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Proc. nº 603/99 Acórdão nº 147/02 Plenário Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1. A Junta Autónoma de Estradas remeteu para fiscalização do Tribunal de Contas o 'Contrato para a elaboração do projecto de execução da EN 252 – Beneficiação entre Montijo e Setúbal', celebrado em 30 de Abril de 1999 com a A, pelo valor de 36.050.000$00, acrescido de IVA.
O Tribunal de Contas, pelo acórdão nº 73/99, de 13 de Julho, decidiu visar o mencionado contrato. Para tanto, o Tribunal de Contas recusou a aplicação da norma constante do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do Instituto das Estradas de Portugal (aprovados pelo Decreto-Lei nº 237/99, de 25 de Junho), por considerar tal norma inconstitucional. Na fundamentação da sua decisão, o Tribunal de Contas invocou os seguintes argumentos:
– em 25 de Junho foi publicado o Decreto-Lei nº 237/99, que entrou em vigor no dia 30 do mesmo mês, através do qual foram criados o Instituto das Estradas de Portugal, o Instituto para a Construção Rodoviária e o Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (artigo 1º), tendo sido extintas a Junta Autónoma de Estradas e a JAE Construção, S.A. (artigo 14º);
– nos termos do artigo 4º, nº 2, do mencionado Decreto-Lei, o Instituto das Estradas de Portugal (IEP) assume ex lege todos os direitos e obrigações da Junta Autónoma de Estradas (JAE) em concursos abertos e em empreitadas, trabalhos e serviços contratados ou em curso, de onde decorre que o IEP sucede à JAE no contrato de empreitada submetido à apreciação do Tribunal de Contas;
– o nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do Instituto das Estradas de Portugal, ao estabelecer que 'aos actos e contratos praticados ou celebrados pelo IEP aplica-se o previsto na alínea a) do artigo 47º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto', tem como consequência que ficam excluídos da fiscalização prévia do Tribunal de Contas os actos e contratos que não determinem encargos orçamentais ou de tesouraria e se relacionem exclusivamente com a tutela e gestão do IEP;
– todavia, os actos e contratos dos institutos públicos estão sujeitos à fiscalização prévia do Tribunal de Contas, por força do disposto na Lei nº 98/97, de 26 de Agosto (artigos 2º, nº 1, alínea d), e 15º, nº 1, alínea c));
– assim, a norma do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do IEP, ao isentar da fiscalização prévia do Tribunal de Contas os actos e contratos do Instituto, vem restringir o âmbito da competência material do Tribunal de Contas, 'consubstanciando uma intromissão indevida do Governo na esfera de competência legislativa da Assembleia da República'.
2. É desta decisão de recusa de aplicação da norma contida no nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do IEP, com fundamento em inconstitucionalidade, que vem interposto o presente recurso, pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu assim as suas alegações:
'1º – A definição da competência material do Tribunal de Contas, em sede de fiscalização prévia, é matéria incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por força do disposto no artigo 165º, nº 1, alínea p) da Constituição da República Portuguesa, na sua versão actual.
2º – Pelo que não é lícito a um decreto-lei, não credenciado por autorização parlamentar, dispor inovatoriamente sobre tal matéria, isentando do visto prévio actos e contratos que a ele se podiam considerar submetidos, em função de uma possível interpretação do estatuído nas disposições da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, que regem sobre a definição da competência do Tribunal de Contas.
3º – A delimitação da competência material do Tribunal de Contas tem de assentar numa autónoma interpretação dos preceitos da Lei nº 98/97 que dispõem sobre tal tema, não sendo lícito ao Governo, em decreto-lei desprovido de credencial parlamentar, pretender interpretar autenticamente tais preceitos de lei, preenchendo, em termos que envolvem opção constitutiva, a previsão da norma constante do artigo 47º, alínea a) da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto.
4º – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão recorrida.'
Cumpre decidir.
II
4. O presente recurso tem por objecto a questão da constitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do Instituto das Estradas de Portugal (aprovados pelo Decreto-Lei nº 237/99, de 25 de Junho, e publicados em anexo a esse Decreto-Lei), que o Tribunal de Contas julgou organicamente inconstitucional e que, nos termos do artigo 204º da Constituição da República Portuguesa, se recusou a aplicar.
É o seguinte o teor da norma submetida à apreciação do Tribunal Constitucional:
'Artigo 15º Gestão financeira e patrimonial
[1. A gestão financeira e patrimonial do IEP, incluindo a organização da sua contabilidade, rege-se exclusivamente pelo regime aplicável aos fundos e serviços autónomos do Estado, em tudo o que não for especialmente regulado pelo presente diploma, e no seu regulamento interno.]
2. Aos actos e contratos praticados ou celebrados pelo IEP aplica-se o previsto na alínea a) do artigo 47º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto.'
Dispõe, por sua vez, a alínea a) do artigo 47º da Lei nº 98/97, de
26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas):
'Artigo 47º Fiscalização prévia: isenções Excluem-se do disposto no artigo anterior [a norma que define o âmbito da incidência da fiscalização prévia]: a) Os actos e contratos praticados ou celebrados pelas entidades do artigo 2º, nºs 2 e 3, bem como os actos do Governo e dos governos regionais que não determinem encargos orçamentais ou de tesouraria e se relacionem exclusivamente com a tutela e gestão dessas entidades.
[...]'
5. Na interpretação do tribunal recorrido, a norma do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do IEP, ao remeter para o regime contido na alínea a) do artigo
47º da Lei nº 98/97, tem como consequência isentar da fiscalização prévia do Tribunal de Contas os actos e contratos do Instituto. A norma viria restringir o âmbito da competência material do Tribunal de Contas. Por constar de um Decreto-Lei emitido pelo Governo sem autorização legislativa, tal norma traduziria uma intromissão indevida do Governo na esfera de competência legislativa da Assembleia da República, violando o disposto no artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa, na sua versão actual.
6. A Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, determina, no nº 1 do artigo 2º, que estão sujeitas à jurisdição e aos poderes de controlo financeiro do Tribunal de Contas diversas entidades (de natureza essencialmente administrativa), entre as quais 'os institutos públicos' (alínea d)), estabelecendo, no nº 2 do mesmo artigo 2º, que algumas outras entidades (de natureza empresarial) estão também sujeitas aos poderes de controlo financeiro do mesmo tribunal, como, por exemplo, 'as empresas públicas' (alínea b)).
Ao controlo do Tribunal de Contas estão também sujeitas 'as entidades de qualquer natureza que tenham participação de capitais públicos ou sejam beneficiárias, a qualquer título, de dinheiros ou outros valores públicos, na medida necessária à fiscalização da legalidade, regularidade e correcção económica e financeira da aplicação dos mesmos dinheiros e valores públicos', por força do que dispõe o artigo 2º, nº 3. Nos termos do artigo 2º, nº 4, ao controlo financeiro das entidades referidas nos nºs 2 e 3 do mesmo artigo aplica-se o disposto na Lei nº 14/96, de 20 de Abril (Lei sobre a Fiscalização do Sector Empresarial do Estado pelo Tribunal de Contas). Na norma que define a competência material do Tribunal de Contas (artigo 5º), a Lei nº 98/97 estabelece que aquele tribunal deve, designadamente, e para o que agora interessa:
– 'fiscalizar previamente a legalidade e o cabimento orçamental dos actos e contratos de qualquer natureza que sejam geradores de despesa ou representativos de quaisquer encargos e responsabilidades, directos ou indirectos, para as entidades referidas no nº 1 do artigo 2º' (alínea c));
– 'julgar a efectivação de responsabilidades financeiras das entidades referidas no nº 1 do artigo 2º, mediante processo de julgamento de contas ou na sequência de auditorias, bem como a fixação de débitos aos responsáveis ou a impossibilidade de verificação ou julgamento de contas, podendo condenar os responsáveis financeiros na reposição de verbas e aplicar multas e demais sanções previstas na lei' (alínea e));
– 'apreciar a legalidade, bem como a economia, eficácia e eficiência, segundo critérios técnicos, da gestão financeira das entidades referidas nos nºs 1 e 2 do artigo 2º, incluindo a organização, o funcionamento e a fiabilidade dos sistemas de controlo interno' (alínea f)).
Por outro lado, esta lei exclui do dever de envio ao Tribunal de Contas, para efeitos da fiscalização prévia prevista no artigo 5º, nº 1, alínea c), determinados actos e contratos, contemplando, no que releva para o caso dos autos, 'os actos e contratos praticados ou celebrados pelas entidades do artigo
2º, nºs 2 e 3, bem como os actos do Governo e dos governos regionais que não determinem encargos orçamentais ou de tesouraria e se relacionem exclusivamente com a tutela e gestão dessas entidades' (artigo 47º, alínea a)).
Verifica-se assim que, em múltiplos aspectos, é diferente o âmbito da fiscalização do Tribunal de Contas, consoante a natureza jurídica das entidades sujeitas a essa fiscalização.
7. A resolução da questão de constitucionalidade que se discute no presente processo depende portanto da natureza jurídica do Instituto das Estradas de Portugal.
Na verdade, a norma do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do IEP, ao remeter para o regime contido na alínea a) do artigo 47º da Lei nº 98/97, só terá como efeito alterar o âmbito da competência material do Tribunal de Contas, excluindo da fiscalização prévia do Tribunal de Contas os actos e contratos do Instituto, no caso de o IEP se integrar em alguma das categorias de entidades enumeradas no artigo 2º, nº 1, da Lei nº 98/97, mais precisamente no caso de o IEP se qualificar como 'instituto público'. Pelo contrário, se o IEP puder ser reconduzido a alguma das categorias de entidades referidas no artigo 2º, nºs 2 ou 3, da mesma lei (designadamente se for de aproximar de uma 'empresa pública'), a norma do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos constituirá mera concretização do disposto na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, não implicando desse modo qualquer alteração do
âmbito da competência material do mesmo tribunal.
8. Ora, de acordo com a ponderação efectuada pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 140/2002, de 9 de Abril de 2002, tirado em Plenário, e segundo a orientação nele fixada, não se afigura linear, no mínimo, a qualificação implícita do Instituto de Estradas de Portugal (IEP) como 'empresa pública' – operada no n.º 2 do artigo
15º dos Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99 –, para o efeito de não sujeitar os seus actos e contratos à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
Consequentemente, no mesmo acórdão, este Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do Instituto das Estradas de Portugal (IEP), por violação do disposto no artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição.
É essa jurisprudência que aqui se reitera.
Pelos fundamentos constantes do mencionado acórdão nº 140/2002, para os quais se remete, conclui-se que a norma do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do IEP, ao determinar que aos actos e contratos praticados ou celebrados pelo Instituto se aplica o regime previsto na alínea a) do artigo 47º da Lei nº
98/97, de 26 de Agosto – assim excluindo da fiscalização prévia do Tribunal de Contas tais actos e contratos –, vem alterar o âmbito de competência material do Tribunal de Contas. Constando de um Decreto-Lei emitido pelo Governo sem autorização legislativa, a norma em apreciação consubstancia uma intromissão do Governo na esfera de competência legislativa da Assembleia da República. III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 15º dos Estatutos do Instituto das Estradas de Portugal (aprovados pelo Decreto-Lei nº
237/99, de 25 de Junho, e publicados em anexo a esse Decreto-Lei), por violação do disposto no artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 16 de Abril de 2002 Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca (vencido, quanto à fundamentação, remetida para a declaração de voto aposta no acórdão nº 140/2002) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida porque, pelas razões constantes da declaração junta ao ac. nº 140/2002, considero não infringir a al. P) do nº 1 do artº.165º da Constituição) a norma, constante do nº 2 do artigo 15º: do Estatuto do IEP, na dimensão cuja aplicação foi efectivamente recusada no presente processo, ou seja, enquanto aplicável a actos submetidos ao domínio do direito privado). José Manuel Cardoso da Costa