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Proc.º n.º 51/01 Acórdão nº
155/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em autos de expropriação em que é expropriante A e expropriado B, relativa à parcela identificada como 'G-2', sita num terreno da Maia, foi proferida decisão arbitral, que fixou a indemnização ao proprietário em
45.360.000$00 e ao rendeiro em 4.620.033$00.
Quer a expropriante quer o expropriado recorreram de tal decisão para o Tribunal Judicial da Maia que, por decisão de 9 de Fevereiro de 2000, fixou a indemnização em 145.074.600$00, quantia esta a actualizar, nos termos fixados na decisão (fls. 483 a 494).
A expropriante interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto. Arguiu então a nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, e alegou que a parcela expropriada se situa em zona de Reserva Ecológica Nacional (REN), não sendo possível nela implantar qualquer construção, e, bem assim, que não era exacto que a parcela em causa estivesse dotada de infraestruturas rodoviárias, pelo que o solo devia ser classificado como 'solo para outros fins' e o seu valor determinado de acordo com o artigo 26º do Código das Expropriações.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 16 de Novembro de
2000 (fls. 551 a 556), negou provimento à apelação, confirmando a decisão recorrida.
Para assim concluir, a Relação argumentou:
'[...] apreciemos as questões postas:
1ª - Nulidade da sentença por não ter conhecido da área expropriada
[...]
2ª - Estar ou não a parcela expropriada servida de infraestruturas como a IC24 e a EN13
[...] Então podemos perfeitamente assentar em que mesmo que seja apenas a zona da área expropriada a estar servida pelas apontadas vias de comunicação mantém-se inteiramente o decidido na classificação do solo como apto para a construção, e isto face ao fundamento invocado na sentença – o do n.º 2 c) do artº 24º C. Exp. Improcede esta questão.
3ª - A determinação da localização da parcela na REN ou RAN e isto porque, segundo o apelante, estando ela numa zona classificada como REN não é possível atribuir à parcela expropriada a natureza de solo para construção. A sentença fixou que de tal parcela ficavam cerca de 4.000 m2 numa área de equipamento estruturante e o restante numa zona de RAN e para tal apoiou-se nas respostas aos Qºs dos Srs peritos do Tribunal e da expropriante a fls. 341. Porém, o que resulta do teor do relatório dos Srs peritos do tribunal e expropriante, onde se apoiou a sentença, e que neste aspecto tem de ser corrigida, é que «....de acordo com a planta de ordenamento do PDM da Maia.... a parcela está incluída na RAN e parte em zona classificada como área de equipamento estruturante» e que «...de acordo com a planta de condicionantes, o terreno está abrangido pela REN». Daqui afigura-se-nos legítimo concluir, como se conclui, que a parcela expropriada está simultaneamente em zona de RAN e de REN, o que é perfeitamente compatível, e que, dela, há uma área de 4.000 m2 situada numa «área de equipamento estruturante». Posta esta correcção vejamos a classificação a fazer. Chamamos desde já a atenção que de acordo com a declaração de expropriação (D. Rep. já cit.) esta se destina «...à construção da central de incineração de resíduos urbanos e respectivo aterro sanitário de apoio...». Depois, referir o Ac. Trib. Const. n.º 267/1997 in D.R. de 21/5/1997 proferido sobre um problema de RAN, que a apelante nesse específico quadro parece aceitar, mas cujos princípios informadores (sem qualquer interpretação extensiva, note-se) nos parecem ter plena aplicação aos casos de REN e conduzir à inconstitucionalidade do artº 25º, n.º 4 C. Exp. quando interpretado por forma a excluir de solos aptos para construção os solos tanto integrados na RAN como na REN quando expropriados com a finalidade de neles se levarem a cabo obras com fins diferentes da utilidade pública agrícola ou ambiental, que, precisamente, levou à reserva de tais terrenos como RAN e/ou REN. Na verdade, como bem salienta J.O.Gomes in 'Expropriações por utilidade Pública' a pág. 43 a 48, depois de defender a indemnização nas situações que conduzam a uma delimitação do conteúdo da propriedade quando acarretem um peso económico significativo na esfera jurídico-patrimonial do proprietário «...o direito de todos a um ambiente sadio ecologicamente equilibrado, a um ordenamento do território correcto e adequado, e à protecção do património, implica o dever de todos suportarem os respectivos encargos.». Como salienta o Prof. Oliveira Ascensão in 'Expropriações e Nacionalizações'
-Lx-1999- pág. 36, 64 e segs., a garantia constitucional da propriedade impõe que esta não possa ser sacrificada sem indemnização, mesmo nos casos em que formalmente a titularidade privada se mantém e não há, pois, tecnicamente expropriação. Tudo isto conduziria a uma repartição de sacrifícios a quando da classificação de terrenos como incluídos em REN ou RAN. Mas se tal não ocorre, como se sabe, ainda mais se reforça a nossa convicção de não levar mais um prejuízo injustificado ao proprietário quando vir o seu terreno incluído em RAN/REN ser expropriado para fins diferentes dos que levaram
à sua inclusão naquelas reservas, e muitas vezes, mesmo fins contrários. Consideramos, então, que as motivações expostas no apontado Ac. Trib. Const. mantêm toda a sua razão de ser e justificam a inconstitucionalidade nos termos por nós apontados, quer para terrenos incluídos na área RAN quer REN. Mantemos, pois, o decidido na 1ª instância, com esta ligeira alteração de fundamentação.'
2. O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma do n.º 5 do artigo 24º do Código da Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro.
3. No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º - O princípio constitucional da justa indemnização visa obviar a que aos expropriados possam ser arbitradas indemnizações manifestamente insuficientes para compensar o dano sofrido com a privação do bem, claramente desajustadas do montante que derivaria da aplicação da «teoria da diferença», prevista na lei civil, e do valor venal ou de mercado do bem expropriado.
2º - Estando o valor venal do prédio expropriado limitado em consequência da existência de uma legítima restrição legal ao 'jus aedificandi' – resultante da inserção de terrenos especialmente adequados à actividade agrícola na RAN, e, em parte, na REN – e não tendo o proprietário qualquer expectativa razoável de os ver desafectados e destinados à construção por particulares, não pode invocar-se o princípio da 'justa indemnização', de modo a ver reflectido no montante indemnizatório arbitrado ao expropriado uma potencialidade edificativa dos terrenos, que se configura como legalmente inexistente.
3º - Na verdade, destinando-se a desanexação da reserva agrícola exclusivamente
à construção de equipamentos sociais incompatíveis com a edificação pelos particulares, na sua proximidade – e não à transformação de prédio até então legalmente 'rústico' em 'urbano', situado em zona perfeitamente urbanizável – verifica-se que a parcela de terreno expropriado não passou a deter, supervenientemente ao acto expropriativo, qualquer aptidão edificativa, sendo mesmo a especial afectação da parcela à construção de equipamentos sociais – necessariamente distanciados dos núcleos urbanos – absolutamente incompatível com qualquer vocação edificativa do terreno expropriado.
4º - Na situação 'sub juditio', não ocorreu qualquer desafectação da parcela de terreno situada na zona da REN, pelo que – nesta medida – inexiste qualquer analogia com o caso versado no acórdão n.º 267/97.
5º - Não se vislumbra, no caso dos autos, qualquer actuação pré-ordenada da Administração, traduzida em 'manipulação das regras urbanísticas', com vista a desvalorizar artificiosamente o terreno, reservado ao uso agrícola, para mais tarde o adquirir por um valor degradado, destinando-o então à construção de edificações urbanas de interesse público, o que afasta decisivamente a aplicação da jurisprudência firmada no acórdão n.º 267/97.
6º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
Também o recorrido B apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1ª. O presente recurso não é admissível já que não houve na decisão impugnada recusa de aplicação da norma objecto do presente recurso;
2ª. Mesmo que procedesse o recurso, o que se admite teoricamente, seria inócuo já que apenas poderia conduzir à qualificação do solo como para outros fins e o douto aresto da Relação do Porto já em ponto não impugnado havia decidido por decisão transitada o solo apto para construção; Sem prescindir
3ª. O terreno objecto dos autos insere-se na freguesia de M..., no limite do concelho da Maia com o de Matosinhos, e é servido por importantes infraestruturas rodoviárias, como é o caso do IC24 e da EN13, que lhe garantem bons e rápidos acessos aos centros urbanos das cidades do Porto, de Matosinhos e da Maia e a outras importantes infraestruturas urbanísticas das quais se destacam: a) Aeroporto Francisco Sá Carneiro (a 500 metros) b) Terminal Tir (a 1 500 metros) c) Porto de Leixões (a 4 000 metros) d) Linha de Caminho de Ferro Porto/Póvoa (a 500 metros do apeadeiro de [...];
4ª. Na zona onde o terreno se insere e num raio de 3Km existem grandes unidades industriais a saber – S..., C..., S..., E..., L.., industrias de mármores, têxteis, madeiras, materiais de construção, automóveis M..., V..., entrepostos comerciais e prestações de serviços;
5ª. Inserido em freguesia com todos os serviços que caracterizam as zonas urbanas;
6ª. Em termos de envolvência imediata da parcela há a 150 metros e 350 metros respectivamente 2 núcleos de habitações unifamililares apoiados em 3 arruamentos
(rua de M..., Travessa D e rua de B...);
7ª. O prédio expropriado estava parcialmente antes da expropriação em zona urbana prevista pelo PDM (cerca de 4 000 m2) em área destinada a equipamento;
8ª. Ora tal qualificação traduz a sua capacidade construtiva em parte e uma muito próxima capacidade construtiva para o restante;
9ª. A expropriante cometeu manifesto abuso de direito ao expropriar um terreno apto para construção e parcialmente na RAN para o mesmo fim urbano – a construção da central e respectivo aterro;
10ª. A central inserida em zona urbana e não em meio inóspito e isolado como ficciona o ilustre recorrente;
11ª. A analogia da presente expropriação com as destinadas às vias de comunicação não é adequada nem correcta. É que enquanto nesta se adquire o terreno todo, aqueles apenas levam faixas de prédios que podem de facto estar isolados (já que o terreno expropriado se insere em zona urbana);
12ª. A presente situação traduz um manifesto abuso de direito e manipulação das regras urbanísticas por parte da Administração. De facto a expropriante associação de municípios onde se conclui o da Maia) ocupou para implantar este equipamento uma área parcialmente em equipamento e parcialmente em reserva agrícola;
13ª. Implanta o mesmo empreendimento em área do equipamento previsto no PDM e em RAN e pretende diferençar o preço a pagar pelos terrenos;
14ª. Ora, atenta a contiguidade dos terrenos e a mesma finalidade não teria o menor sentido e violaria os mais elementares princípios da Justiça que o mesmo terreno fosse avaliado como urbano e como rústico (o mesmo prédio adoptado para o mesmo fim);
15ª. Tal possibilidade violaria o princípio da igualdade e o da justa indemnização;
16ª. Tendo para o expropriante uma utilidade superior, uma vantagem construtiva, não é equitativo, não é justo, não é respeitador do princípio da igualdade da proporcionalidade e da justa indemnização, indemnizar, em função de valor inferior (bem inferior diga-se);
17ª. O terreno não estava previsto no PDM para equipamento social mas para equipamento urbano. Termos em que se conclui pelo não conhecimento do recurso ou pela sua improcedência.'
Como o recorrido suscitou nas suas alegações a questão prévia do não conhecimento do recurso, foi o recorrente notificado para responder, tendo sustentado na resposta o conhecimento e a procedência do recurso interposto.
Cumpre decidir.
II
4. Importa, antes de mais, apreciar a questão prévia suscitada pelo recorrido, no sentido do não conhecimento do recurso.
Entende o recorrido que, tendo o Tribunal da Relação do Porto qualificado o terreno como 'apto para a construção', não foi recusada a aplicação da norma em causa – o n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações
(aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, adiante designado Código das Expropriações de 1991).
Pelo seu lado, o Ministério Público recorrente entende que a questão prévia, assim suscitada, deve ser julgada improcedente, uma vez que resulta da decisão recorrida claramente a recusa de aplicação da norma em questão, conforme transcrição que faz de determinado passo de tal decisão (de fls. 555 dos autos).
4.1. Analisando a decisão recorrida, verifica-se que nela se procede a um alargamento, aos casos em que os terrenos a expropriar se situem na Reserva Ecológica Nacional (REN), da argumentação que foi utilizada pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 267/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
36º, p. 759 ss), para fundamentar a inconstitucionalidade da norma do artigo
24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991 relativamente aos casos em que os terrenos a expropriar se situam na Reserva Agrícola Nacional (RAN).
No acórdão n.º 267/97, o Tribunal Constitucional tinha julgado inconstitucional a norma do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de
1991, 'enquanto interpretada por forma a excluir da classificação de «solo apto para a construção» os solos integrados na RAN expropriados justamente com a finalidade de neles se edificar para fins diferentes de utilidade pública agrícola'.
Com base na argumentação utilizada no mencionado acórdão do Tribunal Constitucional, o Tribunal da Relação do Porto concluiu no sentido da inconstitucionalidade do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991,
'quando interpretado por forma a excluir de solos aptos para construção os solos tanto integrados na RAN como na REN quando expropriados com finalidade de neles se levarem a cabo obras com fins diferentes da utilidade pública agrícola ou ambiental, que, precisamente, levou à reserva de tais terrenos como RAN e/ou REN'.
Afastando a aplicação da norma com esse sentido, o Tribunal da Relação do Porto manteve a classificação como 'solo apto para a construção' da parcela expropriada, em discussão no processo, com fundamento no critério constante do artigo 24º, n. 2, alínea c), do mesmo Código das Expropriações – sendo certo que tal parcela de terreno está 'simultaneamente incluída em zona de RAN e de REN' –, e manteve, portanto, 'o decidido na 1ª Instância com esta [...] alteração de fundamentação'. Não tem pois razão o recorrido.
4.2. Também o recorrido não tem razão ao pretender que o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade lhe retira, no caso em apreço, qualquer utilidade.
Na verdade, a questão de constitucionalidade que vem suscitada consiste em saber se a limitação legal do ius aedificandi, derivada da inclusão na REN do terreno a expropriar, influencia, de algum modo, a qualificação do terreno.
Ora, esta questão depende directamente do juízo que o Tribunal venha a fazer sobre a norma cuja aplicação, no entender do recorrente, foi recusada na decisão recorrida, não estando por isso ainda definitivamente resolvida no processo.
Improcede, assim, a questão prévia suscitada pelo recorrido.
5. O presente recurso tem como objecto a norma constante do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, interpretada no sentido de excluir da classificação de 'solo apto para a construção' um terreno simultaneamente integrado em zona de RAN e de REN e expropriado para nele se construir uma central de incineração de resíduos urbanos e respectivo aterro sanitário de apoio, norma que o Tribunal da Relação do Porto julgou inconstitucional e que, por isso, se recusou a aplicar, nos termos do artigo 204º da Constituição da República Portuguesa.
A norma questionada tem a seguinte redacção [para maior clareza, transcreve-se o artigo 24º do Código das Expropriações de 1991, na sua totalidade]:
'Artigo 24º
(Classificação de solos)
[1. Para efeito do cálculo da indemnização por expropriação, o solo classifica-se em: a) Solo apto para a construção; b) Solo para outros fins.
2. Considera-se solo apto para a construção: a) O que dispõe de acesso rodoviário e de rede de abastecimento de água, de energia eléctrica e de saneamento, com características adequadas para servir as edificações nele existentes ou a construir; b) O que pertence a núcleo urbano não equipado com todas as infra-estruturas referidas na alínea anterior, mas que se encontre consolidado por as edificações ocuparem dois terços da área apta para o efeito; c) O que esteja destinado, de acordo com plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, a adquirir as características descritas na alínea a); d) O que, não estando abrangido pelo disposto nas alíneas anteriores, possua, todavia, alvará de loteamento ou licença de construção em vigor no momento da declaração de utilidade pública.
3. Para efeitos da aplicação do presente Código é equiparado a solo apto para a construção a área de implantação e o logradouro das construções isoladas até ao limite do lote padrão, entendendo-se este como a soma da área de implantação da construção e da área de logradouro até ao dobro da primeira.
4. Considera-se solo para outros fins o que não é abrangido pelo estatuído nos dois números anteriores.]
5. Para efeitos de aplicação do presente Código é equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção.'
6. Dos autos resultam os seguintes elementos com relevo para a discussão da questão de constitucionalidade.
O Tribunal Judicial da Comarca da Maia fixou a indemnização ao proprietário em 145.074.600$00. Para a fixação do valor da indemnização considerou-se na decisão que parte do terreno expropriado era indubitavelmente de classificar como 'solo apto para a construção'; quanto à parte do terreno incluída na RAN, 'uma vez que foi expropriada por se destinar à construção da central de incineração de resíduos urbanos, e assim para fim diferente da utilidade pública agrícola, foi assim desafectada da RAN', concluiu-se que essa parte da parcela expropriada devia também ser classificada como 'solo apto para a construção' (fls. 490).
Desta decisão, interpôs recurso a expropriante para o Tribunal da Relação do Porto que, como ficou já referido, confirmou a decisão recorrida. No acórdão salienta-se que 'aderimos inteiramente à decisão recorrida e só não nos servimos da faculdade concedida pelo artigo 713º, n.º 5 e 6 CPC porque se justifica uma ou outra alteração de pormenor'.
Ora, o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão aqui recorrido, sintetizou em três as questões que tinha de decidir: (1) nulidade da sentença por não ter conhecido da área expropriada; (2) estar ou não a parcela expropriada servida de infra-estruturas como a IC24 e a EN13; (3) determinação da localização da parcela na REN ou RAN.
Afastada a primeira questão, por o tribunal entender que a definição da área de expropriação compete à 'declaração de expropriação' (oportunamente publicada no Diário da República), a Relação do Porto decidiu a segunda questão em sentido afirmativo e assentou na classificação do solo como 'apto para a construção', com fundamento no critério constante do artigo 24º, n.º 2, alínea c), do Código das Expropriações, que considera como solo apto para a construção
'o que esteja destinado, de acordo com plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, a adquirir as características descritas na alínea a)'.
Quanto à terceira questão, a decisão recorrida refere que a 'parcela expropriada está simultaneamente incluída em zona de RAN e de REN, o que é perfeitamente compatível e que, dela, há uma área de 4.000 m2 situada numa «área de equipamento estruturante»'. Nestas circunstâncias, a decisão invoca o acórdão n.º 267/97 e, remetendo genericamente para a sua fundamentação, que considera igualmente aplicável ao caso de terrenos incluídos na REN, conclui pela inconstitucionalidade da norma já julgada inconstitucional nesse acórdão (ainda que, certamente por lapso, se refira o n.º 4 do artigo 25º em vez do n.º 5 do artigo 24º).
7. Cumpre, assim, averiguar se a jurisprudência fixada no mencionado acórdão n.º 267/97 se pode aplicar sem mais, ao caso em apreço nestes autos, sendo certo que, em decisões mais recentes (acórdãos n.ºs 20/2000, 219/2001 e
243/2001, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, n.º 99, de 28 de Abril de 2000, p. 7539 ss, n.º 155, de 6 de Julho de 2001, p. 11248 ss, e n.º 153, de 4 de Julho de 2001, p. 11119 ss, e acórdão n.º 247/2000, ainda inédito), tal jurisprudência veio a ser afastada, por se entender que não se verificavam os pressupostos fácticos e jurídicos que estiveram na base da pronúncia daquele primeiro aresto.
7.1. Recorde-se a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991.
O acórdão n.º 267/97 julgou a norma inconstitucional na medida em que uma parcela de terreno, que faz parte da RAN, mas que dela foi desafectada para o efeito de ser expropriada, não poderia ser avaliada como terreno apto para a construção, ainda que dotada de todas as infra-estruturas, sendo a expropriação destinada à construção de um quartel de bombeiros. No julgamento de inconstitucionalidade teve-se em conta a circunstância de a parcela em questão ter sido desafectada da RAN, para o mencionado fim, de tal modo que o direito de edificar não podia deixar de ser considerado no cômputo da indemnização da expropriação.
Já no acórdão n.º 20/2000, o julgamento deste Tribunal foi no sentido da não inconstitucionalidade da norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991: no caso então apreciado a parcela em questão não tinha sido desafectada e, quando ocorreu a expropriação, a parcela continuou a fazer parte da RAN, pelo que eram inexistentes as expectativas quanto à potencialidade edificativa da parcela antes da expropriação e assim se mantiveram posteriormente. Nesse caso acrescia ainda que a obra a implantar se destinava à construção de uma auto-estrada, isto é, uma daquelas obras que justificam o levantamento do condicionamento à utilização de terrenos incluídos na RAN. No caso em discussão nesse processo, o proprietário do prédio integrado na RAN não tinha qualquer expectativa de poder vir a valorizar o solo com vista a uma eventual finalidade edificativa, uma vez que ele não podia construir nem desafectar o solo da RAN e a utilização visada pela expropriação não confirmava a aptidão edificativa do terreno.
Também nos acórdãos n.ºs 219/2001 e 243/2001, a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 não foi julgada inconstitucional uma vez que não houve desafectação da parcela a expropriar e, por isso, a parcela não chegou a deixar de estar sujeita a limitações da sua vinculação situacional, embora se destinasse a fins diferentes de utilidade pública agrícola (construção de uma via de comunicação). Ponderou-se no segundo dos acórdãos mencionados que a inclusão de um terreno na Reserva Agrícola Nacional acarreta a proibição para o proprietário de nele construir edificações urbanas, mas que tal proibição, derivada de um motivo de interesse público, tem justificação constitucional, na medida em que se pretende 'assegurar o uso e a gestão racionais do solo', com vista a 'aumentar a produção e a produtividade da agricultura' (de acordo com os princípios consagrados no artigo 93º, n.º 1, alíneas d) e a), da CRP).
Sublinhe-se, todavia, como tem assinalado a jurisprudência mais recente deste Tribunal, que 'o que interessa para efeitos de «justa indemnização» não é o facto de o terreno deixar de ser agrícola – como acontece quer na construção de um prédio urbano, quer com os terrenos nos quais se constrói uma auto-estrada – pois isso não afecta a necessidade da sua qualificação como «solo para a construção». Relevante para esse efeito é, sim, o facto de terem ou não uma muito próxima ou efectiva aptidão edificativa, que resulta do facto de o expropriante lhe dar uma utilização para construção'
(vejam-se os citados acórdãos n.ºs 20/200, 219/2001 e 243/2001).
7.2. Na decisão recorrida, como se verificou, o Tribunal da Relação do Porto, ao decidir a segunda questão que lhe foi colocada, concluiu que, por força do preceituado no artigo 24º, n.º 2, alínea c), do Código das Expropriações, estando a zona da área expropriada servida por vias de comunicação, que referencia, mantém inteiramente o decidido quanto à classificação do solo como 'apto para a construção' (cfr. supra, 1. e 6.).
Mas o que interessa apurar no presente processo é a questão de saber se na parcela em causa – incluída em parte na RAN e em parte na REN –, expropriada para a construção de uma central de incineração de resíduos, existe uma 'muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa' (expressão utilizada no acórdão n.º 243/2001).
É que 'só esta potencialidade (ou seja, só a aptidão edificativa que for uma realidade) tem, por força da Constituição – e, assim, sob pena de se violarem os [...] princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade que a indemnização, para ser justa, tem de cumprir – de ser levada em conta no cálculo do valor da indemnização a pagar' (veja-se o já citado acórdão n.º
243/2001).
7.3. O artigo 24º do Código das Expropriações de 1991, antes transcrito, estabelece que o solo se classifica em solo apto para a construção e solo para outros fins, para efeito do montante da indemnização (n.º 1); as características do solo apto para a construção constam do n.º 2, equiparando-se-lhe o caso previsto no n.º 3 (logradouro e área de construção); solo para outros fins é o que não fica abrangido pelos n.ºs 2 e 3 do preceito. Finalmente, o n.º 5 determina que o solo que por lei ou regulamento não pode ser utilizado para construção é equiparado a solo para outros fins.
De acordo com o artigo 62º, n.º 2, da Constituição, a expropriação tem de ser efectuada com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
Refere-se, a este propósito, no acórdão n.º 243/2001:
'Ora, a indemnização só é justa, se conseguir ressarcir o expropriado do prejuízo que efectivamente sofreu. Não pode ser de montante tão reduzido que a torne irrisória ou meramente simbólica, mas também não pode ser desproporcionada
à perda do bem expropriado. E, por isso, não deve atender a factores especulativos ou outros que distorçam a proporção que deve existir entre o prejuízo imposto pela expropriação e a compensação a pagar por ela, para mais ou para menos. Há, consequentemente, que observar aqui um princípio de igualdade e de proporcionalidade – um princípio de justiça, em suma. O quantum indemnizatório a pagar a cada expropriado há-de realizar a igualdade dos expropriados entre si e a destes com os não expropriados: trata-se de assegurar que haja igualdade de tratamento perante os encargos públicos. O desiderato de justiça, postulado pelo reconhecimento do direito fundamental dos expropriados ao recebimento de uma justa indemnização pela perda do bem de que são privados por razões de utilidade pública – sublinhou-se no acórdão n.º
194/97 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 36º, página
407) – alcança-se, seguramente, quando o legislador opta pelo critério do valor do mercado do bem expropriado, mas são possíveis outros critérios. Questão é que realizem os princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade que a indemnização tem que cumprir. Ora, quando os solos tenham aptidão edificativa, os princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade só são respeitados, se essa potencialidade for levada em conta no cálculo da indemnização a pagar ao expropriado. Sublinhou-se a propósito no acórdão n.º 131/88 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11º, página 475), repetindo o que se escrevera no acórdão n.º 341/86, que o ius aedificandi deve ser considerado como «um dos factores de fixação valorativa, ao menos naquelas situações em que os respectivos bens envolvam uma muito próxima ou efectiva capacidade edificativa».
No citado acórdão n.º 194/97, o Tribunal concluiu que as normas constantes das várias alíneas do n.º 2 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 não são inconstitucionais, pois que não violam o direito à justa indemnização, nem o princípio da igualdade. Para assim concluir, o Tribunal começou por fazer notar que, nesse n.º 2 do dito artigo 24º, o legislador, ao definir solo apto para a construção, adoptou um critério concreto de potencialidade edificativa, que é o único critério idóneo para o efeito tido em vista – ou seja: para o efeito de, no cálculo da indemnização a pagar pelo bem expropriado, se valorizar efectivamente o ius aedificandi. É o único critério idóneo – frisou –, porque, em abstracto, todos os solos, incluindo o dos prédios rústicos, mesmo que fazendo parte, designadamente, da Reserva Agrícola Nacional, são aptos para neles se construir. Acrescentou-se nesse aresto que, «se não se exigisse que a capacidade edificativa do terreno existisse já no momento da declaração de utilidade pública, poderiam criar-se artificialmente factores de valorização que, depois, iriam distorcer a avaliação. E, então, a indemnização podia deixar de traduzir apenas ‘uma adequada restauração da lesão patrimonial sofrida pelo expropriado» e ser «desproporcionada à perda do bem expropriado’». E precisou-se aí mais o seguinte:
«Ora, só quando os terrenos expropriados ‘envolvam uma muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa’ [...] é que se impõe constitucionalmente que, na determinação do valor do terreno expropriado, se considere o ius aedificandi entre os factores de valorização. Tal, porém, só acontece quando essa potencialidade edificativa seja uma realidade, e não também quando seja uma simples possibilidade abstracta sem qualquer concretização nos planos municipais de ordenamento, num alvará de loteamento ou numa licença de construção»'.
8. A decisão recorrida não se refere especificamente à questão da desafectação da parcela de terreno expropriada, ao contrário da sentença de 1ª instância, como antes se transcreveu (supra, 6.).
Na verdade, não só a decisão de 1ª instância menciona expressamente que se procedeu à prévia desafectação da parcela, como existem nos autos documentos dos quais parece decorrer ter existido tal desafectação. Assim, a fls. 201 (convocação da Comissão de Reserva Agrícola Nacional, para decidir sobre a desafectação da RAN); a fls. 202 (o Parecer da Comissão Regional da Reserva Agrícola – CRRA – sobre a alteração à carta da RAN); a fls. 203 (a Deliberação da Comissão Regional da Reserva Agrícola – CRRA – sobre a alteração
à carta da RAN, do qual resulta o parecer favorável daquela CRRA à desafectação das diferentes parcelas – salvo uma – relativas à construção da central de incineração de resíduos urbanos do Porto), a fls. 303 (o Estudo de Impacte Ambiental, onde se refere que 'as zonas agrícolas a ocupar não se encontram integradas na RAN, mercê de um processo prévio de desafectação...'). Finalmente, de fls. 195 a 199, consta um documento que integra o Parecer da Comissão Técnica do Plano Director Municipal da Maia sobre a 'Proposta de áreas a desafectar da RAN', da qual resulta que, quanto à 'área n.º 8 – Área de implantação da A não há objecções urbanísticas para uso exclusivo deste equipamento.
Assinale-se que a finalidade da expropriação foi, no caso dos autos, a construção do edifício da central de incineração de resíduos sólidos do Porto e da respectiva área sanitária.
Ora, por força do disposto no n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991, no cálculo da indemnização a pagar pela expropriação de um terreno integrado na RAN ou na REN não pode entrar em linha de conta o ius aedificandi, pois em tais terrenos não se pode construir, salvo quanto a obras de carácter exclusivamente agrícola (cfr. artigos 25º e 26º do mesmo Código).
Cabe então perguntar: a eventual desafectação dos terrenos expropriados da RAN/REN para efeitos de construção de uma central de incineração de resíduos sólidos e respectivo aterro sanitário – equipamento de interesse intermunicipal de relevante importância – é susceptível de gerar nesses terrenos uma 'muito próxima ou efectiva potencialidade edificativa' ?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Com efeito, mesmo a admitir-se que tenha existido desafectação dos terrenos expropriados, o certo é que, desde logo, uma central de tratamento de resíduos sólidos – embora se trate de uma construção para fins diferentes dos fins agrícolas a que os terrenos se destinam ao ser integrados na RAN – não é uma construção que, só por si, seja susceptível de atrair para a sua órbita a construção de edifícios para habitação ou escritórios. Dir-se-á mesmo que tal implantação é incompatível com quaisquer fins urbanísticos.
Na verdade, uma central de incineração de resíduos sólidos é um tipo de instalação que, por natureza, deve construir-se em zonas não habitadas e ver preservado o seu isolamento, não só para efeito de deposição de resíduos sólidos resultantes do tratamento dos lixos, mas também para evitar que como consequência da incineração resultem afectados quaisquer residentes.
Não se vê assim que a desafectação dos terrenos da RAN/REN para efeitos de expropriação com vista à construção de uma central de incineração de resíduos e respectivo aterro sanitário possa trazer a tais terrenos uma maior potencialidade edificativa. E só a existência desta possível aptidão edificativa justificaria que os terrenos em causa pudessem ser qualificados como 'aptos para construção', com a consequente eventual violação da Constituição no caso de o não virem a ser.
De tudo o exposto resulta que o caso em apreço, embora apresente algumas semelhanças com o caso apreciado no acórdão n.º 267/97, deste Tribunal, em boa verdade está muito mais próximo dos casos que foram apreciados nos acórdãos n.ºs 20/2000, 219/200 e 243/2001, em que a norma do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 não foi julgada inconstitucional.
Não pode, com efeito, concluir-se, no caso, que a expropriação (e a desafectação) se destinou à construção de um edifício urbano, mas sim e muito ao contrário, de um edifício que repele a urbanização, face à finalidade a que se destina Trata-se, portanto, de um equipamento público intermunicipal que, constituindo uma alteração da destinação agrícola do terreno, não gera uma potencialidade edificativa que seja relevante para a qualificação do solo como
'solo apto para a construção'.
Com efeito, a potencialidade edificativa não existia antes, uma vez que o terreno se inseria na RAN/REN e a expropriação (e a desafectação) não gerou tal potencialidade edificativa, uma vez que nele não se edificou uma construção urbana.
Nestes termos, tem de se concluir que a norma do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, interpretada no sentido de excluir da classificação de solo apto para a construção o solo integrado na Reserva Agrícola Nacional e na Reserva Ecológica Nacional, expropriado com a finalidade de nele se construir uma central de incineração de resíduos sólidos (lixos), não
é inconstitucional, pois não viola o princípio da indemnização justa, a que se refere o artigo 62º da Constituição. III
9. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 24º, n.º 5, do Código das Expropriações de 1991, interpretada no sentido de excluir da classificação de 'solo apto para a construção' os solos integrados na Reserva Agrícola Nacional e na Reserva Ecológica Nacional expropriados para implantação de uma central de incineração de resíduos urbanos e respectivo aterro sanitário;
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 17 de Abril de 2002 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa