Imprimir acórdão
Processo nº 697/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, instaurados ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28 /82, de 15 de Novembro, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que são recorrente A e recorrido o Ministério Público, foi lavrada, em 22 de Janeiro último, decisão sumária no sentido de não se tomar conhecimento do objecto do recurso.
Escreveu-se então:
'1. - A foi condenada, em processo comum com intervenção do tribunal singular, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Portalegre, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6º e 24º, nºs. 1, 2 e 5, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, em pena de prisão, suspensa, na sua execução, pelo período de três anos, sob a condição de, no prazo de dois anos, pagar ao Estado determinada quantia, na qualidade de administradora da B, também condenada nestes autos. Interposto recurso por ambas para o Tribunal da Relação de Évora, este, por acórdão de 9 de Outubro de 2001, rejeitou o recurso por extemporaneidade, dispensando-se, assim, de abordar as questões que mais se colocariam.
2. - É deste acórdão que A interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Para o efeito vem dizer:
'I) O recurso é interposto, em primeiro lugar, ao abrigo da al. b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15/11, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7/9. Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade, por violação do disposto no nº 1 do artº 32º da Constituição, da interpretação dada à conjugação entre o nº
6 do artº 698º do Código de Processo Civil e os artigos 4º, 411º e 412º nº 4 do Código de Processo Penal. Tal inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, pela recorrente, na pg. 3 da resposta à questão prévia levantada pelo Ministério Público no Tribunal da relação de Évora. II) Mas, em segundo lugar, e também ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artº 70º da Lei 28/82, tem de se acrescentar que, na douta decisão recorrida de que foi notificada, a recorrente acaba de ser confrontada e surpreendida com uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista e inesperada. Trata-se da interpretação, feita nas pgs. 7 e 8 do Acórdão do Tribunal da Relação, dos nºs. 2, 3 e 4 do artº 412º do Código de Processo Penal em termos que redundam, na criação por via judicial de uma norma restritiva de direitos, interpretação essa cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada. Com efeito, tal interpretação, ao exigir, sob pena de rejeição de recurso, que as especificações previstas no art. 412º nº 3 do CPP constem das conclusões da motivação, contraria não só o referido nº 1 do artº 32º da Constituição como, especificamente, a primeira parte do seu nº 2 e ainda, em geral, toda a fundamentação constitucional da interdição da analogia contra reo em matéria penal. E a admissão da discussão deste ponto pelo Tribunal Constitucional baseia-se na mesma ratio de o interessado não disposto oportunidade processual para suscitar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo, por não ter podido naturalmente antever a possibilidade dessa interpretação e aplicação, ratio que surge, v.g., nos Acórdãos do Tribunal Constitucional com os nºs.
61/92; 188/93; 181/96; 569/95 e 596/96.'
3. - No Tribunal Constitucional o relator lavrou o despacho seguinte:
'Notifique a recorrente, nos termos e para os efeitos dos nºs. 1, 2, 6 e 7 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para, em 10 dias, precisar inequivocamente a interpretação que entende ser inconstitucional da ‘conjugação entre o nº 6 do artigo 698º do Código de Processo Civil e os artigos 4º, 411º e
412º, nº 4, do Código de Processo Penal’.'
4. - Em consequência, veio a recorrente esclarecer:
'A interpretação que entende ser inconstitucional (à luz, como se discriminou, do artº 32º, nº 1 da Lei Fundamental), da conjugação entre o nº 6 do artigo 698º do CPC e os artigos 411º e 412º nº 4 do Código de Processo Penal, é a interpretação que considera que, no recurso interposto em processo penal – quando o recurso impugne a decisão proferida sobre matéria de facto e as provas tenham sido gravadas (e ainda que se entenda que a transcrição imposta pelo artigo 412º nº 4 do CPP não cabe ao recorrente) – não há lugar ao acréscimo de
10 dias ao prazo previsto no artigo 411º do CPP para interposição de recurso e apresentação da motivação, acréscimo esse previsto no artigo 698º nº 6 do CPC, disposição aplicável, por analogia, ao recurso em processo penal.'
5. - Entende-se ser caso de proferir decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, dado não ser possível conhecer do objecto do recurso – sendo certo que a anterior decisão que o recebeu
(despacho de fls. 654) não vincula este Tribunal (o nº 3 do artigo 76º daquele diploma legal).
6. - Com o presente recurso, pretende a recorrente a apreciação das seguintes questões de constitucionalidade:
'A) Normas dos artigos 698º, nº 6, do Código de Processo Civil, e 411º, nº 4, e
412º, nº 4 do Código de Processo Penal, em conjugação, interpretadas no sentido de que, ‘no recurso interposto em processo penal – quando o recurso impugne a decisão proferida sobre matéria de facto e as provas tenham sido gravadas (e ainda que se entenda que a transcrição imposta pelo artigo 412º nº 4 do CPP não cabe ao recorrente) – não há lugar ao acréscimo de 10 dias ao prazo previsto no artigo 411º do CPP para interposição de recurso e apresentação da motivação, acréscimo esse previsto no artigo 698º, nº 6 do CPC disposição aplicável, por analogia, ao recurso em processo penal’ (conforme requerimento de fls. 659); e B) Normas do artigo 412º, nºs. 2, 3 e 4, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que a falta nas conclusões da motivação das especificações constantes do nº 3 do artigo 412º, implica a rejeição do recurso.'
7. - Não pode conhecer-se do objecto do recurso relativamente ao primeiro bloco normativo uma vez que a decisão recorrida não aplicou as normas convocadas na interpretação que a recorrente pretende ter-lhes sido dada.
'Na verdade, o acórdão da Relação, depois de tecer diversas considerações quanto
à imputação do ónus de transcrição das gravações e das divergências da jurisprudência nesta matéria e relativas ao âmbito de aplicação do nº 2 do artigo 690º-A do Código de Processo Civil, concluiu que após a alteração deste preceito, introduzida pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, as dúvidas existentes quanto à não aplicação analógica do citado artigo 690º-A dissiparam-se com a nova redacção daquele artigo, uma vez que, contrariamente ao que se passa no processo penal, no processo civil não há lugar à transcrição das gravações.
‘Daí que actualmente [entendeu-se no aresto recorrido], não seja defensável a aplicação analógica ao processo penal da norma do nº 6 do artigo 698º do CPC que fixa o prazo adicional de dez dias para a interposição do recurso que tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, prazo esse que se destinava a facilitar o cumprimento do ónus de transcrição que, então (isto é, antes da alteração do CPC operada pelo cit. DL nº 183/2000) impendia sobre o recorrente, estabelecido no também citado artº 690º-A, nº 2. É que, para a aplicação subsidiária das normas do processo civil ao processo penal exige-se, além do mais, que haja analogia entre o caso omisso no processo penal e o previsto no processo civil, o que, após a referida alteração do texto do nº 2 do citado artº 690º-A, manifestamente, não existe, uma vez que, repete-se, contrariamente ao CPP, o CPC deixou de exigir a transcrição das passagens da gravação da prova em que se funda o recurso'. Assim concluiu-se que, 'competindo ao Tribunal (e não ao recorrente) proceder à transcrição das gravações (quando haja recurso sobre matéria de facto em que se vise a reapreciação da prova gravada), fique prejudicada a questão da inconstitucionalidade, por alegada violação do artigo 32º da Lei Fundamental, pelas recorrentes suscitada. Não podendo, pois, as recorrentes, beneficiar do prazo adicional de dez dias fixado no nº 6 do artigo 698º do CPC, há que concluir pela extemporaneidade do recurso, a qual gera a rejeição deste artigo (artigo 420º, nº 1, do CPP)'. Ou seja, o que a recorrente pretende discutir é a concreta aplicação das normas em causa operada pelo acórdão recorrido que julgou não ser a norma do CPP omissa quanto à regulação do caso concreto e não poder haver aplicação subsidiária das normas do CPC, desde logo porque não existe analogia entre o ‘caso omisso’ e o previsto no Código de Processo Civil. Em suma, o que se pretende é discutir se existe ou não lacuna da lei processual penal e se há analogia entre as duas situações, o que não abarca o âmbito do recurso de constitucionalidade. Assim, não se pode tomar conhecimento do recurso nesta parte, o que implica a manutenção da decisão recorrida que decidiu pela extemporaneidade do recurso.
8. - Concluindo-se deste modo, o conhecimento do recurso quanto à normas invocadas em segundo lugar está prejudicado, nessa parte, por inutilidade. Na verdade, considerando a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade, uma qualquer decisão a proferir nesta matéria pelo Tribunal Constitucional não teria a virtualidade de influenciar a decisão de rejeição do recurso com fundamento na sua extemporaneidade.
9. - Em face do exposto e nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 unidades de conta.'
3. - Notificada, reclamou a recorrente nos termos do nº 3 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, defendendo a admissibilidade do recurso.
Defende, em síntese:
a) é certo que a não aplicação de uma norma não é apenas um problema de aplicação, mas implica, também, e incindivelmente, uma prévia questão de interpretação;
b) no caso concreto, coloca-se, desde logo, a questão de saber se o prazo para a interpretação do recurso e apresentação da respectiva motivação, quando se procede à gravação da prova e se impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, é o mesmo prazo do recurso restrito à matéria de direito;
c) na verdade, enquanto o nº 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal dispõe que o prazo para interpor recurso é de 15 dias, o nº 4 do artigo 412º do mesmo diploma (aditado pela Lei nº 59/98, de 25 de Outubro), preceitua que haverá lugar a transcrição quando as provas tenham sido gravadas;
d) na prática, e conhecidas a dificuldade e a morosidade da transcrição, o prazo previsto naquele artigo 411º põe em causa as garantias de defesa e a plenitude do direito do arguido ao recurso, constitucionalmente garantidas (nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental);
e) de resto, no processo civil, o prazo para a apresentação de alegações – de 30 dias, já antecedido do de 10 dias para a interposição do recurso – é acrescido de mais 10 dias quando haja reapreciação da prova gravada – mesmo sem obrigatoriedade de se proceder à transcrição, por força das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto.
A esta posição, respondeu o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal nos termos seguintes:
'1- Independentemente da questão de saber se o recorrente conseguiu delinear, em termos adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso interposto, o que é facto é que tal recurso se configura como manifestamente infundado.
2- Não se vendo qualquer razão plausível para pugnar, na óptica do princípio das garantias de defesa, pela insuficiência do prazo de 15 dias para interpor e motivar o recurso em que se impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, numa hipótese em que não incumbe ao recorrente o ónus de proceder à transcrição da prova gravada.
3- Só tendo obviamente sentido o alargamento de tal prazo geral numa situação em que recaísse efectivamente sobre o recorrente tal ónus, visando precisamente aquele alargamento do prazo compensar a realização dessa tarefa acrescida.
4- E sendo perfeitamente incompreensível e incoerente a argumentação do reclamante, ao sustentar que a aplicabilidade do referido prazo adicional de 10 dias teria precisamente na sua base 'a dificuldade e morosidade da transcrição da gravação' – sendo certo que a decisão recorrida expressamente comete tal tarefa ao Tribunal.
5- Pelo que sempre se justificaria a prolação de decisão sumária sobre o recurso interposto.'
4. - Entendeu-se subentender-se na posição assumida pelo Ministério Público uma nova questão, equacionável em sede de manifesta falta de fundamento para o recurso pelo que sobre a mesma se ouviu, novamente, a recorrente e reclamante.
Veio esta aos autos pronunciar-se no sentido oposto
àquele.
Acentuou, a este propósito, que o prazo do recurso foi, no concreto caso, substancialmente reduzido, na prática e efectivamente, sendo que a própria 1ª instância aceitou que a transcrição fosse efectuada pelo recorrente, tendo reconhecido o acréscimo de prazo, não vindo a mesma a ser efectuada pelo tribunal.
E objecta-se: '[...] mesmo que se entenda que a transcrição não cabe ao recorrente, a simples necessidade da apreciação da matéria de facto, seja através da audição dos suportes magnéticos, seja através da apreciação da respectiva transcrição (isto no pressuposto, não verificado no caso concreto, nem aceite por muitos tribunais, de que a transcrição caberia ao tribunal e que estaria disponível para o arguido a data do depósito da sentença) são tarefas só por si suficientes para que, repete-se, na prática e efectivamente, o prazo de recurso se veja reduzido'.
5. - Numa primeira linha de fundamentação, poder-se-ia reiterar, na sua essencialidade, a decisão sob reclamação.
Aí se disse, nomeadamente, pretender a recorrente discutir a concreta aplicação das normas em causa operada pelo acórdão recorrido para, desse modo, se concluir que a questão subjacente não se quadra em parâmetros de controlo constitucional de normatividade, mais não sendo que a tentativa de (re)apreciação do acerto da decisão recorrida, como tal encarada
(e, nessa medida, subtraída ao poder cogniscitivo do Tribunal Constitucional, neste concreto tipo de recurso).
Nesta perspectiva, o posicionamento da recorrente mostra-se suficiente e significativamente caracterizado ao defender que, ao não se considerar o prazo para a interposição de recurso, com impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e com transcrição da prova gravada, como de 25 dias, se põe em causa, sem contrapartida alguma que o justifique, a plenitude do direito do arguido ao recurso, desse modo violando-se o disposto no artigo 32º da Constituição, designadamente o seu nº 1 (cfr. fls. 635).
6. - Mesmo que outro entendimento seja de sustentar, o certo é que, numa outra linha de fundamentação sustentada pelo Ministério Público, o recurso sempre seria manifestamente infundado.
Na verdade não se está perante um prazo ostensivamente exíguo e inadequado para a organização da defesa, de tal modo que se possa considerar afectado o direito ao recurso e, nessa medida, a garantia de defesa constitucionalmente garantida, no sentido do nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental.
E se é certo que a transcrição a cargo dos próprios serviços judiciais pode colocar problemas de dotação e apetrechamento destes
últimos, susceptíveis de, eventualmente, se reflectirem na eficácia do sistema – como ainda recentemente se reconheceu no acórdão nº 236/2000, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Novembro de 2000 – não menos exacto é que a praticabilidade e a operacionalidade do regime não se colocam no plano da constitucionalidade normativa nem, por si próprias, afectam a esfera das garantias de defesa do arguido – que, obviamente, não necessita de aguardar a operação de transcrição para estabelecer a sua estratégia processual e organizar a sua defesa.
7. - Seja como for, um outro fundamento se afigura decisivo para que se não possa conhecer do recurso. É que a recorrente não suscitou, durante o processo, ou seja, perante o tribunal a quo, uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa.
Com efeito, ao responder à questão prévia suscitada pelo Ministério Público no Tribunal da Relação de Évora, a recorrente afirmou textualmente (fls. 635):
'Não se considerando que o prazo para a interposição de recurso, com impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e com transcrição da prova gravada, é de 25 dias, será posto em causa, sem qualquer contrapartida que o justifique, a plenitude do direito do arguido ao recurso, violando-se o disposto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, designadamente o disposto no seu nº 1.'
Uma tal forma de colocar a questão deve necessariamente ser tida como assacando a inconstitucionalidade à própria decisão judicial e não a qualquer norma.
8. - Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa,17 de Abril de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida