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Proc. nº 507/00
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito Acordam, na 3ª Secção do tribunal Constitucional: I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal de Círculo da Comarca de Leiria, de 22 de Fevereiro de 1999, foi o ora recorrente, J..., condenado nas penas de 14 meses de prisão, como autor de um crime de falsificação, e de 2 anos de prisão, pela autoria de um crime de burla agravada e, em concurso com anteriores condenações, na pena
única de 3 anos.
2. Inconformado com a assim decidido o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que, considerando que o recurso versava exclusivamente matéria de direito, se julgou incompetente para conhecer do seu objecto e ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça.
3. O Supremo Tribunal de Justiça, contrariamente ao decidido na Relação de Coimbra, considerou que o recorrente, na sua motivação, levantou questões de facto e, consequentemente, julgou-se incompetente para apreciar o recurso interposto tendo ordenado o (re)envio dos autos àquela Relação.
4. Na sequência foi proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra o acórdão de fls. 610 a 624, em que aquele Tribunal decidiu rejeitar o recurso, por o considerar manifestamente improcedente. No que importa para o presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, disse aquele Tribunal:
'Uma vez que a prova produzida em audiência de julgamento não foi documentada, este Tribunal conhece apenas da matéria de direito (art. 428º, nº 2, do CPP, diploma a que nos reportamos de seguida sempre que não se fizer menção de origem), salvo se se verificar a existência de algum dos vícios elencados no nº
2 do art. 410º. Compulsando as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do seu recurso, vemos que a sua grande maioria se reporta a discordância sobre a matéria de facto que foi considerada pelo Tribunal. Ora tal elemento não pode nesta sede ser questionado, por estar fora dos poderes de cognição deste tribunal. Tal contende com o princípio da livre apreciação da prova, também apelidado da intima convicção ou de prova moral, consignado no art. 127º, oposto ao da prova legal em que se verifica a pré-fixação pelo legislador da valoração dos meios de prova. De acordo com aquele, citando o Acórdão do Tribunal Constitucional de 23/9/98
(DR, II de 15/3/99), «a valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais de produção de prova, isto
é, não é admissível uma valoração arbitrária da prova; a livre convicção do julgador é objectivável e motivável; conjuga-se com o dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade, com a imediação e a publicidade da audiência. O julgador, ao apreciar livremente a prova e ao procurar alcançar a verdade material dos factos, não pode deixar de observar as regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição de conhecimento critérios objectivos, susceptíveis de motivação e de controlo. Assim, a apreciação da prova não pode ser uma actividade puramente subjectiva, antes deve ser juridicamente fundamentada, devendo concretizar-se «numa valoração racional e critica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitirá ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão». O juiz é livre «no que ao acto de julgar diz respeito, já que a sua convicção é pessoal, muito embora objectivável e motivável». Por outro lado, o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis, sendo que num primeiro aspecto avulta a natureza da própria prova (directa ou indirecta), bem como a credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e, num segundo patamar, ressaltam as operações de julgamento ao nível cognitivo
(Ac. Desta Relação, de 23/4/98, Col. Jur., Ano XXIII, T.II, pág. 60), sendo que nestas ressalta a apreciação da prova testemunhal conjugada com os restantes meios de prova, o que «pode ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção do raciocínio, mediante a utilização das regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal regras de experiência» (mesmo local). Diferente e muitas vezes confundido com tal princípio, é a diferente perspectiva que os sujeitos processuais fazem da prova produzida e daquela que deveria ter sido valorada. «Isto é a distinta perspectividade com que os sujeitos processuais examinam, valoram, sopesam e vinculam os depoimentos e outros meios de prova originam que, a final, se possam obter resultados dispares ou pelo menos relativamente distanciados. A objectividade, imparcialidade e isenção no exame e apreciação dos meios de prova produzidos apenas é pedida ao julgador e não aos demais intervenientes sujeitos processuais, nomeadamente ao arguido, já que ao Ministério Público tal lhe está cometido estatutariamente a objectividade e o cumprimento da lei, porquanto evidenciam um especial interesse em que a prova seja valorada e apreciada sob uma perspectiva interessada» (Acórdão proferido no recurso nº 1065/98, deste Tribunal).
É o que sucede no caso presente em que o recorrente se insurge contra a prova que foi considerada pelo tribunal, o que nos está vedado analisar. E não se pode afirmar, como pretende o recorrente, que tal seria possível com base no disposto no nº 1 do art. 431º. Isto porque tal normativo tem o seu campo de aplicação limitado pela circunstância de se tornar necessário que do processo constem todos (sublinhado nosso) os elementos de prova que serviram de base à decisão recorrida. Basta confrontar-mo-nos com a fundamentação desta para se verificar que na sua génese estiveram vários depoimentos, não transcritos, pelo que não poderá este Tribunal modificar o decidido em matéria de facto, por ir contra aquele normativo citado e o disposto no art. 428º. Não será a circunstância de na mesma fundamentação se referir também prova documental, como elemento também tido em conta para a forma como foi apurada a prova, até porque se trata de mais um elemento, não integrando a sua totalidade como exige a lei. Do mesmo modo terá de se considerar quando pretende que é claramente insuficiente a prova produzida em audiência para fundamentar a decisão no que concerne à matéria de facto dada como provada, pois tal cai dentro do âmbito dos poderes atribuídos por lei ao julgador, no campo de apreciação e valoração da matéria que lhe foi submetida a apreciação. Vejamos que não se trata do vício constante da al. a) do nº 2 do art. 410º - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – antes insuficiência de prova para a matéria de facto, o que contende com o princípio da livre apreciação da prova. Tanto mais se verifica que tal circunstância não existiu, quando verificamos que o tribunal não necessitou de fazer uso da faculdade de produção oficiosa de prova, permitida pelo art. 340º, tendo decidido de acordo com a que lhe foi presente'.
5. Ainda inconformado o arguido veio de novo aos autos, desta vez para arguir a nulidade do acórdão proferido. Nesse momento processual aproveitou para suscitar a inconstitucionalidade material das normas conjugadas do nº 3 do art. 412º, do art. 428º e do art. 431º, na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, por violação do disposto no nº 1 do art. 20º, do nº 1 do art. 32º, do nº 2 do art. 18º, do art. 203º e do art. 204º da Constituição da República Portuguesa.
6. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 7 de Junho de 2000, julgou improcedente a referida arguição de nulidade.
7. É nesta sequência que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente ver apreciada, nos termos do respectivo requerimento de interposição, a constitucionalidade das normas conjugadas do nº 3 do art. 412º, do art. 428º e do art. 431º, na interpretação que lhe é dada pelo acórdão recorrido, por violação do disposto no nº 1 do art. 20º, do nº 1 do art. 32º e do nº 2 do art.
18º da Constituição da República Portuguesa.
8. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado, ao abrigo do disposto no art.
75º-A da LTC, para indicar a peça processual em que suscitou a questão de inconstitucionalidade. Em resposta à solicitação do Relator, o recorrente apresentou o requerimento de fls. 655 a 659, onde, a dado passo, refere:
'Notificado dos termos do acórdão proferido pela Relação de Coimbra, veio o arguido arguir a nulidade deste mesmo acórdão, tendo, neste momento processual, suscitado a inconstitucionalidade do entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação de Coimbra'.
9. Foi então o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'1. O presente recurso visa a fiscalização concreta das normas conjugadas do nº
3 do art. 412º, do art. 428º e do art. 431º, na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra no acórdão recorrido e bem assim na decisão proferida na sequência da arguição de nulidade do mesmo e da invocação de inconstitucionalidade por violação do disposto no nº 1 do art. 20º, do nº 1 do art. 32º, do nº 2 do art. 18º, do art. 203º e do art. 204º da Constituição da República Portuguesa.
2. O entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra das normas conjugadas do nº
3 do art. 412º, do art. 428º e do art. 431º todos do Código de Processo Penal é manifestamente inconstitucional.
3. Tal interpretação viola, de forma flagrante, os preceitos constitucionais do nº 1 do art. 20º, do nº 1 do art. 32º e do nº 2 do art. 18º, da Constituição da República Portuguesa.
4. O Tribunal da Relação de Coimbra não se pronunciou sobre questões de facto suscitadas, com fundamento na inexistência de documentação de prova.
5. A constituição assegura o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal, nos seus nºs 1 do art. 20º e 1 do art. 32º.
6. Em processo penal, o direito de acesso aos tribunais do arguido concretiza-se imediatamente no direito ao recurso.
7. O duplo grau de jurisdição, em processo penal, abrange a possibilidade de recurso em matéria de facto e matéria de direito (cfr. arts. 412º, nº 3, 428º, nº 1 e 431º do Código de Processo Penal conjugados com o do nº 1 do art. 32º in fine do diploma fundamental.
8. Tal direito consubstancia uma garantia de defesa do arguido – expressamente prevista no art. 32º da Constituição – e exprime o direito de aceso aos tribunais, quando efectivado em sede de recurso, expressamente consagrado no nº
1 do art. 20º e no nº 1 do art. 32º in fine do diploma fundamental.
9. O entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação de Coimbra não assegurou a plena efectivação do duplo grau de jurisdição, nem a protecção constitucional que o mesmo encerra.
10. Tal restrição colide directamente com a tutela dos direitos, liberdades e garantias consagrada no nº 2 do art. 18º da Constituição.
11. tal entendimento viola, de forma frontal, o disposto no art. 203º in fine e no art. 204º da lei Fundamental.
12. O direito de recurso é uma garantia constitucional expressamente consagrada no art. 32º, nº 1, in fine, da Constituição da República Portuguesa.
13. O arguido, ao abrigo das suas garantias de defesa, pode requerer ao tribunal ad quem que conheça dos autos em sede de recurso ainda que não tenha havido documentação da prova em audiência.
14. A exigência da documentação da audiência coloca também em crise o princípio da presunção da inocência do arguido, com assento no nº 2 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
15. O arguido presume-se inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, pelo que a existência de qualquer erro na apreciação da prova, ainda que esta não tenha sido documentada em audiência, mas que conste dos autos, deverá sempre ser valorada até esse momento.
16. A exigência de documentação como fundamento de interposição do recurso da decisão da 1ª instância para apreciação da matéria de facto coarcta a garantia de presunção de inocência do arguido e não assegura de forma plena a defesa dos seus direitos.
17. A limitação dos poderes de cognição do Tribunal ad quem nos termos decididos e a interpretação do preceitos processuais penais como pretende o Tribunal da Relação de Coimbra, colidem com as garantias de defesa do arguido.
18. Tal entendimento não contempla, de forma plena, o duplo grau de jurisdição que é assegurado ao arguido, atendendo aos limites concretos que lhe são impostos.
19. O direito de recurso só pode ser restringido na medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
20. Nos presentes autos é manifesta a inexistência de qualquer direito ou interesse que imponha tal restrição.
21. O Tribunal da Relação de Coimbra não pode ser dispensado de analisar as peças constantes dos autos.
22. O interesse na economia e celeridade processual não pode prevalecer sobre o interesse na realização da justiça material e na possibilidade de uma reformatio in melius.
23. A não ser admitida a reapreciação da matéria de facto nos termos pretendidos pelo recorrente e a proceder o entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra, serão colocados em causa os princípios e valores que subjazem ao Direito Processual Penal português.
24. Termos em que deverão V. Exas. concluir pela inconstitucionalidade material das normas conjugadas do nº 3 do art. 412º, do art. 428º e do art. 431º, na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, por violação do disposto no nº 1 do art. 20º, do nº 1 do art. 32º, do nº 2 do art. 18º, do art. 203º e do art. 204º da Constituição da República Portuguesa'.
10. Notificado para responder, querendo, às alegações do recorrente, disse o Ministério Público, aqui recorrido, a concluir:
'1º - Não constitui limitação ou restrição ao «direito ao recurso», ínsito no art. 32º da Constituição da República Portuguesa, a circunstância de - pela própria «natureza das coisas» - os poderes cognitivos da Relação na reapreciação da matéria de facto só poderem ser plenamente exercidos quando constem do processo todos os elementos de prova em que assentou a decisão da 1ª instância, relativamente ao ponto (ou pontos) da decisão da matéria de facto questionados pelo recorrente.
2º - Quando tal não suceda - porque não teve lugar a documentação da prova oralmente produzida perante o colectivo - tais poderes cognitivos - exercidos por um tribunal que não tem efectivo e pleno acesso à prova produzida - têm naturalmente de se restringir à detecção dos vícios formais ou incongruências que transparecem directamente da decisão impugnada.
3º - Termos em que deverá improceder o presente recurso'.
11. Porque o Ministério Público, em certo passo da sua alegação, colocou a questão de o recorrente 'não ter tratado de suscitar, com a clareza devida, qual a dimensão ou o «bloco normativo» que integra o objecto do recurso', foi o mesmo notificado para, querendo, se pronunciar sobre esta questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
12. Respondendo à questão prévia suscitada pelo Ministério Público apresentou o recorrente o requerimento de fls. 720 a 726 dos autos, sustentado a sua improcedência, e onde, a dado passo, conclui: 'assim, a interpretação adoptada por aquele Tribunal das disposições processuais penais invocadas pelos recorrentes e cuja constitucionalidade se pretende ver declarada é no sentido de, não havendo documentação da audiência, não pode haver lugar a reapreciação da matéria de facto, ainda que os elementos de prova indicados em sede de recurso e cuja (re)ponderação envolveria uma decisão diversa resultem quer da fundamentação (que consta do acórdão proferido e, em consequência do processo físico), quer dos próprios autos'. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II - Fundamentação
13. Questão prévia. Possibilidade de conhecer do objecto do recurso. O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que: a) o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - e que; b) não obstante, a decisão recorrida a tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso
É, pois, no quadro destes pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente, que importa começar por decidir se pode conhecer-se do seu objecto.
13.1 Vejamos, em primeiro lugar, se o recorrente suscitou durante o processo a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada. Notificado para identificar a peça processual onde teria suscitado, durante o processo, a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, esclareceu o recorrente que o havia feito no momento em que arguiu a nulidade da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Março de 2000. Pois bem: constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal
(veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o tribunal recorrido a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver - o que exige que a questão seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita (ou seja: em regra, antes da prolação da sentença). Em consequência, tem este Tribunal entendido de forma reiterada que, em princípio, não constitui meio idóneo para suscitar a questão de inconstitucionalidade o requerimento de arguição de nulidades da decisão. Nesse sentido escreveu-se, por exemplo, no supra citado acórdão nº 450/87 'Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão, nem torna esta obscura ou ambígua, há-de ainda entender-se - como este Tribunal tem entendido - que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade...'. Excepcionalmente, porém, tem o Tribunal admitido que não tenha de ser assim. Designadamente, e para o que agora importa, quando se trate de matérias relativamente às quais o poder jurisdicional do tribunal se não tenha esgotado com a 'decisão final', de modo a ser-lhe ainda possível pronunciar-se, na decisão da reclamação por nulidade, sobre a questão de constitucionalidade que lhe foi colocada.
É o que acontece no caso dos autos. No acórdão que decidiu a reclamação por nulidade o Tribunal a quo poderia ainda, como fez, pronunciar-se sobre a constitucionalidade dos preceitos do nº 3 do art. 412º, do art. 428º e do art.
431º, do Código de Processo Penal, na medida em que tais preceitos, enquanto contribuem para a definição do objecto do recurso (e, portanto, da matéria sobre a qual o Tribunal ad quem tem o dever de se pronunciar), são relevantes para que aquele Tribunal possa decidir se se verifica ou não a invocada nulidade por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal.
13.2. Decidido que o recorrente suscitou durante o processo uma questão de constitucionalidade reportada aos preceitos do nº 3 do art. 412º, do art. 428º e do art. 431º, todos do Código de Processo Penal, vejamos agora se o fez de forma processualmente adequada. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado, repetidamente, nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um ou de vários preceitos. Porém, nesses casos, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo dos preceitos que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) 'tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de
1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental'. Entende o Ministério Público que tal ónus não foi suficientemente cumprido pelo recorrente, não tendo este identificado, da forma clara e perceptível que vem sendo exigida pelo Tribunal, a 'exacta dimensão normativa' dos artigos 412º, nº
3, 428º e 431ºdo Código de Processo Penal, que considera inconstitucional. Vejamos. Para decidir esta questão importa ver em que termos é que a questão de constitucionalidade foi colocada pelo recorrente na reclamação por nulidade da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Março de 2000. A concluir aquela peça processual disse o ora recorrente, designadamente, o seguinte:
'(...)
6. A interpretação dos normativos conjugados do nº 3 do art. 412º, do nº 2 do art. 428 e do art. 431º, todos do Código de Processo Penal, com a interpretação que lhes foi dada no acórdão cuja nulidade se argui, não pode proceder porque inconstitucional, pois viola os preceitos constitucionais da 1ª parte do nº 1 do art. 20º, os nº 1 do art. 32º e o nº 2 do art. 18º, todos da Constituição da República Portuguesa.
7. Inconstitucionalidade que, para os devidos efeitos, desde já se invoca.
(...)
11. Uma vez que a incorrecta apreciação da prova e fundamentação da decisão foram determinantes para a formação errónea dos julgadores de 1ª instância e, consequentemente, da decisão de direito por estes proferida, devia o Tribunal da Relação de Coimbra ter-se pronunciado sobre as questões de facto suscitadas, nos termos daquelas disposições processuais penais.
12. No entanto, não o fez, pelo que, consequentemente, violou os normativos constantes do nº 3 do art. 412º, do nº 2 do art. 428 e do art. 431º, que no entendimento do recorrente e do Supremo Tribunal de Justiça impõem o conhecimento das questões de facto suscitadas, não apenas quando haja documentação da prova, diversamente do entendimento constante do acórdão cuja nulidade se argui.
13. Considera o recorrente que a interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra àqueles preceitos, em detrimento de normas constitucionais, coloca entraves à reclamada análise e a um novo julgamento da matéria fáctica incorrectamente apreciada e contraditoriamente provada e fundamentada pelo Tribunal recorrido, donde às garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao arguido.
(...)
17. O entendimento perfilhado no acórdão cuja nulidade se argui não assegurou a plena efectivação do duplo grau de jurisdição, nem da protecção constitucional que o mesmo encerra, com a consequente violação daqueles preceitos constitucionais.
(...)
20. O Direito de recurso é uma garantia constitucional expressamente consagrada
- art. 32º, nº 1, in fine, da CRP - e só poderá ser restringida na medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
21. Pelo que o arguido, ao abrigo das suas garantias de defesa, pode requerer ao tribunal ad quem que conheça da matéria fáctica, como fez nos presentes autos, ainda que não tenha havido documentação da prova produzida em audiência.
22. A exigência de documentação da audiência coloca também em crise o princípio da presunção de inocência do arguido, com assento no art. 32º da CRP, pois presumindo-se o arguido inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória a existência de qualquer erro na apreciação da prova, ainda que esta não tenha sido documentada em audiência, mas que conste dos autos, deverá sempre ser valorado até esse momento.
23. O entendimento perfilhado no acórdão proferido em 2ª instância no sentido da exigência de documentação como fundamento de interposição de recurso da decisão de 1ªinstância para apreciação da matéria de facto coarcta a garantia de presunção de inocência do arguido.
24. A limitação dos poderes de cognição do Tribunal ad quem nos termos decididos e a interpretação dos preceitos processuais penais, como pretende o Tribunal da Relação de Coimbra, colidem com as garantias de defesa'.
Da transcrição que antecede resulta, desde logo, que não é inteiramente verdade, como refere o Ministério Público, que o recorrente se tenha limitado a afirmar que tais normas 'com a interpretação que lhes foi dada no acórdão recorrido' são inconstitucionais por violação dos artigos 20º, nº 1, 32º, nº 1 e 18º, nº 2. Ao contrário do que entende o Ministério Público, aqui recorrido, julgamos que o recorrente não se limita a remeter para 'a interpretação que a esses preceitos teria sido dada pelo acórdão recorrido', fazendo ele próprio um esforço para formular a interpretação que o acórdão recorrido lhes deu e que, no seu entender, é inconstitucional. Resta saber se o conseguiu fazer da forma clara e perceptível que vem sendo exigida pelo Tribunal. Julgamos que sim. Cremos, efectivamente, que pode aceitar-se que está ali identificada, em termos minimamente suficientes, a interpretação normativa daqueles preceitos que o recorrente considera inconstitucional: precisamente a que o Ministério Público também refere na sua alegação, e que se traduz em considerar que não tendo sido documentada a prova produzida em audiência nem constando do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão impugnada, não pode a Relação reapreciar integralmente a matéria de facto, limitando-se os seus poderes de cognição nesta matéria à verificação da existência de alguns dos vícios elencados no nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal. Acrescente-se, a concluir, que só esta interpretação normativa, aliás, pode, in casu, constituir objecto do presente recurso de constitucionalidade, uma vez que foi esse o sentido normativo que a decisão recorrida extraiu dos preceitos referidos, e que aplicou como ratio decidendi, como resulta inequivocamente do seu próprio teor na parte que também já transcrevemos supra.
14. Julgamento do objecto do recurso. Delimitada, nestes termos, a norma que constitui objecto do recurso, há, contudo, que concluir que a mesma não padece, manifestamente, da inconstitucionalidade que o recorrente lhe imputa. Efectivamente - como, bem, nota o Ministério Público - parece 'fluir da própria natureza das coisas' que a possibilidade de reapreciação e eventual alteração pelo Tribunal de recurso (no caso, a Relação), da bondade da decisão proferida pelo tribunal recorrido sobre a matéria de facto, pressupõe que aquele Tribunal possa aceder a todos os elementos de prova em que assentou aquela decisão nos pontos impugnados pelo recorrente, como exige expressamente a alínea a) do nº 1 do artigo 431º, agora questionada pelo recorrente. Dessa forma, tendo a primeira instância considerado (também) relevante para determinar o sentido da sua decisão acerca da matéria de facto a prova produzida oralmente em audiência, e não tendo o tribunal de recurso possibilidade de aceder a essa prova, na medida em que a mesma não consta dos autos uma vez que não se procedeu ao seu registo (porque o arguido assim não o requereu, como podia), parece evidente que não constitui solução desproporcionada ou que limite inadmissivelmente os direitos de defesa do arguido a que impede ou não permite ao Tribunal de recurso (que, repete-se, não tem acesso integral a todos os elementos de prova que serviram de base à decisão recorrida) modificar a decisão proferida em primeira instância, salvo no caso de verificar existir algum dos vícios a que se refere o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal. A solução contrária - a que permitisse ao Tribunal de recurso (fora dos casos dos artigo 410º, nº 2) reponderar a matéria de facto dada como provada, tendo apenas acesso a parte dos elementos de prova que serviram de suporte à decisão -
é que, para utilizarmos as palavras do Ministério Público, constituiria solução aberrante e aleatória. Assim, e sem necessidade de maiores considerações, por desnecessárias, há que concluir pela não inconstitucionalidade da norma objecto de recurso e, em consequência, negar provimento ao recurso. III - Decisão Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze (15) unidades de conta. Lisboa, 17 de Abril de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida