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Proc. nº 104/02
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão do Tribunal Cível da Comarca do Porto, de 26 de Janeiro de 2001, foram julgados totalmente improcedente, por não provados, os embargos de executado que A e Mulher (ora reclamantes) haviam deduzido por apenso à execução que B (ora reclamada) contra si instaurou.
2. Inconformados com esta decisão os embargantes (ora reclamantes) dela recorreram para o Tribunal da Relação do Porto tendo, a concluir a sua alegação, dito o seguinte:
'1ª - Os factos alegados na petição de embargos são de molde a subsumir a situação às previsões legais no sentido de considerar a mútua colaboração entre o vendedor do veículo e o crédito respectivo, traduzindo-se se não numa venda a prestações em negócio misto, o que a liberdade contratual permite;
2ª - A livrança dada à execução destinava-se a titular o crédito pela venda a prestações efectuada, que integra a respectiva relação subjacente;
3ª - Sendo todas as excepções invocáveis oponíveis ao embargado por nos encontrarmos no domínio das relações imediatas;
4ª - De harmonia com os princípios da protecção dos consumidores;
5ª - Devendo, assim, ser elaborado despacho saneador, com factos assentes e base instructória, a fim de poder apurar-se a responsabilidade que ao embargado caiba ou lhe seja imputável, e ou a medida em que possa exigir aos embargantes quaisquer pagamentos depois da devolução por si mesmo do veículo, atenta a invocada estreita ligação do embargado com o Stand, e como fora realizado o negócio;
6ª - Já que, seria de todo contrário à boa fé, que o embargado, pelos seus representantes, tendo tido colaboração e parte no negócio, como um todo, viesse agora, depois de tudo o que se passou, dizer nada ter a ver e querer obter, à força, o pagamento;
7ª - Com a decisão recorrida, consideram-se violadas as disposições dos artigos
405º, nº 2, 434º, nº 1, 436º, nº 1, 433º, nº 1, 762º, nº 2 do Código Civil, 12º, nº 1, DL nº 359º/91, de 21/9; 60º, nº 1, CR Portuguesa'.
3. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 27 de Setembro de 2001, julgou totalmente improcedente a apelação, decisão que fundamentou nos seguintes termos:
'II. Como fundamento dos embargos, alegam os embargantes – o que agora repetem nas alegações de recurso – haver sido resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel e que, resolvido aquele contrato, resolvido ficou também o contrato de concessão de crédito que esteve subjacente à emissão da livrança dada à execução.
É ponto assente que entre os embargantes e a embargada foi celebrado um contrato de crédito ao consumo tendo por objecto o financiamento da aquisição de um bem – um veículo automóvel – vendido por terceiro. A um tal contrato é aplicável o regime jurídico estabelecido no DL nº 359/91, de
21.9. Como bem se salientou na decisão recorrida, estão em causa dois contratos inteiramente distintos: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito ao consumo. Por isso, a eventual resolução de um deles não arrasta a resolução do outro. E a tanto não obsta o disposto no nº 1 do art. 12º do citado Dec.Lei, segundo o qual, quando o crédito é concedido para financiar o pagamento de um bem fornecido por terceiro (como foi o caso) 'a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou conclusão do contrato de crédito'. Com efeito, e por um lado, validade e eficácia de um contrato são figuras jurídicas substancialmente diferentes da sua resolução; por outro lado, nos termos do preceito citado, não é a validade e eficácia do contrato de crédito que depende da validade e eficácia do contrato de compra e venda, mas precisamente o contrário. Dir-se-á, por último, que não foi alegado qualquer facto em concreto que possa pôr em causa a validade ou subsistência do contrato de crédito. Alegar que entre o Stand vendedor e o representante da embargada existia 'um relacionamento algo estranho' é o mesmo que nada de relevante alegar'.
4. Novamente inconformados, apresentaram os embargantes, ao abrigo da alínea b) do nº 1 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, um requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, em que referiam pretender ver apreciada a constitucionalidade 'da norma constante do nº 1, do art. 12º, do Dec.Lei nº
359/91, de 21/09, por violação do art. 60º, nº 1 da CRP'.
5. Por parte do Tribunal da Relação do Porto foi então proferida decisão que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional. Escudou-se aquele Tribunal, para tanto, na seguinte fundamentação:
'(...) O recurso previsto na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82 cabe das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo», sendo que, nos termos do nº 2 do art. 72º da mesma Lei, o recurso só pode ser interposto quando a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer». Como se escreveu no recente acórdão nº 317/2001 do Tribunal Constitucional
(proc. nº 323/01 – 1ª Secção), de 4.7.2001, «tal requisito impõe que a questão de constitucionalidade seja suscitada de forma expressa, directa, explícita e perceptível, com indicação dos fundamentos da incompatibilidade com a Lei Fundamental, uma vez que não é exigível que os tribunais decidam questões sem que as partes lhes indiquem as razões por que entendem que elas devem ser decididas num determinado sentido ou noutro». Ora, no caso em apreço, face ao teor da alegação dos apelantes (fls. 60/61), parece óbvio que estes não suscitaram, em termos processualmente adequados, a questão de inconstitucionalidade da norma em causa, já que se limitaram a alegar que o sufragar da decisão proferida na 1ª instância conduziria a que «os interesses dos embargantes ficariam altamente desprotegidos, o que não deixaria de importar a inconstitucionalidade do art. 12º, nº 1, do DL nº 359/91, por violação do art. 60º da Constituição. Para além de terem suscitado a questão de forma pouco ou mesmo nada inteligível, não indicaram os fundamentos da incompatibilidade do nº 1 do citado art. 12º com o apontado preceito constitucional. Por essa razão, não houve da parte deste Tribunal qualquer pronúncia sobre a alegada inconstitucionalidade, já que se entendeu que não estava obrigado a dela conhecer. Assim sendo, porque a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada de forma processualmente adequada, é de concluir que não se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional. No sentido da inadmissibilidade do recurso apontam-se, ainda, as seguintes razões. Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer do recurso fundado na na al. b) do nº 1 do art. 70º da LTC, exige-se, além do mais, que a norma cuja inconstitucionalidade é invocada tenha sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi (vd. citado acórdão do TC). Não foi isso, porém, o que sucedeu no caso sub judice, como se constata pela simples leitura do acórdão posto em crise. Por outro lado, e como se escreveu no Ac. Nº 439/91 do Tribunal Constitucional, publicado no DR, II, de 24.4.1992, um recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão
(de constitucionalidade) que é objecto do mesmo recurso. Ora, e como já se referiu, este Tribunal da Relação não proferiu qualquer decisão sobre aquela questão. E, em se entendendo que deveria ter havido decisão, o certo é que da omissão de pronúncia não houve qualquer reclamação, como impunha o art. 668º, nºs 1, al. d) e 3, ex vi do art. 716º, nº 1, ambos do CPC. Em face do exposto não admito o recurso para o Tribunal Constitucional'.
5. É desta decisão que vem interposta a presente reclamação (fls. 4), onde se sustenta, invocando a doutrina, que 'o não conhecimento por parte de um tribunal da inconstitucionalidade de uma norma, quando podia e devia fazê-lo, equivale a aplicação implícita da mesma' e que 'a questão de inconstitucionalidade tanto pode reportar-se apenas a certa dimensão ou trecho da norma, como a uma certa interpretação da mesma'.
6. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido da manifesta improcedência da reclamação apresentada, conclusão que fundamentou nos seguintes termos:
'Desde logo, é duvidoso que a questão de constitucionalidade colocada pelos reclamantes na alegação produzida perante a Relação haja sido suscitada em termos procedimentalmente adequados, já que os reclamantes não curaram de especificar minimamente qual a dimensão normativa do preceito questionado que consideravam inconstitucional, nem trataram de fundamentar, de modo minimamente inteligível ou concludente, as razões da apontada colisão com a Lei Fundamental. De qualquer modo, o recurso interposto sempre seria de considerar como manifestamente infundado, já que não se vislumbra minimamente qualquer razão que possa abalar, no plano constitucional, o decidido pelas instâncias assente na autonomia plena dos contratos (de compra e venda e de crédito) celebrados e na não utilização pelo interessado da possibilidade legal de resolução de uma de tais relações jurídicas autónomas, no prazo legalmente concedido para tal'.
Dispensados os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentação.
7. O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - o que os ora reclamantes pretenderam interpor - pressupõe, além do mais, que: a. o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica, e que; b. a decisão recorrida a tenha aplicado - a norma arguida de inconstitucional -, como ratio decidendi, no julgamento do caso. No que se refere ao pressuposto de admissibilidade do recurso referido em 'a)', tem o Tribunal Constitucional afirmado repetidamente que nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses casos, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) 'tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental'. Verifica-se, porém - como, bem, se refere n a decisão reclamada – que na alegação que apresentaram perante o Tribunal da Relação do Porto (cujas conclusões supra transcrevemos integralmente) os ora reclamantes não trataram de identificar, em termos minimamente suficientes, qual a exacta interpretação normativa do art. 12º, nº 1 do Decreto Lei nº 359/91, de 21/ de Setembro, que consideravam inconstitucional, por violação do disposto no art. 60º, nº 1 da CRP, limitando-se a referir, vagamente, ainda no corpo daquela alegação, que 'de outro modo os interesses dos embargantes ficariam altamente desprotegidos, o que não deixaria de importar a inconstitucionalidade do art. 12º, nº 1, do DL nº
359/91, de 21/09, por violação do art. 60º, nº 1 da constituição'; e, mais à frente, na conclusão 7ª, que 'com a decisão recorrida, consideram-se violadas as disposições dos artigos 405º, nº 2, 434º, nº 1, 436º, nº 1, 433º, nº 1, 762º, nº
2 do Código Civil, 12º, nº 1, DL nº 359º/91, de 21/9; 60º, nº 1, CR Portuguesa'. Ora, tanto basta para que, de acordo com a jurisprudência antes referida, não possa efectivamente admitir-se o recurso para o Tribunal Constitucional interposto pelos ora reclamantes. Ao que vai dito acresce que a não indicação da exacta interpretação normativa do artigo12º, nº 1, do Decreto-Lei nº 359º/91, de 21/9, cuja inconstitucionalidade os reclamantes pretendiam ver apreciada, coloca ainda o Tribunal numa situação de verdadeira impossibilidade de verificar se se encontram preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade do recurso que pretenderam interpor (recorde-se, o previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC), designadamente o de saber se a decisão recorrida efectivamente utilizou, como ratio decidendi, essa dimensão normativa daquele preceito. III – Decisão Por tudo o exposto, decide-se desatender a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada na parte em que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze UC. Lisboa, 16 de Abril de 2002 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida