código Penal (ambos os diplomas nas respectivas redacções originárias) por que nestes autos foi condenado, se homologue e declare operante quanto a ele a desistência de queixa tempestivamente formulada pela denunciante em audiência de julgamento e antes da publicação da sentença condenatória (...).'
2. Em 12 de Junho de 2000, o juiz a quo decidiu o seguinte:
'(...) Ora, conforme refere a douta promoção antecedente, a ressalva final contida no n.º 4 do art. 2º do Código Penal (‘... salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado’) foi julgada materilamente inconstitucional por violar o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável. E o caso em apreço será uma dessas situações em que se impõe a aplicação retroactiva do actual regime do crime de emissão de cheque sem provisão, não obstante já ter havido condenação por sentença transitada em julgado. Assim, tendo em conta a vontade manifestada pelo queixoso e pelo arguido, a douta promoção antecedente, o preceito legal já citado e, ainda, o disposto nos arts. 2º, n.º 4 (desprovido daquela parte final julgada materialmente inconstitucional) e 116º, n.º 2, do Código Penal com a actual redacção e no art.
51º do C.P.P., homologo aquela desistência de queixa, por ter passado a ser juridicamente relevante e, consequentemente, declaro sem efeito a sentença condenatória proferida nestes autos e respectivos efeitos penais.' Desta decisão vem interposto o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma contida na parte final do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal
'na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória'.
3. Notificado para apresentar as suas alegações, o Exm.º Procurador-Geral adjunto junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso e, por conseguinte, confirmar-se a decisão recorrida, nos seguintes termos:
'A questão de constitucionalidade ora em apreço é a de saber se é ou não conforme à Lei Fundamental a norma do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal de
1982, na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que conferiu natureza semi-pública ao crime de emissão de cheque sem provisão, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória. O n.º 4 do artigo 29º da Constituição determina que se apliquem retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. Conforme se afirma no acórdão n.º 677/98, o fundamento substancial para esta regra decorre directamente do princípio da necessidade das penas (ou da tutela penal) ou da máxima restrição das penas. Ponderou-se no mesmo aresto que poderia invocar-se a tutela constitucional do caso julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal. Mas logo de seguida, responde-se que a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar legítima a restrição ao princípio da lei penal mais favorável, sabido, como é, que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, considerando-se que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no n.º 4 do artigo 29º da Constituição implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação não afaste a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz efeitos substancialmente análogos. Decidiu-se, assim, julgar materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no n.º 4 do artigo 29º da Constituição, a norma constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória.' E concluiu, assim, que:
'Tendo sido neste sentido que foi proferida a decisão dos presentes autos, louvando-se, aliás, no citado acórdão n.º 677/98, deste Tribunal, deverá negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.' Por parte do recorrido não foram apresentadas quaisquer alegações. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos:
4. O presente recurso vem interposto, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, de decisão judicial que recusou a aplicação, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, da norma contida no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal, na parte em que, devido ao trânsito em julgado da decisão condenatória, veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-publico um crime público, quando tenha havido desistência da queixa – como aconteceu, no presente caso, embora de forma irrelevante segundo a lei vigente à data, ainda antes da condenação do arguido.
5. Ora, como se nota nas alegações do Ministério Público e foi já invocado na decisão recorrida (remetendo para promoção do Ministério Público na qual se invocava expressamente a jurisprudência do Tribunal Constitucional), sobre tal questão já se pronunciou este Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 677/98
(agora publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 41º, págs. 501 e segs.). Pode ler-se neste aresto:
«3. É nos seus artigos 1º e 2º que o Código Penal estabelece as regras relativas
à aplicação no tempo das normas penais. A par do princípio 'tempus regit actum', consagrado no n.º 1 do artigo 2º (cfr. a primeira parte do n.º 4 do art. 29º da Constituição), cuja dimensão mais importante se concretiza na irretroactividade da lei penal incriminadora (n.º 1 do artigo 1º do Código Penal e n.º 3 do artigo
29º da Constituição), prescreve este diploma um outro princípio, complementar do anterior, nos números 2 e 4 do seu artigo 2º: o da retroactividade da lei mais favorável. Distingue o Código Penal, quanto a este último ponto, duas hipóteses: a de o facto, punível segundo a lei vigente no momento da sua prática, deixar de o ser, porque a nova lei o eliminou do número das infracções (n.º 2 do artigo 2º); e a de 'as disposições penais vigentes no momento da prática do facto' serem
'diferentes das estabelecidas em leis posteriores' (n.º 4 do mesmo artigo 2º). Incluem-se, assim, na primeira as situações em que é eliminada a punibilidade de um facto concreto, independentemente da via técnica através da qual se alcançou tal resultado (eliminação da norma incriminadora, alteração da descrição do facto típico, aditamento de uma nova causa de justificação ou de exculpação, ou alargamento do âmbito de aplicação das já existentes...). Diferentemente, na segunda contemplam-se os casos em que o facto, que era punível com base na lei antiga, continua a ser punível à luz da lei nova, mas agora com diferente regime penal (é alterada a pena que concretamente deve ser aplicada, são alteradas as condições da suspensão da execução da pena, os casos ou os prazos em que pode ser concedida a liberdade condicional, por exemplo). A esta distinção vem a corresponder uma diferente estatuição. Assim, por força do n.º 2 do artigo 2º, a aplicação da lei mais favorável, que elimina a incriminabilidade do facto concreto praticado, acarreta uma não punição do agente, e, em consequência, a cessação da execução da pena e dos efeitos penais decorrentes de uma eventual condenação, ainda que transitada em julgado. Ao invés, a aplicação da lei nova mais favorável, quando não afasta a incriminabilidade do facto, está legalmente condicionada à não formação anterior de caso julgado da sentença condenatória, nos termos do n.º 4 do artigo 2º. Substancialmente, a diferença de regimes explicar-se-ia pela circunstância de neste último caso não haver 'uma nova avaliação quanto à natureza criminal do facto, que permanece punível', apenas se entendendo 'que bastará para o reprimir uma sanção mais leve ou que comporte efeitos penais menos graves' (MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA, 'Aplicação da lei criminal no tempo e no espaço', Jornadas de Direito Criminal – o Novo Código Penal e Legislação Complementar, Lisboa,
1993, pág. 99). O problema de constitucionalidade suscitado reside em saber se é ou não conforme com a Lei Fundamental a norma do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal de 1982, na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória.» Também no presente caso é esta a questão de constitucionalidade em causa. E também no presente caso, não cabe questionar o eventual acerto da escolha feita pelo preceito do artigo 2º, n.º 4, do Código Penal, e não pelo n.º 2 do mesmo artigo, uma vez que foi efectivamente a parte final do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal a norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida.
6. Pode, assim, continuar-se a acompanhar o citado Acórdão n.º 677/98, no qual, sobre o confronto da norma em causa com o princípio da aplicação retroactiva da lei, se escreveu:
«4. É no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais que a Constituição consagra os princípios básicos relativos à 'aplicação da lei criminal' (artigo 29º). Entre eles, contam-se o princípio da legalidade, o princípio da irretroactividade da lei incriminadora, o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, o princípio ne bis in idem e o direito
à revisão da sentença e à indemnização em caso de condenação injusta. Na parte que agora nos importa considerar, o n.º 4 do artigo 29º determina que se aplicam 'retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'. Não se afigura difícil encontrar o fundamento substancial para esta regra, que decorre directamente do princípio que a doutrina tem denominado da necessidade das penas (ou da tutela penal) ou da máxima restrição das penas ( Acórdão deste Tribunal n.º 290/97, de 12 de Março de 1997, publ. no Diário da República, II, de 15 de Maio de 1997 e FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, 'Direito Penal – Questões fundamentais – a doutrina geral do crime', em curso de publicação, Coimbra, 1996, págs. 66 e segs.; MARIA FERNANDA PALMA, 'Direito Penal - Parte Geral', Lisboa, 1994, pág. 65 e segs.; TERESA PIZARRO BELEZA, 'Direito Penal',
1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 50 e segs.; JOSÉ SOUSA E BRITO, 'A lei penal na Constituição', Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 178, págs. 199 e segs. e 222 e segs.; TAIPA DE CARVALHO, 'Sucessão de Leis Penais', 2ª edição, Coimbra, 1997, págs. 102 e segs.). Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na verificação de que 'qualquer criminalização e respectiva punição' (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, 'A determinação da medida da pena privativa de liberdade', Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado no n.º 1 do artigo 27º da Constituição). Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do n.º 2 artigo 18º, quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Pode afirmar-se, assim, que a garantia da aplicação da lei penal mais favorável se limita a exprimir, ou a traduzir, na matéria dos limites temporais da aplicação da lei penal, o princípio da necessidade das penas. Na verdade, se, em momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária, torna-se constitucionalmente ilegítima.
5. Como já se viu, a norma do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal foi interpretada pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de não permitir a aplicação retroactiva da lei que transforma em crime semi-público um crime público – lei que é, por isso, mais favorável – e de impedir, consequentemente, a relevância da desistência da queixa apresentada. Apurado o fundamento do n.º 4 do artigo 29º da Constituição, impõe-se a conclusão de que se verifica uma contradição formal entre esta disposição e a norma do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, com o alcance com que foi aplicada pelo acórdão recorrido (considerando existir tal contradição em todos os casos abrangidos pelo n.º 2 do artigo 4º do Código Penal, TERESA PIZARRO BELEZA, op.cit., 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 455, que sustenta que a parte final do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal deve 'considerar-se inconstitucional face ao disposto no n.º 4 do artigo 29º').
É necessário, no entanto, averiguar se tal contradição é admissível, o que só ocorrerá se constituir uma restrição constitucionalmente permitida de direitos, liberdades e garantias, em razão da sua necessidade, adequação e proporcionalidade relativamente à defesa de outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos. Com efeito, '... as restrições e os condicionamentos dos direitos fundamentais ... só se justificam quando, para além do mais, se mostrem necessários e adequados à salvaguarda de outros direitos ou valores constitucionais. Por outro lado, têm sempre que ser proporcionados. E, tratando-se de restrições, têm que deixar intocado o conteúdo essencial do respectivo preceito constitucional (cf. artigo 18º da Constituição)
(acórdão n.º 392/89 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II, de 14 de Setembro de 1989). Pode desde logo invocar-se, precisamente, a tutela constitucional do caso julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal . Mas a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar legítima a restrição ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável.
É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, 'Manual de Direito Constitucional', tomo II, 3ª edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, 'Direito Constitucional e Teoria da Constituição', Coimbra, 1998, pág. 257), se trata, sem qualquer dúvida, de um valor constitucionalmente protegido. Torna-se, todavia, indispensável demonstrar que o valor constitucional do caso julgado deva prevalecer nestas hipóteses perante o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável. Afirmou-se no acórdão n.º 644/98 deste Tribunal, ainda inédito [e entretanto publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 41º, págs. 367 e segs.], haver que averiguar se 'aceite a consagração constitucional do valor ou interesse consistente no respeito pelo caso julgado, e não podendo deixar de perspectivar a regra constante da parte final do n.º 4 do artigo 29º como uma garantia constitucional fundamental, ... se, atentos os números 2 e 3 do artigo
18º, a restrição operada pela norma em apreço não ultrapassa o necessário para a salvaguarda desses valor ou interesse e se posterga o alcance mínimo daquela garantia'. Ora, a verdade é que, independentemente de outras considerações, se considera que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no n.º 4 do artigo 29º da Constituição implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação não afaste a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz efeitos substancialmente análogos. Não estando em causa, neste processo, averiguar da conformidade constitucional da não aplicação retroactiva da lei mais favorável a todos os casos hipoteticamente abrangidos pelo n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, há que entender que, na parte em que constitui objecto do presente recurso, esta norma não respeita o conteúdo essencial do n.º 4 do artigo 29º da Constituição. Com efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da ofendida, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência da queixa, o resultado da sua aplicação é equivalente ao que decorre de uma lei que descriminaliza, em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro, a aplicação da lei nova determinaria a não punição.
6. Não se afigura admissível invocar o n.º 5 do artigo 29º da Constituição, que garante que 'ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime', para defender a intangibilidade do caso julgado, como se fez no douto acórdão recorrido (cfr. a invocação do n.º 5 do artigo 29º como um dos argumentos para a defesa da não inconstitucionalidade da última parte do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, em PEREIRA TEOTÓNIO, 'Interpretação da lei criminal e sua aplicação no tempo', Revista do Ministério Público, ano 3º, vol.
12, 1982, pág. 64). Na verdade, a disposição constitucional invocada, que consagra o princípio ne bis in idem, constitui, sem margem para qualquer dúvida, uma garantia do arguido, não podendo pois ser invocada contra ele, em manifesta violação da sua ratio.» No presente processo há que reiterar o julgamento de inconstitucionalidade material a que chegou no aresto citado, e negar, portanto, provimento ao recurso, remetendo-se para a fundamentação do aresto que se transcreveu Sublinhe-se, apenas, que, como se afirma nessa fundamentação, este juízo de inconstitucionalidade se cinge à interpretação segundo a qual a norma do artigo
2º, n.º 4 do Código Penal veda a aplicação da lei penal nova que vem transformar em crime semi-público um crime público, tendo havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória. Pelo que, de uma parte, tal juízo não se refere à conformidade com a Constituição desse n.º 4 do artigo 2º do Código Penal, na medida em que prevê o limite do caso julgado para todas as restantes hipóteses de leis penais novas mais favoráveis que cabem na sua previsão (abrangidas por uma dimensão normativa que não constitui objecto do presente recurso). E, de outra, porque existiu desistência da queixa, tal juízo não é contrariado pela posição de quem entenda que, quando uma lei penal nova transforma um crime público em semi-público, não tendo havido queixa anteriormente, a solução de atribuição de oportunidade ao ofendido para o exercício desse direito é, não só admissível, como a mais harmoniosa (assim Maria Fernanda Palma, 'A aplicação da lei no tempo: a proibição da retroactividade in pejus', Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Lisboa, 1998, pág. 427). III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no n.º 4 do artigo 29º da Constituição, a norma constante do artigo 2º, n.º 4 do Código Penal, na interpretação segundo a qual veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória; b) Por conseguinte, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 17 de Abril de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa