Imprimir acórdão
Procº nº 508/98
2ª Secção (Plenário). Relator:- BRAVO SERRA.
1. Fundado na alínea a) do nº 1 e na alínea e) do nº 2, ambos do artigo 281º da Constituição, veio o Procurador-Geral da República solicitar que este Tribunal apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artº 37º do Decreto-Lei nº 275-A/93, de 9 de Agosto, na interpretação segundo a qual procedeu 'à abolição do imposto designado por ‘estampilha da Liga dos Combatentes’', já que, na sua óptica, a mesma viola o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea i), da Lei Fundamental, justamente porque, configurando-se a estampilha da Liga dos Combatentes como um
«imposto«, a norma impugnada, editada pelo Governo no exercício da sua competência legislativa própria e sem que estivesse munido da indispensável autorização legislativa, veio a aboli-lo, assim invadindo a competência exclusiva parlamentar.
Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Primeiro-Ministro ofereceu a resposta na qual, a final, sustentou dever considerar-se como conforme à Constituição a norma sub specie. Rematou o Primeiro-Ministro a sua resposta com as seguintes «conclusões»:-
'Considerando: A) Que a obrigação de pagamento da estampilha da Liga dos Combatentes, instituição particular de utilidade pública administrativa, pelos cidadãos a que se reportam o artigo 1º do Decreto nº 13 670, de 26 de Maio de 1927, e o artigo
2º do Decreto-Lei nº 41.647, de 26 de Maio de 1958, pelo facto de representar uma contraprestação derivada da desoneração dos mesmos cidadãos relativamente ao dever geral de cumprimento de serviço militar, assume carácter sinalagmático, e enquadra-se no domínio das taxas; B) Que a obrigação de pagamento do mesmo valor selado pelos cidadãos em idade militar que pretendiam deslocar-se ao estrangeiro, nos termos da al. a) do artigo 3º do Decreto-Lei nº 41 647, na redacção que lhe foi dada pelo artigo
único do Decreto-Lei nº 47.105, de 19 de Julho de 1966, definia-se igualmente como uma taxa, já que se configurava como uma prestação devida pelos mesmos cidadãos em virtude da remoção de um limite jurídico, traduzido numa proibição geral de saída do território nacional que lhes era fixada, em termos relativos, pelo artigo 46º do Decreto-Lei nº 39.794, de 28 de Agosto de 1954 (ulteriormente alterado)'; C) Que a criação e extinção das taxas não se encontrava, ao tempo da aprovação do Decreto-Lei nº 275-A/93, de 9 de Agosto, inserida na reserva relativa de competência da Assembleia da República (alínea i) do nº 1 do antigo artigo 168º), mas sim no universo de concorrência legislativa entre a Assembleia da República e o Governo;Deverá ser tido como conforme à Constituição o artigo 37º do Decreto-Lei nº 275-A/93 de 9 de Agosto que, tendo sido emitido precisamente ao abrigo da competência concorrencial do Governo, aboliu, nas duas situações descritas, a estampilha da Liga dos Combatentes, devendo consequentemente esse Venerando Tribunal não acolher o pedido formulado pelo Senhor Procurador--Geral da República'. Na aludida resposta, o Primeiro-Ministro reconhece, a dado passo, que existe uma terceira situação que dá lugar ao pagamento da estampilha - aquela a que se refere a alínea b) do artigo 3º do Decreto-Lei nº 41.647, na redacção do artigo único do Decreto-Lei nº 47.105, de 19 de Julho de 1966, que
'determinava ser devida a liquidação da estampilha nos documentos de pagamento relativos a fornecimentos ao Exército, Marinha e Aeronáutica, passados por firmas nacionais ou estrangeiras, por cada montante no valor de 50.000$00, correspondentes à aquisição de material, incluindo munições, mas com a exclusão de um conjunto de outros materiais previstos no próprio preceito'.
E, na sequência desse reconhecimento, admite que, quanto a tal situação, se bem que se possa estar perante 'uma obrigação pecuniária coactiva e unilateral, da qual se encontra ausente qualquer relação de bilateralidade entre o Estado e os fornecedores (para além do próprio contrato de fornecimento)', pelo que, assim, a liquidação da estampilha se enquadraria tributariamente na figura de uma receita parafiscal assimilável ao imposto, de todo o modo a sua
'abolição se tornou, no plano dos factos pouco relevante, já que, segundo informações prestadas pela própria Liga dos Combatentes, a norma legal' em apreço 'não se encontrava a ser integralmente cumprida, assumindo uma natureza crescentemente nominal'.
Apresentado memorando pelo Presidente deste Tribunal, fixada a orientação deste órgão de administração de justiça e distribuído o processo, cumpre elaborar a decisão, que de muito perto segue o que constava daquele memorando.
2. A estampilha da então denominada Liga dos Combatentes da Grande Guerra foi criada pelo Decreto nº 13.670, de 16 de Maio de 1927, diploma que estatuiu no seu artº 1º que, em todas as «ressalvas definitivas» será aposta pelos mancebos isentados do serviço militar, e no momento de isenção, uma estampilha do valor de 10$, que será inutilizada pelo chefe dos distritos de recrutamento e reserva, estampilha essa mandada imprimir pela mesma Liga, sem encargos para o Estado - cfr. artº 2º (mas, posteriormente, impressa na então designada Casa da Moeda e dos Valores Selados - cfr. o Regulamento da Estampilha da Liga dos Combatentes da Grande Guerra aprovado pelo Decreto-Lei nº 41.648, de
26 de Maio de 1958) -, sendo que, como resulta do exórdio de tal diploma, a imposição da prestação correspondente ao custo da estampilha se impunha por parte de 'todo o cidadão português que ao exército do País não dê a sua cota parte de sacrifício', como auxílio pecuniário àqueles 'que toda a vida ofereceram em holocausto a esse sacrifício'.
E mais se pode ler no preâmbulo do Decreto nº 13.670 que a Liga dos Combatentes da Grande Guerra 'é uma entidade oficialmente reconhecida pelo Estado', cujo fim 'é subsidiar a todos aqueles que, tendo-se batido e sacrificado pela Pátria, se encontram em precárias condições físicas, materiais ou morais, forçando-se assim a arrastar uma vida de misérias e sofrimentos sem que o Estado lhes possa minorar a situação', e ainda 'ocorrer humanitariamente
às mais urgentes necessidades de vida que possam afluir às viúvas, órfãos e pais velhos ou impossibilitados dos combatentes da Grande Guerra e que, por força dela ou consequências resultantes, morreram, deixando-os na miséria', fins que, representando um pesado encargo de pensões e subsídios, impunham auxílio da parte do Estado que facilitasse alguns meios económicos para a realização de tais fins.
Pelo Decreto-Lei nº 41.647, de 26 de Maio de 1958, o valor da estampilha foi elevado para 25$00 (posteriormente vindo a ser fixado em 50$00 pelo Decreto-Lei nº 43.808 de 19 de Julho de 1961), foi alargado o universo subjectivo de quem, sujeito a obrigações militares, estava subordinado ao pagamento da estampilha, e ampliado o seu âmbito de aplicação, visto que foi determinada a aquisição e inutilização da estampilha em cada passaporte individual ou familiar, ou em cada certificado colectivo de identidade e viagem passado aos indivíduos do sexo masculino até aos 40 anos de idade que pretendessem deslocar-se ao estrangeiro, salvo se dispensados nos termos do artº
4º (obrigação que ainda se vislumbra no diploma remodelador do regime de emissão de passaportes - cfr. nº 7 do artº 51º do Decreto-Lei nº 438/88, de 29 de Novembro) e [de acordo com a nova redacção conferida à alínea b) do artº 3º daquele Decreto-Lei nº 41.647 pelo Decreto-Lei nº 47.105, de 19 de Julho de
1966] nos documentos de pagamento relativos a fornecimentos ao Exército, Marinha e Aeronáutica, passados por quaisquer firmas nacionais ou estrangeiras, por cada
50.000$00 correspondentes à aquisição de material, incluindo munições, mas com exclusão do material de instrução, aquartelamento, de secretaria, sanitário e de hospitalização, de consumo corrente e, bem assim, do adquirido pelo Estado em regime de lei especial).
Finalmente, por força do estabelecido no artº 4º do Decreto-Lei nº
46.747, de 15 de Dezembro de 1965, passou a ser cobrada em dinheiro (e já não por aquisição e posterior inutilização da estampilha) a «taxa» destinada à Liga dos Combatentes da Grande Guerra e por cujo pagamento eram responsáveis os indivíduos do sexo masculino, de idades compreendidas entre os 18 e os 40 anos, a favor dos quais fossem emitidos os já aludidos passaportes ou certificado colectivo de identidade e viagem.
3. A Liga dos Combatentes é a designação que a Liga dos Combatentes da Grande Guerra passou a assumir em 1975, por «extensão» do substrato pessoal desta última, cujo primeiro estatuto foi aprovado pela Portaria nº 3.888, de 29 de Janeiro de 1924.
De acordo com esse estatuto, a Liga assumia a natureza jurídica de uma associação, cujos fins eram os de 'protecção e auxílio no seu seio', de
'promover benefícios gerais' e de 'estabelecer pensões e socorros a todas as vítimas da Grande Guerra e suas famílias', a par de fins patrióticos e de propaganda do País (artigos 1º e 2º). Dela podiam fazer parte todos os portugueses combatentes da Grande Guerra, que não estivessem incursos em determinadas «incapacidades», ou os seus órfãos e viúvas (artigos 4º e 5º).
Foi, pois, em favor desta associação, tendo em conta que a mesma era uma entidade oficialmente reconhecida pelo Estado, e atendendo às suas específicas finalidades filantrópicas e humanitárias, que foi criada, pelo Decreto nº 13.670, a estampilha ora em causa, como resulta dos passos acima transcritos do preâmbulo desse diploma.
O estatuto inicial da Liga foi, bastante mais tarde, substituído pelo aprovado pela Portaria nº 18.053, de 11 de Novembro de 1960, e este, por sua vez, pelo aprovado pela Portaria nº 745/75, de 16 de Dezembro
(posteriormente alterada pelas Portarias números 725/81, de 27 de Agosto,
781/81, de 16 de Setembro, 392/92, de 12 de Maio, e 901/95, de 18 de Julho).
Do estatuto de 1975 resultou um alargamento do âmbito pessoal da Liga, que passou a abarcar, para além dos antigos combatentes da guerra ocorrida entre 1914-1918, os antigos militares e equiparados que hajam servido em variadas outras missões e campanhas entretanto ocorridas (veja-se, especificadamente, o artº 3º), nomeada e particularmente no teatro ultramarino
(ou ainda, a partir da Portaria nº 901/95, nas operações de paz, desenvolvidas no estrangeiro, no âmbito de compromissos internacionais assumidos pelo Estado português).
Neste estatuto, os fins da Liga mantêm basicamente a mesma índole
(com algum aggiornamento na respectiva concretização e formulação - cfr. artº
2º), como se mantém (pese haver caído a correspondente qualificação expressa) a natureza associativa da instituição - a qual, entretanto, é ainda dita de utilidade pública, patriótica, de assistência e de beneficência, de carácter perpétuo, com personalidade jurídica e utilidade administrativa - cfr. artº 1º.
No mesmo estatuto, entretanto, não deixa de enunciar-se, entre as principais receitas da instituição, a do produto da venda da estampilha da Liga dos Combatentes da Grande Guerra - cfr. artº 11º.
Esse estatuto (com as subsequentes alterações) era o que se encontrava em vigor, seja à data da emissão do Decreto-Lei nº 275-A/93, seja da formulação do pedido ora em apreço. Veio, porém, a ser ulteriormente substituído pelo aprovado pela Portaria nº 119/99, de 10 de Fevereiro.
Neste último, ora vigente, mantém-se o carácter associativo da Liga
(artº 5º e seguintes), mas procede-se (ou pretende proceder-se) a uma
«clarificação» da sua natureza jurídica: por um lado, qualificando-a como uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos, de ideal patriótico e de carácter social, dotada de plena capacidade jurídica para a prossecução dos seus objectivos; por outro, especificando--se que ela exerce a sua actividade sob a tutela do Ministro da Defesa Nacional (artº 1º, números 1 e
2; note-se que esta sujeição à tutela, ou à dependência, do Ministro da Defesa é algo que vem referido no preâmbulo, seja da Portaria que aprovou o estatuto agora referido, seja da que aprovou o estatuto de 1975, como resultando já da lei - cfr. artº 17º do Decreto-Lei nº 400/74, de 29 de Agosto, primeiro, e o Decreto-Lei nº 47/93, depois).
No que respeita aos objectivos da Liga, o estatuto de 1999 (cfr. seu artº 2º) situa-se certamente numa linha de continuidade dos fins tradicionais da instituição, mas não parece descabido assinalar que, no respectivo enunciado, os fins patrióticos gerais assumem agora uma maior ênfase, enquanto que, quanto aos fins sociais, a função de auxílio mútuo indiferenciado e a função representativa de interesses sobrelevam agora notoriamente as de assistência directa (como, de resto, já se notava no estatuto de 1975) - o que bem se explicará pela estruturação e desenvolvimento, entretanto ocorridos, não só dos sistemas de protecção social, como de sistemas de protecção específica das situações de incapacitação ou carência decorrentes das missões de serviço militar, sendo de assinalar que, certamente atenta a circunstância de ter vindo a ser prescrita a norma em análise, tal estatuto já não incluiu, entre as receitas da Liga, a do produto da estampilha (cfr. artº 21º).
Poderá, assim, extrair-se que a Liga dos Combatentes é uma instituição com uma natureza jurídica sui generis: trata-se, sem dúvida, de uma associação, de inscrição voluntária (e, portanto, a esse título, de direito privado), mas verdadeiramente erigida pelo Estado, sujeita à tutela do Governo
(tutela exercida nomeadamente através da aprovação do seu estatuto), mantendo uma específica ligação orgânica às supremas autoridades públicas no domínio das forças armadas (expressa na constituição do seu Conselho Supremo, desde o primitivo estatuto até ao actual - cfr., respectivamente, artº 61º, § 2º, e seguintes, e artº 11º) e sendo titular de um específico apoio público (cfr. artigos 17º e 21º a 23º do actual estatuto) - tudo, naturalmente, em razão do interesse público (ou mesmo da natureza pública) dos fins que prossegue.
4. Aceita-se que o preceito normativo em análise intentou abolir do ordenamento jurídico a obrigação de pagamento da quantia pecuniária correspondente à estampilha da Liga dos Combatentes em todos os casos em que o mesmo era devido (cfr., sobre a questão, o parecer da Procuradoria-Geral da República datado de 22 de Fevereiro de 1996, publicado no Diário da República,
2ª Série, de 31 de Julho de 1996), aceitação essa que até decorre das circunstâncias de o Primeiro-Ministro não pôr em causa o pedido originador do vertente processo - que se reporta a uma interpretação daquele preceito no indicado sentido -, de se ter firmado, na prática, a extinção da receita obtida por via daquela obrigação e, por fim, de nos actuais estatutos da Liga dos Combatentes se não fazer já referência a tal receita.
Assim sendo, o problema a enfrentar consiste, primordialmente, em apurar qual a natureza jurídica do tributo em causa, seguindo-se, naturalmente, a questão de saber se, a entender-se que se trata de um «imposto», a respectiva extinção é algo que se contém na reserva legislativa parlamentar.
4.1. Tocantemente à natureza jurídica da figura tributária designada por estampilha da Liga dos Combatentes, a resposta a esta questão não se afigura particularmente difícil ou duvidosa, à luz da orientação que este Tribunal vem seguindo e que, em geral, é professada pela doutrina [para uma resenha da jurisprudência do Tribunal, até, respectivamente, 1993 e 1996, remete-se para Casalta Nabais, Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria fiscal, Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993, em especial, 254 e seguintes, e Cardoso da Costa, O enquadramento constitucional do direito dos impostos em Portugal: a jurisprudência do Tribunal Constitucional, in Perspectivas constitucionais. Nos 20 anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, publicação organizada por Jorge Miranda, em especial, 401 e seguintes; posteriormente, recordem-se os Acórdãos números 558/98 (Taxas de publicidade em veículos particulares) 621/98 (Taxas do IROMA), 747/98 (Direitos compensadores), 63/99 (Taxas de publicidade), 307/99 (Taxa de radiodifusão), 357/99 (Regulamento da Taxa Municipal de Urbanização de Amarante), 369/99, 370/99, 473/99, 481/99, 512/99, 581/99 (Taxa da peste suína) ou 582/99 (Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto) e, por último e por todos, o recente Acórdão nº 115/02, sobre emolumentos notariais, sendo que, nos indicados arestos, são feitas abundantes referências às posições doutrinárias assumidas na matéria, com indicação das obras e lugares mais significativos]. Ora, como se sabe, tanto na jurisprudência uniforme do Tribunal, como na orientação unânime da doutrina, um elemento ou pressuposto estrutural há-de, desde logo e necessariamente, verificar-se, para que determinado tributo se possa qualificar como uma «taxa», qual seja o da sua «bilateralidade»: traduz-se esta no facto de ao seu pagamento corresponder uma certa «contraprestação» específica, por parte do Estado (ou de outra entidade pública). Se tal não acontecer, teremos um «imposto» (ou uma figura tributária que, do ponto de vista constitucional, deve, pelo menos, ser tratada como tal). Se se não divisarem características de onde decorra a «bilateralidade» da imposição pecuniária, nada mais será preciso indagar para firmar a conclusão de harmonia com a qual é de arredar a qualificação dessa imposição como «taxa». Quanto às modalidades de que a «contraprestação» de uma «taxa» pode revestir-se, entre elas incluem-se, seguramente, a da prestação de um serviço e a da possibilidade de utilização de um bem semi-público, a quem ou por quem a paga. Parte da doutrina e, agora, a Lei Geral Tributária (artigo 4º, nº 2) acrescentam a modalidade da remoção de um limite (ou obstáculo) jurídico à possibilidade da prática de certa actividade ou gozo de certa situação; mas uma outra parte da doutrina – que o Tribunal tem acompanhado (cfr., por último, o citado Acórdão nº 115/02) – considera que, nesta última hipótese, só há «taxa», se a remoção do limite respeitar ao uso de um bem público
Perante uma tal parametrização, e tendo em conta as diversas situações de incidência da estampilha da Liga dos Combatentes, que acima se indicaram, não se vê que em alguma delas ocorra a «bilateralidade», ou que ao seu pagamento corresponda uma qualquer contraprestação específica, características de uma «taxa». Unicamente se poderia duvidar, de diferente perspectiva (e é isso, justamente, o que se faz na resposta do Primeiro-Ministro), se se apelasse a uma terceira modalidade, já antes referida, de contraprestação da taxa, considerada separadamente por alguma doutrina (e, agora, pela Lei Geral Tributária) – precisamente a que se ancora na ideia de que o pagamento da estampilha corresponde, de todo o modo, a uma compensação devida pela desoneração de uma obrigação jurídica ou pela remoção de um limite jurídico.
Simplesmente, e ainda que se admitisse, a se e sem mais, essa modalidade, o que, aliás, não tem sido perfilhado pela posição assumida por este Tribunal (ut supra), desde logo é evidente que não pode falar-se de levantamento de um obstáculo a certo comportamento, ou de desoneração do cumprimento de um dever, em relação à maior parte das situações sobre que incidia a estampilha
(veja-se, verbi gratia, o caso dos isentos do serviço militar, da «baixa» por incapacidade física, demissão, eliminação do serviço ou expulsão, dos excluídos do serviço militar, e ainda, de modo mais claro, se é possível, no caso – de natureza muito diversa daqueles – dos documentos de pagamento relativos a fornecimentos às Forças Armadas).
Algum vislumbre de tal situação só poderia encarar-se relativamente ao pagamento da estampilha no caso dos militares na disponibilidade, licenciados ou nas reservas da Marinha, até aos 40 anos, que se ausentarem, a título temporário ou definitivo, para o estrangeiro, ou que se destinem a tripular navios ou aeronaves estrangeiros, bem como no caso da emissão de passaporte ou certificado de viagem, relativo a indivíduos do sexo masculino entre os 18 e 40 anos, e ainda, porventura, no caso da passagem de praças à disponibilidade, após a instrução de recruta. Mas ainda uma tal perspectiva destas outras situações se afigura como artificiosa – desde logo, e para além de tudo o mais, porque o pagamento da estampilha não se configura nelas (como, de resto, tão-pouco, nos casos antes considerados), como um ónus (stricto sensu) ou condição da obtenção de qualquer dessas vantagens, e antes como um pagamento devido em razão de ou na ocasião de elas serem obtidas (cfr., todavia, o que se encontrava prescrito no artº 46º do Decreto nº 39.794, de 28 de Agosto de 1954).
E daí se poder sustentar que se não levantam grandes dúvidas na qualificação da estampilha da Liga dos Combatentes como um «imposto».
Refira-se ainda que se não vê que a especificidade da destinação da receita em causa – no que toca à sua afectação a uma instituição que, assumindo embora uma natureza bastante singular e sujeita a tutela governamental, não integra, todavia, a organização administrativa – seja de molde a pôr em causa a sua qualificação como «imposto».
Efectivamente, a receita advinda da estampilha da Liga dos Combatentes foi criada pelo Estado, é (ou era) por este coactivamente exigida e a respectiva cobrança é (ou era) controlada ou mesmo efectuada pelos seus serviços; o que se passa (ou passava) é que tal receita é (ou era), simplesmente, consignada a uma determinada finalidade.
4.2. Atingindo-se a conclusão de que a estampilha em apreço deve caracterizar-se como um «imposto», mister é que se saiba se a sua abolição, operada pela norma em questão, viola a reserva parlamentar consignada na alínea i) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.
Uma resposta de imediato afirmativa, claramente, leva pressuposta a premissa de que o referido preceito do Diploma Básico, ao reservar para a competência legislativa primária ou originária da Assembleia da República a criação de impostos, lhe confia também o exclusivo da respectiva extinção
(salvo, claro está, delegação no Governo, para o efeito adrede concedida).
Poderia argumentar-se que, como a decisão política de extinção de um imposto não afecta ou prejudica os cidadãos, então a lógica do princípio da auto-tributação dos contribuintes (que estaria subjacente à mesma reserva), já não imporia que aquela decisão viesse a ser cometida unicamente à expressão da vontade do órgão de soberania que, directamente, representa aqueles cidadãos.
Simplesmente, se não pode deixar de reconhecer-se ao argumento alguma pertinência, o que não deixa de ser certo é que ele é tributário de uma concepção puramente liberal da reserva parlamentar no domínio fiscal, concepção essa de há muito superada. Com efeito, a essa reserva não subjaz apenas a dimensão (liberal) enunciada: subjaz também uma dimensão política e democrática, que se cifra em fazer intervir o Parlamento na tomada de decisões político-legislativas particularmente relevantes para a vida comunitária (vide, assinalando já expressamente esta dupla vertente, ou dupla lógica, da reserva, em matéria de impostos, Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª edição, Coimbra, 1972, p. 166 e nota 1).
Neste contexto, se a reserva parlamentar tem uma lógica que transcende a da pura defesa dos contribuintes (ou, se se quiser, uma lógica que se não limita ao denominado princípio da auto-tributação dos cidadãos, como forma de controlo da «agressão» patrimonial em que o imposto se traduz), então não há razão para que a mesma se não estenda às situações de extinção de um dado imposto, já que estas se revelam claramente significativas para a vida comunitária.
Há, desta arte, que concluir que a norma sub iudicio enferma de inconstitucionalidade orgânica.
5. A proferenda declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral implicará, como é evidente, o «renascimento» da obrigação de pagamento do quantitativo devido pela estampilha da Liga dos Combatentes.
Sendo assim, é manifesto que, seja por razões de equidade, seja de segurança jurídica, seja ainda por razões de interesse público, se impõe, ex vi do disposto no nº 4 do artigo 282º da Constituição, que este Tribunal venha a fixar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de molde a que eles se produzam, não ex tunc, mas sim, e tão somente, para o futuro, ou seja, a partir do momento em que o presente aresto venha a ser publicado no jornal oficial.
6. Em face do exposto, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artº 37º do Decreto-Lei nº 275-A/93, de
9 de Agosto, por violação da alínea i) do nº 1 do artigo 168º da versão da Constituição decorrente da Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/92, de 25 de Novembro, restringindo-se os efeitos da inconstitucionalidade por forma a que os mesmos só se produzam após a publicação deste acórdão no Diário da República. Lisboa, 9 de Abril de 2002 Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa