Imprimir acórdão
Proc. n.º 424/01 Acórdão nº 153/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por apenso aos autos de uma execução movida por A a B, o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Círculo de Anadia, em representação da Fazenda Nacional, reclamou, ao abrigo do disposto no artigo 865º do Código de Processo Civil, determinados créditos provenientes de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), bem como os respectivos juros compensatórios, no valor total de 5.349.427$00. A impugnou a reclamação de créditos deduzida pelo Ministério Público, tendo nomeadamente sustentado que 'as normas que estabelecem privilégios creditórios a favor do Estado são normas que em rigor, traduzem uma manifesta violação do princípio da igualdade das partes no processo ou «princípio da igualdade de armas», decorrente do princípio da igualdade objecto de tutela constitucional
(artº 13º da CRP) e civil (artº 3º-A do CPCiv)', sendo inconstitucional a norma do artigo 736º do Código Civil (fls. 12 e seguintes). O Ministério Público respondeu à impugnação deduzida pela exequente à reclamação de créditos, tendo, entre o mais, sustentado que o artigo 736º do Código Civil não era inconstitucional (fls. 28 e seguintes).
2. Por sentença de 14 de Outubro de 1999, o juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Anadia declarou procedente a reclamação do crédito formulada pelo Estado, reconhecendo-o e graduando-o antes do crédito da exequente (fls. 41 e seguintes). Pode ler-se no texto da sentença, para o que aqui releva, o seguinte:
'[...] Quanto à questão da inconstitucionalidade levantada pela exequente cumpre dizer o seguinte: que de acordo com o artigo 601° do Código Civil, «pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor», acrescentando o n.º 1 do artigo 604º do mesmo diploma, que «não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos». Uma das causas legítimas de preferência é precisamente o privilégio creditório mobiliário geral de que o Estado goza para garantia dos seus créditos decorrentes de liquidações de impostos (directos e indirectos), onde se inclui o imposto sobre o valor acrescentado (IVA). Este privilégio creditório funciona como um desvio ao princípio da paridade de tratamento concedida pela lei aos credores, na medida em que concede a certos credores, independentemente de registo, a faculdade de serem pagos com preferência a outros, tendo em atenção as causas dos respectivos créditos
(artigo 733° do Código Civil). Constituem, efectivamente, um grande perigo para a segurança do comércio jurídico na medida em que valem em face de terceiros independentemente de registo, pelo que podem acarretar graves prejuízos para todos aqueles terceiros que contratem com o devedor sem conhecer a existência daqueles créditos. Contudo, esse desvio é justificado pelo interesse económico, social ou humanitário que está na origem desses créditos, como o de permitir que um devedor [assim no original] obtenha mais facilmente um crédito para fazer face a necessidades vitais (artigo 739°, n.º 1 alínea d) do Código Civil) ou pela importância dos interesses em presença (artigo 736° do Código Civil). Não existe, efectivamente, qualquer violação do princípio da igualdade (na dimensão de igualdade no acesso à justiça), nem qualquer restrição excessiva do direito à propriedade (que engloba o direito dos credores à satisfação dos seus créditos), uma vez que os interesses em causa numa e noutra situação são diversos (por um lado, o interesse individual e, por outro, o interesse comunitário), exigindo, naturalmente, uma diferenciação de tratamento, constitucionalmente permitida, isto é, o princípio da igualdade exige para o seu funcionamento uma igualdade material e não meramente formal. Para além disso, ao contrário do que a exequente alega, tem todo o interesse a faculdade concedida pela lei, no artigo 871° do Código de Processo Civil, mesmo no caso de estar a correr uma execução fiscal, que permite que os créditos provenientes de dívidas fiscais (ou de outras acções executivas onde os bens já tenham sido penhorados) possam ser reclamados em sede das acções executivas em processo cível. Só este entendimento permite satisfazer o escopo daquela norma que é no sentido de haver uma única liquidação de bens penhorados, evitando, desta forma, que em processos diferentes se opere a adjudicação ou venda dos mesmos bens. Pelo exposto, o Estado goza, para garantia do referido crédito proveniente de liquidações adicionais e de juros compensatórios que reclamou, de privilégio mobiliário abrangente do crédito penhorado.
[...]'.
3. Inconformada com a referida sentença, A dela interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 46). Nas alegações respectivas (fls. 52 e seguintes), suscitou novamente a inconstitucionalidade da norma do artigo 736º do Código Civil, por violação dos artigos 13º, 18º, nº 2, e
20º da Constituição. Na sua resposta (fls. 71 e seguintes), o Ministério Público concluiu, nomeadamente, que o artigo 736º, n.º 1, do Código Civil não está viciado por qualquer inconstitucionalidade. Por acórdão de 17 de Outubro de 2000, o Tribunal da Relação de Coimbra concedeu parcial provimento ao recurso, decidindo que o privilégio mobiliário geral do Estado Português abrange os juros compensatórios de IVA relativos aos últimos dois anos (contados tomando como ponto de referência a data da penhora) e mantendo, em tudo o mais, a sentença recorrida (fls. 95 e seguintes). Pode ler-se no texto do acórdão, no que à suscitada questão de inconstitucionalidade diz respeito:
'[...]
5. A segunda questão posta é a da conformidade do artº 736º, nº 1, CC, com o artº 13º da Constituição, que estabelece o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei. O problema é este: Por regra, todos os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para a satisfação integral dos débitos – artº 604º, nº 1, do CC. Será que, ao estabelecer a exclusão aqui em causa – privilégio mobiliário geral do Estado para garantia do crédito por imposto de IVA – a lei ordinária ofende aquele princípio, já que, na prática, o exequente que seja um credor comum sujeita-se então a ver anulada por completo a consistência prática do seu próprio crédito, sem ter podido, sequer, tomar conhecimento prévio da existência de créditos privilegiados? Uma das dimensões do princípio constitucional da igualdade – e, se estamos a ver bem, é a ela que o apelante se refere nas suas alegações – traduz-se na proibição do arbítrio: segundo tal ideia mestra são inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, quer tratamento igual para situações fundamentalmente desiguais. Simplesmente, «a vinculação jurídico material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da
'discricionariedade legislativa' são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma 'infracção' do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio»; «... A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade. A interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio significa uma auto-limitação do poder do juiz, o qual não controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa». Assim perspectivado o princípio da igualdade, crê-se que a consagração do privilégio creditório posto em causa não representa uma arbitrariedade do legislador, isto é, algo que seja destituído de fundamento material. Na verdade, a principal fonte das receitas do Estado são os impostos; e é com elas que o Estado satisfaz as necessidades públicas. Deste modo, não se apresenta como injustificado que, existindo débitos originados pela falta de pagamento de impostos, os créditos correspondentes sejam dotados de uma garantia de cumprimento reforçada. Por outro lado, importa sublinhar que o privilégio mobiliário geral, porque não incide sobre bens do devedor concretos e determinados, não pretere outros direitos reais de garantia que sobre eles se constituam; para além disto, não é uma garantia dotada de sequela oponível a credores que disponham de garantias ou direitos reais sobre os bens penhorados. Isto evidencia que o sacrifício imposto ao credor comum que se defronta com um privilégio mobiliário geral do Estado fundado no artº 736° do CC não é um sacrifício intoleravelmente excessivo e desproporcionado, que releve de um tal ou qual arbítrio do legislador. Não se vê, por fim, que este privilégio traduza uma violação do princípio da igualdade de armas, ou do direito à igualdade no acesso à justiça. Acontece, por um lado, que a preferência em que o privilégio creditório se traduz resulta do ordenamento jurídico substantivo, não da lei adjectiva; neste sentido, por conseguinte, o direito de acesso do credor aos tribunais não se mostra atingido pela concessão do privilégio ao Estado. Por outro lado, não pode esquecer-se o seguinte: a concretização, a realização processual do privilégio em causa pelo recurso às normas que disciplinam a reclamação de créditos
(artigos 864º e seguintes do CPC) integra a realização do direito de acesso aos tribunais por parte do próprio credor privilegiado.
[...].'
4. Não se conformando com o acórdão da Relação de Coimbra, na parte em que lhe foi desfavorável, A dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 100). Nas alegações que então produziu (fls. 106 e seguintes), concluiu como segue:
'[...]
8ª A Administração Fiscal ao contrário dos credores particulares dispõe do processo de execução fiscal para promover a cobrança coerciva dos seus créditos, no qual dirige ela própria o procedimento executivo;
9ª e não só pode, como deve, promover com brevidade a execução fiscal para recuperação dos seus créditos;
10ª O privilégio creditório conforme está estabelecido no artº 736° do CCiv permite que o Estado não promova a execução fiscal dos seus créditos protelando as dívidas por vários anos a acumular juros elevados, aguardando que os credores comuns diligenciem e suportem os encargos com a averiguação e penhora de bens para depois de feita a penhora, confortavelmente notificado, se limitar a reclamar o crédito e ser pago com preferência ao credor particular que promoveu a penhora;
11ª No caso em apreço estão em causa liquidações de IVA referentes a 1991 até
1993 e respectivos juros compensatórios relativos aos dois últimos anos.
12ª Tal privilégio traduz-se numa violação do «princípio da igualdade de armas», afloração do princípio constitucional da igualdade, bem como do direito à igualdade no acesso à justiça;
13ª Ainda que tais restrições encontrem justificação no interesse comunitário da cobrança de impostos, ela desaparece quando a Lei vigente protegendo e até estimulando a inércia do Estado, gera situações de injustificado prejuízo para terceiros;
14ª excedendo-se manifestamente a «proporcionalidade» e «adequação» impostas pelo artº 18° n° 2 da CRP, para restrição dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, concretamente, in casu, o direito da recorrente de acesso ao direito e à justiça em condições de igualdade perante a Lei e perante o Estado;
15ª Ofende a Constituição o disposto no artº 736° do CCiv pelo que deveria o Tribunal recusar a sua aplicação (artº 204° CRP);
16ª Violou assim a decisão recorrida o disposto nos artºs 9º, 734° a 736° do CCiv, 865° nº 1 do CPCiv e artºs 13°, 18º nº 2, 20° e 204° da CRP).'
Em contra-alegações, disse o Ministério Público, nomeadamente, o seguinte (fls.
131 e seguintes):
'[...] B) Quanto à alegada inconstitucionalidade do artº 736° do Cód. Civil com base em violação do princípio da igualdade consagrado no artº 13° da CRP, igualmente nos parece que não assiste razão ao recorrente, como aliás já bem resulta da decisão recorrida, essencialmente centrada na proibição do livre arbítrio. Conforme aí se decidiu, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes, o que permite ao legislador, em obediência ao referido princípio, criar normas que possibilitam «definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente». O princípio em causa admite diferenciações de tratamento desde que não sejam discricionárias, ou seja, desde que sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade. Tal princípio implica mesmo a obrigação de diferenciação, traduzida na função social que impõe ao Estado como tarefa prioritária «a promoção da igualdade económica, dado que as desigualdades sociais – e designadamente as que se traduzem ou resultam directamente das desigualdades de riqueza e de rendimento – implicam a desigualdade no exercício efectivo de muitos direitos fundamentais»
[...]. E não restam dúvidas de que, em face do interesse da comunidade na cobrança dos impostos, se justifica a prevalência de certos créditos do Estado sobre os créditos de um particular, plasmada no artº 736° do Cód. Civil, sendo tal diferenciação legítima e necessária e inconfundível com alegada igualdade de armas. Ao solicitar a intervenção dos tribunais, o recorrente sabia exactamente quais eram as regras do jogo, ou seja, tinha a exacta noção de que armas dispunha, quem era e quem podia ser seu opositor e de que armas estes podiam servir-se. O facto de as Finanças disporem do processo de execução fiscal não invalida que nem sequer se lhe dê início se, na altura, não houver bens penhoráveis.
[...]'.
5. Por acórdão de 10 de Maio de 2001 (fls. 140 e seguintes), o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista, com os seguintes fundamentos:
'[...]
5. [...] o privilégio mobiliário geral estatuído no artigo 736º, do Código Civil não ofende quer o princípio da igualdade estatuído no artigo 13º da Lei Fundamental, quer o princípio do direito de acesso aos Tribunais estatuído no artigo 20º, nº 2, da Lei Fundamental. Por um lado, trata-se de uma medida legislativa justificável atentas as múltiplas funções do Estado – económicas, sociais e culturais –, funções estas que exigem uma cobrança, rápida e segura, das receitas provenientes das contribuições e impostos para cobrir as despesas públicas com aumento constante. Não se apresenta, pois, como uma infracção ao princípio da igualdade. Por outro lado, para além do privilégio creditório, estatuído no artigo 736º, do Código Civil, não contender com o princípio da igualdade processual ou da igualdade de armas (os credores comuns sabem que uma das fases do processo executivo comum é a da reclamação de créditos com garantias reais sobre os bens penhorados), o certo é que trata-se de uma medida adequada para que o Estado desempenhe as suas múltiplas funções (tarefas): sem cobrança de receitas não se pode fazer face às despesas públicas. Dito de outro modo, a necessidade permanente de o Estado fazer face às despesas públicas justifica que, em processos executivos comuns, tenha um direito preferencial hierarquizado com os demais credores com garantias reais sobre os bens penhorados. Conclui-se, assim, que o privilégio concedido no artigo 736º do Código Civil, não viola qualquer princípio constitucional fundamental.
[...].'
6. Inconformada com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, A dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a norma do artigo 736º do Código Civil, à luz do estatuído nos artigos
13º, 18º, n.º 2 e 20º da Constituição, bem como dos princípios da igualdade de armas, paridade de tratamento perante a justiça e igualdade de acesso à justiça
(fls. 149 e seguinte). O recurso foi admitido por despacho de fls. 152.
7. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 154 e seguintes), concluiu a recorrente do seguinte modo:
'1ª O Estado ao reclamar créditos privilegiados em execução cível promovida por um particular surge numa posição paralela à deste, por isso numa situação igual;
2ª O privilégio mobiliário geral do Estado conferido aos créditos por impostos indirectos no artº 736º no CCiv, confere ao Estado o direito de ser pago com prioridade sobre o exequente particular traduz uma desigualdade de tratamento discriminatória;
3ª desnecessária pois o Estado dispõe de outros meios exclusivos e privilegiados que lhe permitem, por si só, e com maior eficácia do que os particulares, assegurar a cobrança coerciva das receitas fiscais, sem necessitar de aguardar pela iniciativa dos credores particulares;
4ª e injusta por o seu exercício importar sempre um prejuízo directo ao credor exequente que é um terceiro que chamou a si as despesas e iniciativa da cobrança coerciva na qual se logrou obter a penhora;
5ª É que o privilégio apenas actua quando o Estado não promoveu, por si, a cobrança coerciva ou não foi eficaz não obstante os meios de que dispõe;
6ª Daí a consciência geral de injustiça do instituto revelada com as reformas que têm sido levadas a cabo no processo civil;
7ª Daí ser violador do princípio da igualdade na vertente da paridade de armas e da igualdade no acesso à justiça, pois além do mais, desvia o processo de execução da sua finalidade – tutela do direito do credor exequente – para servir de forma injustificada e desproporcionada o interesse do Estado alheio a essa finalidade;
8ª De acordo com o artº 735º nº 2 ex vi artº 736º ambos do CCiv, o privilégio em apreço respeita apenas a bens móveis e, estando em causa como nos autos, um direito de crédito cuja abrangência na previsão normativa importaria uma injustificada restrição do direito à igualdade no acesso à justiça, a norma nessa interpretação extensiva é também inconstitucional por violação dos artºs
13° e 20° da CRP;
9ª O privilégio creditório previsto no artº 736° do CCiv traduz uma injustificada e desproporcionada restrição do direito fundamental de igualdade no acesso à justiça, desproporcionada, porque o Estado já dispõe de outros mecanismos exclusivos eficazes (execução fiscal, etc.) e injustificada, por a sua execução importar um prejuízo directo a um terceiro, também lesado pelo devedor;
10ª Além de traduzir uma tremenda injustiça por convidar à inércia do Estado em, por si, promover a cobrança coerciva, estimulando-o a aguardar que qualquer credor comum localize e penhore bens do devedor por sua conta e a seu cargo, para depois, então ir reclamar colhendo o frutos do empenho alheio;
11ª Por tal razão, o artº 736º enquanto restrição do direito fundamental da igualdade no acesso à justiça, excede manifestamente os limites previstos no artº 18º nº 2 da CRP;
12ª Violou, assim, a decisão recorrida, o disposto no artº 204º da CRP ao aplicar norma – o artº 736° do CCiv – que viola os artºs 13º, 18° nº2, 20º da CRP.'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional produziu as contra-alegações de fls. 180 e seguintes, tendo assim concluído:
'1º- Não viola os princípios da igualdade e do acesso ao direito a atribuição a determinados créditos, de natureza fiscal, do Estado, de uma prioridade no pagamento – relativamente aos credores comuns – pelo valor dos bens móveis situados no património da entidade devedora, através da concessão de um privilégio creditório mobiliário geral.
2º- Na verdade, a natureza e origem de tais créditos fiscais – e a relevância constitucional atribuída ao «sistema fiscal» – justificam e legitimam a quebra da regra da «par conditio creditorum», determinada pela oponibilidade do privilégio ao credor comum que figura como exequente.
3º- Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Cumpre apreciar. II
8. Resulta das alegações produzidas pela recorrente junto deste Tribunal que, a par da questão da conformidade constitucional do privilégio mobiliário geral outorgado ao Estado pelo artigo 736º do Código Civil, para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e respectivos juros compensatórios, outra questão de constitucionalidade é suscitada: a da norma do artigo 735º, n.º 2, do Código Civil, em conjugação com a do artigo 736º do mesmo Código, 'no sentido da interpretação extensiva deste [artigo 735º, n.º 2] abrangendo na previsão normativa os casos em que a penhora incide sobre um direito de crédito e não sobre bens móveis por consubstanciar uma restrição ao direito fundamental à igualdade no acesso à justiça sem desrespeito [respeito?] dos limites do artº
18º nº 2 da CRP' (fls. 158 e 166 e seguintes). Segundo a recorrente, 'se [...] os privilégios creditórios não se justificam como indispensáveis para a recuperação dos créditos fiscais e importando o seu exercício prejuízos para terceiros, a interpretação extensiva da sua previsão normativa no sentido de os estender a situações que não resultam expressamente da Lei, importa flagrante violação da Lei fundamental' (fls. 170). O Tribunal Constitucional não pode todavia conhecer desta questão, desde logo, porque no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal a recorrente apenas identificou a norma do artigo 736º do Código Civil, não tendo feito qualquer alusão à norma do n.º 2 do artigo 735º do mesmo Código. Como tal,
é extemporâneo o pedido da sua apreciação nas alegações de recurso.
9. Pelo exposto, apreciar-se-á apenas a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 736º do Código Civil que outorga ao Estado um privilégio mobiliário geral, para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e respectivos juros compensatórios. Trata-se da norma ínsita no artigo 736º, n.º 1, 1ª parte do mesmo Código. Só esta parte do preceito pode estar em causa no presente recurso, dado que nos autos de execução de que este emergiu apenas foram reclamados créditos por impostos indirectos (precisamente, os provenientes de IVA). Dispõe assim o artigo 736º, n.º 1, 1ª parte, do Código Civil:
'Artigo 736º Créditos do Estado e das autarquias locais
1. O Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos [...].
[...]'.
10. Nas alegações para este Tribunal, a recorrente desdobra esta questão em duas: a da inconstitucionalidade da norma do artigo 736º, por violação de certas vertentes do princípio da igualdade (fls. 158 e 159 e seguintes das alegações), e a da sua inconstitucionalidade, na interpretação segundo a qual
'se justifica a sua aplicação mesmo que o Estado não accione os especiais e exclusivos mecanismos de cobrança coerciva de que dispõe, abstendo-se do seu poder dever de cobrança, aguardando pela iniciativa e esforço dos credores particulares para se limitar, depois de convidado para o efeito, a reclamar o seu crédito na execução da iniciativa do particular e cobrando-se com preferência em relação a este que promoveu e suportou os encargos da cobrança coerciva', isto é, 'na interpretação feita pelas instâncias da sua [do artigo
736º] aplicabilidade perante a inércia da administração fiscal em promover a cobrança coerciva' (fls. 159 e 171 e seguintes das alegações). Como é evidente, este desdobramento da questão a que procede a recorrente não pode significar a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, de duas autónomas questões de constitucionalidade. Está em causa, na verdade, uma única questão – recorde-se: a da inconstitucionalidade da norma do artigo 736º do Código Civil
(mais rigorosamente, do seu n.º 1) que outorga ao Estado um privilégio mobiliário geral, para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e respectivos juros compensatórios –, embora resolvida pela recorrente à luz de autónomos argumentos.
11. Assim delimitado o objecto do recurso, afigura-se inteiramente pertinente a observação do representante do Ministério Público junto deste Tribunal (fls. 182 das contra-alegações) de que é 'manifesta a analogia entre a situação debatida nos presentes autos e a que foi dirimida pelo acórdão 688/98 – já que está em causa um privilégio mobiliário geral – garantia real de certa obrigação fiscal, que não reveste a natureza de direito real de garantia, por desprovido de sequela e prevalência relativamente a outros direitos reais – apenas oponível aos credores comuns, mas já não a terceiros que sejam titulares de direitos sobre as coisas abrangidas pelo privilégio e que sejam oponíveis ao exequente, nos termos do artigo 849º do Código Civil'. Como tal, apenas há que encarar a questão colocada pela recorrente face ao que se dispõe nos artigos 13º e 20º da Constituição. Não há portanto que encarar tal questão sob a perspectiva analisada nos acórdãos n.ºs 160/2000, de 22 de Março
(Diário da República, II Série, n.º 234, de 10 de Outubro de 2000, pág. 16404),
354/2000, de 5 de Julho (Proc. n.º 606/99), 561/2000, de 13 de Dezembro (Proc. n.º 597/99) ou 109/2002, de 5 de Março (Proc. n.º 381/01, ainda inédito) – em que, com fundamento em violação do princípio da confiança, foram julgadas inconstitucionais certas normas que consagram privilégios imobiliários gerais, na interpretação segundo a qual tais privilégios prevalecem sobre direitos reais de garantia, ainda que anteriormente constituídos e registados. Ora, no acórdão n.º 688/98, de 15 de Dezembro (Diário da República, II Série, n.º 54, de 5 de Março de 1999, pág. 3319), em que o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, à luz dos artigos 13º e 20º da Constituição, afirmou-se o seguinte:
'[...]
[...] passar-se-á à análise da questão do alegado vício de inconstitucionalidade suscitado, o qual, para a recorrente, consistiria na «violação do direito fundamental de acesso à justiça», que deflui do artigo 20º do Diploma Básico, por banda da norma ínsita no artº 10º do D.L. nº 103/80, que prescreve:
1 - Os créditos das caixas de previdência por contribuições e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747º do Código Civil.
2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
2. Convirá lembrar que existe a obrigatoriedade de inscrição nas caixas de previdência [...] como beneficiários, dos trabalhadores e, como contribuintes, das entidades patronais por aquelas abrangidas nos termos das convenções colectivas de trabalho ou dos diplomas da sua criação, dos seus estatutos e dos despachos de alargamento de âmbito (cfr. artº 1º do dito diploma) e que uns e outras têm de concorrer com as percentagens estabelecidas sobre as remunerações pagas e recebidas (nº 1 do artº 5º, ainda do mesmo diploma), devendo as contribuições dos trabalhadores ser descontadas nas respectivas remunerações e pagas pelas respectivas entidades patronais, juntamente com a contribuições por estas devidas, no mês seguinte àquele a que disserem respeito (números 2 e 3 do aludido artº 5º). Por outro lado, não se passará em claro que o denominado privilégio mobiliário constitui uma forma de garantia especial de cumprimento de obrigações por intermédio da qual é concedido aos credores, tendo em atenção a causa do seu crédito, a faculdade, imposta por lei, de serem pagos preferentemente a outros credores e sem que, para tanto, se torne necessário o registo do seu crédito
[...]. Igualmente não se deixará de anotar que o Código Civil, relativamente àquela espécie de garantia especial e tendo em atenção os privilégios que o mesmo elencou (nos artigos 736º e 737º, quanto a privilégios mobiliários gerais, e
738º a 742º, quanto a privilégios imobiliários especiais), veio, no artº 747º, a prescrever a ordem pela qual os mesmos deverão ser graduados. Também releva recordar que o diploma em que se insere a norma sub iudicio não foi o primeiro a estabelecer tal garantia tocantemente às caixas de previdência, por isso que isso já se encontrava estatuído, ao menos, desde o Decreto-Lei nº
45.266, de 23 de Setembro de 1963 [...].
3. Talqualmente sustenta o representante do Ministério Publico junto deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, o Tribunal perfilha a óptica segundo a qual não se poderá, como em dado ponto sustenta a recorrente na sua alegação, analisar a questão numa perspectiva da «utilização quase abusiva, da iniciativa do exequente, pelos credores privilegiados». Na verdade, o favor dispensado ao credor privilegiado em ser pago preferentemente a outros credores pelo produto da venda dos bens executados não resulta directamente do ordenamento jurídico adjectivo regulador da forma de intervenção no processo destinado à excussão de bens do devedor, mas sim do ordenamento substantivo que vem a prescrever a faculdade dada ao credor dotado dessa garantia em ser, pelo produto dos bens penhorados, pago antes de o ser o montante correspondente ao crédito do exequente que de qualquer garantia real não desfrute (ou que disponha de garantia de «menor peso legal» do que o atribuído aos privilégios mobiliários). E, sendo assim, então resulta de modo directo que não se perfila qualquer limitação ao direito de acesso do credor (postado em situação semelhante à da ora recorrente) aos tribunais, pelo que o artigo 20º da Constituição se não mostrará, nesta dimensão, violado. De outro lado, não se pode olvidar que a efectivação processual do «direito substantivo» dos credores munidos de privilégios mobiliários – através do mecanismo da reclamação de créditos consagrada nos artigos 864º e seguintes do Código de Processo Civil – representa, também ela mesma, quanto ao respectivo crédito e para estes, a realização do direito de acesso aos tribunais. Aliás, dificilmente se vê como, de entre as várias dimensões postuladas pelo direito de acesso aos tribunais (maxime, o «direito a um processo de execução» – cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 163), se deva considerar a consagração da efectiva e inelutável obtenção do devido ao credor ou a prioridade de pagamento dos respectivos créditos em detrimento de outros que sejam titulares de garantia substantiva de que o exequente não desfruta.
4. É certo que, excluídas as excepções consagradas no nº 2 do artº 604º do Código Civil – exclusão expressamente ressalvada no seu nº 1 – neste último se estatui que os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para a satisfação integral dos débitos. A questão que se põe, naturalmente, consistirá em saber se, tomando como referência a excepção concernente aos privilégios mobiliários [...], a respectiva consagração como algo de excludente da condição paritária dos credores, se afigura sem adequado suporte material e, logo, como violador do princípio da igualdade. A respeito de um tal princípio, existe já uma consolidada jurisprudência deste Tribunal, podendo, neste particular, citar-se, como exemplo, e por entre muitos, os Acórdãos números 186/90, 187/90 e 188/90 (publicados na 2ª Série do Diário da República de 12 de Setembro de 1990) [...].
4.1. Definidos assim os contornos do princípio da igualdade, importa analisar se a consagração do privilégio levado a efeito pelo artº 10º do D.L. nº 103/80, tendo como pano de fundo (reitera-se) a par conditio creditorum estabelecida pelo principal compêndio legislativo civil, é perspectivável como uma arbitrariedade, irrazoabilidade ou algo carecido de fundamento material bastante
(ou, se se quiser, não estribado em motivo constitucionalmente próprio). A resposta a esta questão deve, no entender do Tribunal, sofrer resposta negativa. Na realidade, de entre os direitos sociais, institui a Constituição o direito à segurança social (nº 1 do artigo 63º), impondo como uma das tarefas do Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado (nº 2 do mesmo artigo). Ora, não podendo aceitar-se que os recursos do Estado são ilimitados, e sabido que é que uma importante parte dos réditos da segurança social advêm das contribuições impostas para esse fim, designadamente as a cargo ou da responsabilidade das entidades patronais, não se afigura como irrazoável ou injustificado que, havendo débitos surgidos pela não satisfação daquelas contribuições, os correspectivos créditos venham a ser dotados de uma mais vincada garantia de cumprimento das obrigações subjacentes. A isto acresce, e decisivamente, que, de uma banda, sendo um privilégio mobiliário geral, não incide ele sobre determinados ou concretos bens móveis do devedor (desta arte postergando outros direitos reais de garantia – excepção feita ao penhor – que sobre eles fosse constituído), e, de outra, que não está em causa uma garantia dotada de sequela oponível a credores titulados por garantias ou direitos reais sobre os bens objecto de penhora. Daí que se não lobrigue qualquer excesso ou desproporção intolerável na consagração desta forma de garantia especial da obrigação de cumprimento das contribuições para a segurança social, antes, e como se viu, existindo um motivo ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63º da Lei Fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento ou, pelo menos, comporta uma certa forma de sacrifício para o credor comum não munido de qualquer garantia especial.
[...].'
Aplicando a doutrina do acórdão acabado de mencionar ao caso sub judice, conclui-se também que o privilégio creditório mobiliário geral concedido ao Estado para garantia de créditos provenientes de IVA não limita o direito de acesso do credor comum aos tribunais, pelo que o artigo 20º da Constituição (e, consequentemente, o n.º 2 do artigo 18º, também invocado pela recorrente) se não mostra violado: a. Por um lado, porque, 'o favor dispensado ao credor privilegiado em ser pago preferentemente a outros credores pelo produto da venda dos bens executados não resulta directamente do ordenamento jurídico adjectivo regulador da forma de intervenção no processo destinado à excussão de bens do devedor, mas sim do ordenamento substantivo'; b. Por outro lado, porque 'não se pode olvidar que a efectivação processual do «direito substantivo» dos credores munidos de privilégios mobiliários – através do mecanismo da reclamação de créditos consagrada nos artigos 864º e seguintes do Código de Processo Civil - representa, também ela mesma, quanto ao respectivo crédito e para estes, a realização do direito de acesso aos tribunais'; c. Finalmente, porque 'dificilmente se vê como, de entre as várias dimensões postuladas pelo direito de acesso aos tribunais (maxime, o «direito a um processo de execução» – cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 163), se deva considerar a consagração da efectiva e inelutável obtenção do devido ao credor ou a prioridade de pagamento dos respectivos créditos em detrimento de outros que sejam titulares de garantia substantiva de que o exequente não desfruta'. Do mesmo modo, não é arbitrária, irrazoável ou infundada – e, como tal, violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição – a consagração de tal privilégio a favor do Estado. Como se salienta no acórdão recorrido, 'trata-se de uma medida legislativa justificável atentas as múltiplas funções do Estado – económicas, sociais e culturais –, funções estas que exigem uma cobrança, rápida e segura, das receitas provenientes das contribuições e impostos para cobrir as despesas públicas com aumento constante'. Atentas as finalidades subjacentes ao sistema fiscal, é pois justificável a quebra da regra da 'par conditio creditorum', a que a norma ora em causa procede. Por fim, cumpre dizer que não faria sentido que o privilégio creditório não pudesse ser invocado pelo Estado em processo de execução desencadeado por credores particulares – como sustenta a recorrente –, pois tal solução equivaleria na prática à extinção do privilégio, sendo certo que, como já se concluiu, a consagração legal do privilégio a favor do Estado não é arbitrária, irrazoável ou infundada. É bem verdade que a extinção do privilégio creditório a favor do Estado, em caso de falência, se encontra prevista no artigo 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, mas tal extinção corresponde a uma opção do legislador ordinário e não a uma imposição constitucional. III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma da primeira parte do n.º 1 do artigo 736º do Código Civil, que outorga ao Estado um privilégio mobiliário geral, para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e respectivos juros compensatórios; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 17 de Abril de 2002- Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa