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Proc. nº 634/99 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I A O pedido e os seus fundamentos
1. O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional vem requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 3, da Constituição, que seja declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do artigo
71º, nº 3, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho.
A norma em questão foi julgada inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea u), da Constituição [a que correspondia a alínea t) na versão decorrente da Revisão constitucional de 1982], pelos Acórdãos nº 148/96
(D.R., II Série, de 30 de Novembro de 1996, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol.) e nº 52/98 (inédito), e pela Decisão Sumária nº
405/99, de 11 de Junho.
É assim fundamento do pedido a referida reiteração do juízo de inconstitucionalidade relativamente à mesma norma pelo Tribunal Constitucional.
B Resposta do autor da norma
2. O Governo, como autor da norma, veio propugnar a não declaração da inconstitucionalidade orgânica, concluindo a sua argumentação nestes termos:
(...) o regime jurídico de interrupção da prescrição da responsabilidade cvil extracontratual da Administração por actos de gestão pública e as correspondentes garantias dos administrados foram deixados intocados. A preocupação do Governo responde, única exclusivamente, à necessidade de proceder a uma tutela mais eficaz dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, sendo esta a verdadeira relevância e utilidade prática da norma cuja constitucionalidade se impugna. O carácter 'intercalar' do diploma em que a norma se insere indicia, desde logo, o seu carácter não inovativo e substantivo. O preceito agora impugnado configura-se como uma norma legal conformadora que em lugar de inovar ou restringir direitos se destina, prima facie, a completar, precisar, concretizar ou definir o conteúdo e âmbito de protecção de um regime já estabelecido. O Governo deixa imperturbado o 'âmbito de protecção' (domínio e conteúdo) do instituto do regime jurídico de interrupção da prescrição da responsabilidade civil extracontratual da Administração por actos de gestão pública na sua vertente objectiva e substantiva. Imperturbado que fica o regime substantivo de interrupção da prescrição em sede de responsabilidade civil extracontratual da Administração por actos de gestão pública e das correspondentes garantias dos administrados, não vê o Governo como a norma impugnada possa carecer de credencial parlamentar sob pena de vício de inconstitucionalidade orgânica por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
3. Foi apresentado memorando pelo Presidente do Tribunal Constitucional no sentido da declaração de inconstitucionalidade da norma em questão, o qual obteve, após discussão, aprovação por unanimidade. II Fundamentação
4. A norma cuja constitucionalidade está, agora, em causa, dispõe o seguinte: Quando o direito a que se refere o número anterior [o direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública] resultar da prática de acto cuja legalidade seja impugnada contenciosamente, a prescrição não terá lugar antes de decorridos 6 meses sobre o trânsito em julgado da respectiva sentença.
Segundo as decisões que servem de fundamento ao presente pedido, a norma em questão padece de inconstitucionalidade orgânica por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, prevista na parte final da alínea u) do nº 1 do artigo 168º da Constituição [a que correspondia, no momento da edição da norma, a alínea t) do nº 1 do mesmo artigo, e, actualmente, a alínea s) do artigo 165º, após a IV Revisão Constitucional].
5. A fundamentação comum às decisões invocadas é essencialmente a de que a norma em questão tem um carácter inovador relativamente ao regime anteriormente vigente, incidindo sobre um aspecto substantivo 'dos mais significativos do regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual da Administração'.
A natureza inovadora da referida norma resulta de o prazo que nela se estabelece consagrar uma solução a que não se poderia nunca chegar pelo direito anterior, independentemente de se entender que a propositura do recurso contencioso interrompia a prescrição (orientação que entretanto se firmou na jurisprudência administrativa) ou que não operaria tal interrupção. Com efeito, no primeiro caso, o prazo prescricional de três anos iniciar-se-ia com o trânsito em julgado da decisão do recurso contencioso; no segundo caso, o prazo prescricional iniciar-se-ia com o conhecimento do direito pelo lesado (cf. Acórdão nº 148/96).
Quanto ao carácter substantivo da norma questionada, ela é decorrência do facto de o regime da prescrição da indemnização por responsabilidade civil extracontratual da Administração constituir um aspecto essencial do regime daquele instituto, com 'relevância decisiva para a satisfação das pretensões indemnizatórias dos sujeitos lesados, tendo em conta que a prescrição é susceptível de ocasionar a extinção de direitos, dada a sua natureza de excepção peremptória'.
Deste modo, a conclusão de que a norma do artigo 71º, nº 3, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos versa matéria objecto da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República foi considerada necessária e dela decorreu a constatação de que, tendo o Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, sido aprovado ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, sem autorização legislativa, a norma do referido artigo 71º, nº 3, era organicamente inconstitucional.
6. A argumentação agora expendida pelo Governo contra a inconstitucionalidade orgânica não apresenta elementos que não tenham sido já considerados pelo Tribunal Constitucional nas decisões que servem de fundamento ao pedido, nomeadamente pela consideração, no Acórdão nº 148/96, da própria fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que ele veio revogar.
Com efeito, ao invocado carácter meramente conformador da norma em causa, destinada a 'completar, precisar, concretizar ou definir o conteúdo e o
âmbito de protecção de um regime já estabelecido', contrapôs-se nas decisões fundamento (nomeadamente no Acórdão nº 148/96) a razão de que em qualquer interpretação do regime vigente sempre o prazo de seis meses suspenderia o termo final do prazo prescricional fosse qual fosse o seu termo a quo; ao argumento da não substantividade da disciplina normativa em análise que o Governo invoca, contrapôs-se a já referida natureza da prescrição, na perspectiva da sua relevância decisiva como causa de extinção de direitos.
7. Para além de tudo isto, também sempre se dirá que ainda que a norma sob análise não fosse mais do que uma norma interpretativa de um regime efectivamente já existente, esta circunstância não dispensaria a observância da reserva parlamentar, na medida em que poria termo a uma situação jurisprudencial em que várias interpretações seriam consideradas possíveis, impedindo, inovatoriamente, que outras interpretações viessem a ser, a partir da vigência desta norma, utilizadas (cf., revelando essa perspectiva, Acórdão nº 174/93, D.R., II Série, de 1 de Junho de 1993).
III Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do artigo 71º, nº 3, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea t), da Constituição
(versão de 1982). Lisboa, 9 de Abril de 2002- Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa