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Processo nº 585/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa de 16 de Março de 2001, foi julgada procedente uma acção para o reconhecimento de direitos e interesses legítimos proposta por A e outros, identificados nos autos, sargentos da Força Aérea, contra o MINISTRO DA DEFESA NACIONAL e o CHEFE DO ESTADO MAIOR DA FORÇA AÉREA, na qual pediram, em primeiro lugar, que se declarasse que 'têm direito a não receber menos que qualquer primeiro-sargento mais moderno pertencente à Marinha' e, em segundo lugar, que lhes fosse reconhecido o direito a receberem 'um diferencial de remuneração calculado nos termos do Decreto-Lei
80/95 de 22 de Abril, de tal modo que, no período compreendido entre 27 de Abril de 1995, data da entrada em vigor do Decreto-Lei 80/95 e 1 de Julho de 1997, data de início da produção dos efeitos do Decreto-Lei 299/97 de 31 de Outubro, os AA. não percebam quantia inferior à percebida pelo NII 78871, B, primeiro-sargento da Armada, sargento mais moderno que os AA.'. Como fundamento da sua pretensão, os autores alegaram, em síntese, o seguinte: Pelo Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, foi aprovado o novo sistema retributivo da função pública, cujos princípios (entre os quais se contam o princípio da equidade e o da salvaguarda de direitos) são aplicáveis às Forças Armadas (artigo 3º, nº 2); pelo Decreto-Lei nº 57/90, de 14 de Fevereiro, foi estabelecido o regime remuneratório dos seus três ramos; o Decreto-Lei nº 98/92, de 28 de Maio, veio corrigir algumas anomalias que ocorreram em virtude da aplicação das novas regras retributivas; do Estatuto das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro, consta a regra de que o tempo de serviço é considerado para o efeito de determinar a remuneração dos militares, independentemente do ramo a que pertencem, e que, para os que integram o quadro permanente, releva o respectivo posto e o tempo de permanência no mesmo; e que, portanto, os militares 'com o mesmo posto, e igual tempo de permanência no posto (leia-se antiguidade no posto), devem perceber a mesma remuneração base independentemente do ramo a que pertencem'. Ora, verificando que ocorriam anomalias decorrentes da aplicação do novo sistema retributivo no âmbito da Marinha, pois casos houve em que sargentos mais modernos passaram a auferir um vencimento base superior ao de sargentos mais antigos, o legislador veio corrigi-las através do Decreto-Lei nº 80/95, de 22 de Abril; não curou, todavia, de resolver o mesmo problema nos outros dois ramos das Forças Armadas, provocando, desta forma, desigualdade entre os sargentos respectivos e os militares com posto e antiguidade correspondentes da Marinha. Invocam, assim, a ilegalidade do respectivo artigo 1º, por violação de lei de valor reforçado (a alínea a) do artigo 15º da Lei nº 114/88, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento Geral do Estado e que autorizou o Governo a emitir o Decreto-Lei nº 184/89), 'nomeadamente na parte em que esta norma não conferiu ao sistema retributivo, conforme devia, ‘coerência, equidade e clareza’' e a inconstitucionalidade no seu nº 1 por, ao originar 'uma desigualdade remuneratória arbitrária e irrazoável para os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, quando em comparação com os correspondentes em antiguidade e posto na Marinha', violar o princípio da igualdade e o princípio de 'para trabalho igual, salário igual' (artigos 13º e 59º, nº 1, da Constituição). Posteriormente, o Decreto-Lei nº 299/97, de 31 de Outubro, veio criar um diferencial de remuneração para corrigir esta desigualdade; mas o seu artigo 8º determina que só produz efeitos a partir de 1 de Julho de 1997, mantendo-se, pois, a desigualdade entre a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 80/95 (27 de Abril de 1995) e esta data. Consequentemente, invocam a inconstitucionalidade da norma deste artigo 8º, conjugada com o artigo 1º do Decreto-Lei nº 80/95, por violação daqueles princípios, bem como a ilegalidade, também por violação da Lei nº 114/88.
2. Não obstante as contestações apresentadas pelos demandados, a sentença julgou a acção procedente. Após análise dos sucessivos diplomas relevantes e das exigências decorrentes da consagração constitucional do princípio da igualdade, transcreveu diversas passagens 'do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/99
(Processo n.º 21/99), publicado no DR, II série, de 19 de Julho de 1999, com o n.º 166, e no qual se apreciou precisamente suscitada pelos aqui AA. da inconstitucionalidade da norma contida no art. 8º do Dec. Lei n.º 299/97, de 31 de Outubro', das quais se salientam as seguintes:
'2. Com o Decreto-Lei nº 80/95 intentou o legislador corrigir a
'existência de anomalias com especial incidência na categoria de sargentos da Marinha e, dentro desta, no posto de primeiro-sargento', anomalias essas que originaram 'efeitos perversos com nítido prejuízo da hierarquia funcional, dadas as especificidades de alimentação e a natureza do desenvolvimento de tal carreira e das praças da Marinha das classes homónimas'.
Na sequência desse intento, estabeleceram-se as seguintes prescrições:- Artigo 1.º - 1 - Sempre que um primeiro-sargento dos quadros permanentes da Marinha, na situação do activo, aufira remuneração inferior à de sargentos com menor antiguidade ou posto é reposicionado no escalão da respectiva escala indiciária correspondente ao maior valor da remuneração efectivamente percebida por sargentos com menor antiguidade,
2 - Caso não exista índice de valor igual à remuneração a que se refere a parte final do número anterior, o reposicionamento é feito para o índice imediatamente superior.
3 - A remuneração que serve de referência é a correspondente ao valor da adição do índice e do diferencial de integração, caso exista. Art. 2º - 1 - Nas promoções a primeiro-sargento de segundos-sargentos cuja remuneração inclua diferenciais de integração, estes são colocados na escala indiciária do novo posto no índice que corresponde à adição da remuneração base e do diferencial de integração, se superior ao 1.º escalão de primeiro-sargento.
2 - Caso não exista índice de valor igual à adição a que se refere o número anterior, a integração é feita no índice imediatamente inferior, atribuindo-se um diferencial correspondente à diferença entre este índice e o valor da referida adição.
(...)
Significa isto que a medida legislativa de 1995 visou, e tão somente, a correcção de anomalias, que se descortinaram por efeito da prática da vigência do regime remuneratório aplicável aos militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, anomalias essas que se repercutiam com especial relevo na categoria de sargentos da Marinha.
Se idênticas anomalias, também por força da aludida prática, se desencadeavam também nos demais ramos da Forças Armadas (Exército e Força Aérea), isso foi algo com que, em 1995, o legislador governamental se não preocupou, em termos de entender que o sistema que gizou para a sua correcção na Marinha se deveria estender àqueles demais ramos ou de entender por bem também gizar outro, ou outros, sistemas obstativos dessas hipotéticas anomalias.
(...)
2.1. Todavia, como a disciplina introduzida, quanto à remuneração dos primeiros-sargentos da Marinha - comparativamente aos demais sargentos daquele ramo com menor antiguidade ou posto - veio criar uma situação de acordo com a qual, objectivamente, aqueles poderiam vir a auferir remuneração desigual
à vencida pelos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea com igual ou superior antiguidade, o Governo, em 31 de Outubro de 1997, editou o Decreto-Lei nº 299/97 que: -
- de uma banda, revogou o Decreto-Lei nº 80/95, instituidor daquela mesma disciplina (cfr. seu artº 6º);
- de outra, substitui a disciplina prescrita no Decreto-Lei nº 80/95 por uma nova que, simpliciter (cfr. seu artº 1º), consistiu na dação, aos primeiros-sargentos dos quadros permanentes da Marinha no activo que auferissem remuneração inferior à de sargentos, também da Marinha, com menos antiguidade ou com menor posto, de um abono, designado de «diferencial de remuneração», calculado nos termos do seu artº 3º, ou, nos casos de promoção de segundos-sargentos a primeiro-sargento, posicionando os promovidos segundos-sargentos, cuja remuneração efectivamente percebida já incluísse diferenciais de remuneração, no 1º escalão do posto de primeiro-sargento, mantendo o diferencial no montante que excedesse o índice do 1º escalão (cfr. artº 4º);
- ainda por outra, estatuindo, no seu artº 2º, que o direito ao abono do diferencial estabelecido para os primeiros-sargentos da Marinha se aplicava aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, na situação do activo, sempre que estes auferissem menor remuneração e tivessem igual ou maior antiguidade no posto relativamente aos primeiros-sargentos da Marinha (cfr. artº
2º);
- determinou a produção de efeitos a partir de 1 de Julho de 1997
(cfr. artº 8º).
(...)
Não se visou, assim, quanto à atribuição do diferencial, instituída pelo artº 2º do Decreto-Lei nº 299/97, aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, consagrar uma identidade de soluções legislativas relativamente às situações em que um primeiro-sargento, mercê do regime geral remuneratório dos militares dos quadros permanentes, viesse a auferir menos do que um sargento com menor antiguidade ou posto desses mesmos ramos.
Visou-se, antes, obstar a que os primeiros-sargentos da Marinha com igual ou menor antiguidade no posto do que os primeiros-sargentos do Exército ou da Força Aérea, viessem, efectivamente, a auferir remuneração superior à destes.
2. Essa superior remuneração advinha, como é por demais claro, não por força do regime remuneratório aplicável aos militares dos quadros permanentes, mas sim por via da disciplina que foi consagrada pelo Decreto-Lei nº 80/95 (que, repete-se, intentou, e tão só, corrigir anomalias que, na Marinha, se descortinaram pela aplicação, na prática, daquele regime, na categoria dos sargentos).
(...)
Fica, assim, assente que a eventual diferenciação de remunerações entre os primeiros-sargentos da Marinha com igual ou menor antiguidade no posto que os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea só ocorreu, posteriormente à consagração do regime remuneratório aplicável aos militares dos quadros permanentes, depois da edição do Decreto-Lei nº 80/95, diferenciação essa a que o legislador de 1997 intentou obviar. Vale isto por dizer que, suposto que essa diferenciação se subsuma a uma desigualdade de tratamento não tolerável e, consequentemente, ferindo o princípio postulado pelo artigo 13º da Constituição (o que, reitera-se, aqui não cabe dilucidar), então tal desigualdade foi originada pelas prescrições ínsitas naquele diploma (o citado Decreto-Lei nº 80/95).
3. A norma em apreço - o artº 8º do Decreto-Lei nº 299/97 - veio, unicamente, a comandar que esse diploma produz efeitos a partir de 1 de Julho de
1997. Isso significa que, a partir dessa data, a diferenciação remuneratória porventura existente entre os primeiros-sargentos da Marinha e os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea com igual ou superior antiguidade no posto àqueles, diferenciação ocorrida em virtude das prescrições estabelecidas pelo Decreto-Lei nº 80/95, deixou de se verificar.
(...)
Na verdade, se a diferenciação remuneratória que eventualmente ocorreu entre os primeiros-sargentos da Marinha com igual ou menor antiguidade no posto que os primeiros-sargentos do Exército ou da Força Aérea, porventura integrou uma desigualdade inadmissível, arbitrária e sem qualquer justificação fundada em valores objectivos constitucionalmente relevantes (cfr., sobre o princípio da igualdade, por entre muitos outros, os Acórdãos deste Tribunal números 186/90, 187/90 e 188/90, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, 383 a 421 e, sobre a problemática da proibição de discriminações versus diferenciações de tratamento, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 127 e 128), então isso deveu-se, única e exclusivamente, à normatização constante do Decreto-Lei nº 80/95.
Por isso, a ter ocorrido desigualdade constitucionalmente censurável, ela desencadeou-se por força de tal diploma, o que vale por dizer que foram as suas estatuições as criadoras desse hipotético vício. O Decreto-Lei nº 299/97 limitou-se a conceder aos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea o direito ao abono do diferencial remuneratório (calculado nos termos do seu artigo 3º e que veio a substituir, a partir da sua produção de efeitos - 1 de Julho de 1997 -, sem «tocar» as situações já constituídas ao abrigo do Decreto-Lei nº 80/95, para os primeiros-sargentos da Marinha, o reposicionamento consagrado neste último diploma) concedido a estes últimos, contanto que os primeiros auferissem menor remuneração e tivessem igual ou superior antiguidade em relação aos segundos.
E, com essa concessão, foi desiderato do legislador de 1997, tão somente, obviar a que os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, com igual ou superior antiguidade, viessem a perceber remuneração inferior aos seus homólogos da Marinha (...) Com essa disciplina, o Decreto-Lei nº 299/97 veio, assim, a partir da sua produção de efeitos, a terminar com uma situação em que, objectivamente, se descortinava uma diferenciação remuneratória mais favorável para os primeiros-sargentos da Marinha que detinham igual ou inferior antiguidade relativamente aos seus congéneres do Exército e da Força Aérea, situação essa que não foi por ele criada, mas sim pelo Decreto-Lei nº 80/95.
Se tal diferenciação acarretava uma hipotética desigualdade constitucionalmente censurável, sublinha-se uma vez mais, ela seria imputável ao diploma de 1995; e sendo ela corrigida pelo diploma de 1997, não será da circunstância de a sua vigência ter sido protraída somente a 1 de Julho desse ano que se lobriga qualquer inconstitucionalidade por ferimento do princípio da igualdade condensado no artigo 13º da Lei Fundamental. Esse eventual vício será imputável, e só, ao Decreto-Lei nº 80/95, (...) não sendo da norma do artº 8º do Decreto-Lei nº 299/97, antes pelo contrário, que minimamente resulta qualquer diferenciação remuneratória para menos auferida pelos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea repeitantemente aos seus homólogos da Marinha com igual ou inferior antiguidade.' A sentença citou, ainda, jurisprudência do Tribunal Central Administrativo e do Supremo Tribunal Administrativo, no mesmo sentido –, ou seja, sustentando que, a existir infracção do princípio da igualdade, ela não resultaria do regime definido pelo artigo 8º do Decreto-Lei nº 299/77, mas sim de diplomas anteriores, referindo em especial o Decreto-Lei nº 80/95, e concluiu da seguinte forma:
'Ora, no caso sub iudice, os AA. invocam justamente a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 80/95, de 22 de Abril, dizendo que originou uma desigualdade remuneratória arbitrária e irrazoável para os primeiros-Sargentos do Exército e da Força Aérea quando em confronto com os correspondentes em antiguidade e posto na Marinha.
Efectivamente assim é. Na verdade, a nosso ver, o Dec. Lei n.º
80/95, de 22 de Abril, ao atribuir um diferencial de remuneração aos Sargentos da Armada mais antigos, com exclusão dos Sargentos da Força Aérea e do Exército, com igual posto e a mesma antiguidade no posto, veio introduzir distorções remuneratórias, privilegiando os primeiros em detrimento dos segundos, com preterição dos princípios constitucionais invocados pelos AA. da igualdade e de a trabalho igual salário igual.
Poderá objectar-se, é certo, que o princípio da igualdade apenas proíbe que se trata diferentemente o que é idêntico e que, tratando-se de ramos distintos, logo diferentes, das Forças Armadas, não existe identidade objectiva que reclame tratamento semelhante.
Foi, no entanto, o legislador quem estabeleceu a igualdade de todos os militares, sem distinção da arma onde servem, para efeitos remuneratórios no art. 21º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas anexo ao Dec. Lei n.º
34-A/90, de 24 de Janeiro, como o contrário (no sentido da violação do princípio da igualdade) resulta do Dec. Lei n.º 299/97, de 31 de Outubro, que teve como objectivo, claramente enunciado no seu preâmbulo, o de 'superar a relativa desigualdade acima mencionada', onde se diz ter sido introduzida pelo Dec. Lei n.º 80/95.
O reconhecimento de desigualdades que o diploma visa corrigir tem, implícito, o reconhecimento da inexistência de razões objectivas, de conteúdo funcional, que justifiquem tratamento diferenciado. Como se afirmou no Ac. do T.C.A., de 27 de Abril de 2000, in Rec. nº 1450, anteriormente à entrada em vigor de tal medida (aprovada pelo Dec. Lei n.º
299/97) não podia a Administração, por acto administrativo, corrigir eventual injustiça existente entre os primeiros-Sargentos da Força Aérea e os da Marinha, em virtude do quadro legal então existente o não permitir e face ao dever da obediência ao princípio da legalidade que impende sobre a Administração. Na presente acção, porém, não estando em questão a legalidade de um acto administrativo, mas o reconhecimento de um direito, fundado na inconstitucionalidade da norma que o reconhece a outros mas não aos aqui AA., forçoso é concluir, pelas razões expostas, que procede a pretensão dos AA. Pelo exposto, julgo a presente acção procedente e, consequentemente, reconheço e declaro que os AA. têm direito a não receber menos que qualquer primeiro-sargento mais moderno pertencente à Marinha; Igualmente reconheço e declaro o direito dos AA. a perceber um diferencial de remuneração calculado nos termos do Dec. Lei n.º 80/95, de 22 de Abril, de tal modo que, no período compreendido entre 27 de Abril de 1995, data da entrada em vigor do Dec. Lei n.º 80/95, e 1 de Julho de 1997, data do início da produção dos efeitos do Dec. Lei n.º 299/97, de 31 de Outubro, os AA. não percebam quantia inferior à percebida pelo NII 7881, B, primeiro Sargento da Armada, sargento mais moderno que os A.A.
(...)'
3. Desta sentença interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, nos seguintes termos:
'A Magistrada do Mº Público, junto deste Tribunal, nos termos dos art°s 70, n.º1, al. a) e 75-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n° 28/82, de 15/11, com as alterações introduzidas pelas Leis 143/85, de 26.11, 85/89, de 7.9,
88/95, de 1.9 e 13-A/98, de 26/2), vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional da douta sentença proferida nos autos à margem referenciados, dado que:
1. Com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade e da igualdade da retribuição, previstos, respectivamente, nos artºs
13° e 59° da Constituição,
2. A douta sentença em apreço recusou a aplicação do artº 1°, n.º1 do Dec.Lei n.º 80/95, de 22/4, porquanto:
3. 'ao atribuir um diferencial de remuneração aos Sargentos da Armada mais antigos, com exclusão dos Sargentos da Força Aérea e do Exército, com igual posto e a mesma antiguidade no posto, veio introduzir distorções remuneratórias, privilegiando os primeiros em detrimento dos segundos.' O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
4. Notificadas as partes para alegações, vieram apresentá-las o Ministério Público e A. O Ministério Público, após frisar que o objecto do presente recurso se circunscreve, nos termos do respectivo requerimento de interposição. à norma constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 80/95, começou por observar que devem, a seu respeito, distinguir-se duas questões: Em primeiro lugar, a que se traduz em poder ocorrer, no Exército e na Força Aérea, a mesma anomalia que se verificou na Marinha, ou seja, 'que primeiros-sargentos dos quadros permanentes, no activo, auferissem remuneração inferior à de sargentos do mesmo ramo, com menor antiguidade ou posto'. Quanto a esta hipótese, o Ministério Público entende que o Tribunal Constitucional deve proferir uma 'decisão aditiva' de inconstitucionalidade, por violação clara do princípio da igualdade. Em segundo lugar, a que respeita à diferenciação que pode implicar entre militares dos quadros permanentes de postos correspondentes e de igual antiguidade mas pertencentes a ramos diferentes das Forças Armadas – Marinha, por um lado, Exército ou Força Aérea, por outro. E, quanto a este aspecto, o Ministério Público pronuncia-se em sentido inverso, frisando, em síntese, que podem existir especificidades dos diferentes ramos que justifiquem tratamento diferenciado, que o princípio da igualdade apenas exige a proibição de diferenciações arbitrárias, e que o Tribunal Constitucional tem frisado que 'a comparação entre regimes jurídicos referentes a militares com estatutos ou carreiras diferenciadas possa incidir apenas sobre a análise e consideração de
‘pontos isolados’ do regime globalmente em vigor', referindo os acórdãos nºs
319/00 e 378/00. Assim, concluiu do seguinte modo:
'2. Conclusão Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1 ° - É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma constante do artigo 1°, n.º1, do Decreto-Lei n° 80/95, de 22 de Abril, interpretada – no que respeita ao seu âmbito subjectivo – em termos de não ser aplicável aos primeiros-sargentos dos quadros permanentes da Força Aérea e do Exército, no activo, o regime aí previsto, de modo a tomar legalmente admissível que militares de tais Ramos possam auferir remunerações inferiores à percebida por militares do mesmo Ramo, com menor antiguidade ou posto, e sem que a especificidade das funções exercidas possa legitimar tal diferenciação remuneratória.
2° - Porém, já não viola aquele princípio constitucional a interpretação normativa de tal preceito legal que se traduz em admitir a existência de possíveis e eventuais diferenciações remuneratórias entre militares, com postos idênticos, ao serviço de diferentes Ramos das Forças Armadas, atenta a autonomia funcional e estatutária e as especificidades e relevo do serviço prestado.
3° - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade da interpretação normativa referida na conclusão 2ª.' Quanto ao recorrido A, adere à primeira conclusão das alegações do Ministério Público, mas discorda da segunda, e apresenta as seguintes
'CONCLUSÕES:
1. Legalmente, a remuneração base dos funcionários públicos encontra-se definida no art.º 17.º do DL 184/89 e é determinada ‘pelo índice correspondente à categoria e escalão em que o funcionário ou agente está posicionado’. Igual conceito foi definido para o regime remuneratório dos militares das Forças Armadas dos QP, integrados em corpos especiais, conforme explicitam os arts.º
123.º e 124.º do EMFAR aprovado pelo DL 34-A/90, de 24JAN, conjugados com o art.º 2.º do DL 57/90, de 14FEV.
2. A parte geral do EMFAR aprovado pelo DL 34-A/90 de 14 de Janeiro, ‘é aplicável a todos os militares, independentemente do ramo categoria e modalidade de prestação de serviço’, e relativamente à remuneração, o art.º 21° (Parte Geral) dispõe que o militar tem ‘direito a perceber de acordo com’ ...o ‘tempo de serviço’ e o artigo 123° (livro II, dos militares dos quadros permanentes, Título I, Parte comum) determina que ‘o militar dos QP na efectividade de serviço tem, nos termos definidos em legislação própria, direito a remuneração adequada’,... ‘de acordo com o posto’, ... ‘e o tempo de permanência neste’, enquanto que no artigo 165° determina que os suplementos são conferidos em virtude da natureza da condição militar, dos cargos exercidos, funções desempenhadas e riscos acrescidos.’
3. Acontece que entre certa [certas datas?], 22 de Abril de 1995 a 1 de Julho de
1997, um único posto (primeiro-sargento da Armada) percebeu maior remuneração base em confronto com o mesmo posto do Exército ou da Força Aérea. Exceptuando este período, as remunerações base ou vencimento base em cada posto dos militares dos QP sempre foram as mesmas desde a rotura institucional verificada em 25 de Abril de 1974, independentemente do ramo das Forças Armadas em que se inseriam, não havendo autonomia estatutária dos ramos no vencimento base ou ordenado base.
4. Nos presentes autos não está em causa qualquer especificidade ou relevo do serviço prestado pelos primeiros-sargentos da Marinha, isto é a desigualdade remuneratória entre os primeiros-sargentos da Armada e os primeiros-sargentos dos outros Ramos das Forças Armadas não tem qualquer relação com a natureza, ou características do trabalho prestado, nem com as capacidades e qualificações profissionais dos militares em causa, ou até de alimentação , no sentido de comida.
5. Mas se estivesse em causa a especificidade do serviço prestado | para este
único posto da Marinha - primeiro-sargento | tal especificidade seria remunerada ou compensada por suplementos remuneratórios, conforme exige o artigo 124° do EMFAR aprovado pelo DL 34-A90 de 25 de Janeiro.
6. A aplicação dos Dec.Lei n.º 57/90 de 17 de Fevereiro, e Dec. Lei 307/91 de 17 de Agosto, permitiu que um cabo (categoria de praça da Marinha que normalmente frequentava o Curso de Formação de Sargentos no último escalão) ao ingressar na categoria de sargento, ficou a perceber maior retribuição que de um primeiro-sargento com maior antiguidade.
7. Tal consequência, foi identificada como originando anomalias e distorções remuneratórias, causadoras de ‘efeitos perversos com nítido prejuízo da hierarquia funcional’.
8. A reposição da legalidade foi feita através do Dec.Lei n.º 80/95, que visou expressamente a correcção de tais ‘efeitos perversos com nítido prejuízo da hierarquia funcional’ mas só para a remuneração dos primeiros-sargentos da Armada.
9. Por força do artigo 1° n° 1 do Dec.Lei 80/95, sempre que um primeiro-sargento da Armada, ficasse a receber de ordenado base mais do que outro primeiro-sargento mais antigo, este seria reposicionado na respectiva escala indiciária, correspondente ao maior valor da remuneração efectivamente percebida por primeiros-sargentos com menor antiguidade.
10. Com tal correcção e reposicionamento de escalões, os primeiros-sargentos da Marinha passaram a perceber de remuneração base uma quantia maior que primeiros-sargentos mais antigos do Exército e da Força Aérea.
11. Deste modo o Dec.Lei 80/95 viria a ter repercussões no Exército e na Força Aérea, 'ao colocar os primeiros-sargentos daqueles ramos numa situação de relativa desigualdade remuneratória com prejuízo dos princípios enformadores da prestação do serviço militar e da coesão que garanta a necessária eficácia no cumprimento das missões'.
12. Reconhecida a desigualdade, no sentido de a corrigir, o legislador do DL
299/97, revogou o DL 80/95 (artº.6°), passando-se a aplicar um sistema remuneratório igual nos 3 ramos das Forças Armadas, mas, por motivos que não invocou e que poderia justificar, tal opção político-legislativa acabou por manter, ainda que em termos temporais (27 de Abril de 1995 a 1 de Julho de
1997), essa mesma desigualdade, privilegiando os primeiros-sargentos da Armada face aos primeiros-sargentos do Exército e Força Aérea.
13. Fez, pois, uma correcção parcial da mesma, que, o Recorrido tem por injustificada, pois o DL 299/97 só retroagiu a 1 de Julho de 1997.
14. Se o legislador entendesse que a desigualdade invocada tivesse qualquer relação com a natureza, ou características do trabalho prestado, ou com as capacidades e qualificações profissionais dos primeiros-sargentos da Marinha, deveria expressá-lo nos respectivos preâmbulos dos diplomas, o que não aconteceu.
15. A Jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido pacífica no sentido de afirmar a inconstitucionalidade das normas que atribuem remuneração superior a funcionários mais modernos da mesma categoria desde que não fundadas em valores constitucionalmente relevantes relacionados com a natureza, qualidade e a quantidade do trabalho.
16. A diferenciação de remuneração base imposta pelo norma do art.º 1.º n.º1 do DL 80/95, entre os primeiros-sargentos da Marinha com igual ou menor antiguidade no posto que os primeiros-sargentos da Exército e da Força Aérea, quando em confronto com a remuneração base destes, integra uma desigualdade inadmissível, arbitrária e sem qualquer justificação fundada em valores objectivos constitucionalmente relevantes.
17. De tudo o que antecede resulta que deve ser julgado inconstitucional o n° 1 do artigo 1º do Decreto-Lei 80/95 de 22 de Abril, se interpretado no sentido não reconhecer aos primeiros sargentos de qualquer Ramo das Forças Armadas, na situação do activo, o direito a perceber de remuneração base, quantia não inferior à de sargentos com menor antiguidade ou posto ainda que de outro ramo, por infracção aos princípios da igualdade, e de, para trabalho igual, salário igual, previstos, no artigo 13° e artigo 59° n.º 1, da CRP, Termos em que pelos fundamentos invocados, com o julgamento de inconstitucionalidade agora alegado, não deve ser dado provimento ao presente recurso de inconstitucionalidade, mantendo-se a decisão recorrida, como é de justiça.'
5. Cumpre começar por delimitar o objecto do recurso. Ora, segundo consta do requerimento de interposição respectivo, o Ministério Público circunscreve-o à norma constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 80/95, de 22 de Abril, enquanto exclui os sargentos da Força Aérea e do Exército do seu
âmbito de aplicação: 'Ao atribuir um diferencial de remuneração aos sargentos da Armada mais antigos, com exclusão dos Sargentos da Força Aérea e do Exército, com igual posto e a mesma antiguidade no posto, veio introduzir distorções remuneratórias, privilegiando os primeiros em detrimento dos segundos'.
Não pode, assim, o Tribunal conhecer da norma definida pelo Ministério Público na alínea a) do ponto 1. e na 1ª conclusão das suas alegações, porque, nessa dimensão (ou seja, enquanto não aplicável dentro dos ramos da Força Aérea e do Exército), não integra o objecto do recurso.
Para além disso, o recurso, interposto ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, apenas abrange a recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade, não podendo agora o Tribunal Constitucional conhecer da questão da eventual ilegalidade por violação de lei com valor reforçado, suscitada pelos autores da acção.
6. É o seguinte o texto do nº1 do artigo 1º em causa:
'1. Sempre que um primeiro-sargento dos quadros permanentes da Marinha, na situação de activo, aufira remuneração inferior à de sargentos com menor antiguidade ou posto é reposicionado no escalão da respectiva escala indiciária correspondente ao maior valor da remuneração efectivamente percebida por sargentos com menor antiguidade.
(...)' Ora o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a norma constante deste nº
1, na dimensão em que ela constitui objecto do presente recurso, no seu acórdão nº 97/2002 (Diário da República, II Série, de 4 de Abril de 2002), que se transcreve na parte aqui relevante:
'8. O Decreto-Lei nº 80/95 foi publicado com vista a corrigir «a existência de anomalias com especial incidência na categoria de sargentos da Marinha e, dentro desta, no posto de primeiro-sargento» que originaram «efeitos perversos com nítido prejuízo da hierarquia funcional, dadas as especificidades de alimentação e a natureza do desenvolvimento de tal carreira e das praças da Marinha das classes homónimas», tal como se pode ler do respectivo preâmbulo. O legislador reconheceu nesse diploma que o regime remuneratório geral dos quadros das Forças Armadas então consagrado criara determinadas anomalias no que respeitava à Marinha, nomeadamente situações como a de um primeiro-sargento daquele ramo (categoria hierarquicamente superior à de segundo-sargento) poder auferir remuneração inferior à destes. O Decreto-Lei nº 80/95 pretendeu assim corrigir essas situações por via do reposicionamento nos escalões da respectiva escala indiciária, concretamente fazendo com que os primeiros-sargentos que auferissem remuneração inferior à dos sargentos de menor antiguidade ou posto fossem remunerados de acordo com o escalão da respectiva escala indiciária equivalente ao valor daquele pelo qual os sargentos de menor antiguidade eram efectivamente remunerados – nº 1 do artigo 1º; ou, na falta daquele escalão, para o índice imediatamente superior – nº 2 do mesmo artigo 1º. Claramente, o objectivo deste diploma foi o de corrigir as anomalias ou distorções verificadas, como se lê no respectivo preâmbulo, «com especial incidência na categoria dos sargentos da Marinha», ou seja, visando apenas estes
últimos.
Só que, e por outro lado, o Decreto-Lei nº 80/95, de 22 de Abril, veio a criar uma situação pela qual os primeiros-sargentos da Marinha vieram ou poderiam vir a receber, efectivamente, remuneração superior à auferida pelos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea com igual ou superior antiguidade. Daí decorreu a posterior intervenção do legislador, com a publicação do Decreto-Lei nº 299/97, de 31 de Outubro, que revogou aquele Decreto-Lei nº 80/95. Ora, notar-se-á, desde logo, que o Decreto-Lei nº 299/97 não consagrou, para os primeiro-sargentos do Exército ou da Força Aérea, um regime idêntico àquele vigente na Marinha: nos termos do disposto nos artigos 1º e 2º do diploma, a atribuição do diferencial de remuneração aos primeiro-sargentos do Exército e da Força Aérea só ocorreria quando os primeiro-sargentos auferissem menor remuneração e possuissem igual ou maior antiguidade no posto em relação aos primeiro-sargentos da Marinha abrangidos pelo artigo 1º. O que se procurou assim impedir foi que os primeiros-sargentos da Marinha – com igual ou menor antiguidade face aos primeiro-sargentos do Exército ou da Força Aérea – viessem a auferir remuneração efectiva superior à destes (ou seja, o efeito «perverso» que terá resultado do regime consagrado pelo Decreto-Lei nº
80/95).
9. Pois bem: o Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 8º do Decreto-Lei nº 299/97, nomeadamente nos Acórdão nº 306/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
43º, pág. 617 e segs.) e Acórdão nº 412/99 (Diário da República, II Série, de 13 de Março de 2000). Como se pode ler neste último:
A eventual diferenciação de remunerações entre os primeiro-sargentos da Marinha com igual ou menor antiguidade no posto que os primeiro-sargentos do Exército ou da Força Aérea só ocorreu, assim após a consagração do regime remuneratório estabelecido no DL nº. 80/95, diferenciação a que, por sua vez, o legislador quis pôr fim com o Decreto-Lei nº. 299/97, de 31 de Outubro, no qual se insere a norma em apreço.
Tal significa que a haver desigualdade de tratamento violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP, ela só pode ter resultado do citado DL nº. 80/95. Ora, a invocada desigualdade, no entender do recorrente, terá resultado do Decreto-Lei nº 80/95, na medida em que, ao reposicionar os primeiros-sargentos da Marinha nos escalões da respectiva escala indiciária, passaram a verificar-se situações em que, de facto, estes primeiros-sargentos da Marinha passaram a poder auferir maior remuneração que os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea. Sobre o princípio da igualdade tem este Tribunal abundante e unânime jurisprudência [entre outros, cfr., por ex., os Acórdão nº 39/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pág. 233 e segs), Acórdão nº 186/90,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 16º, pág. 383 e segs ), Acórdão nº
231/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 27º, pág. 205 e segs.), Acórdão nº 609/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 29º, pág. 173 e segs.) e Acórdão nº 109/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 30º, pág.
617 e segs.)], afirmando-se, de forma reiterada e clara, que tal princípio obriga a que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente. Ou seja, como se afirmou no Acórdão nº
1007/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 35º, pág. 169 e segs.): não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal.
Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação ou discriminação. Ou seja, determinar se aquelas normas em causa introduzem uma discriminação de tratamento entre situações idênticas, e, se se concluir afirmativamente, então haverá ainda que indagar da existência de eventual fundamento material para tal discriminação: é que, como claramente se perceberá, a não existência de uma qualquer discriminação ou diferenciação de tratamentos afasta, desde logo, a possibilidade de qualquer ofensa do referido princípio da igualdade.
Concretizando, importará perguntar se estas normas possuem uma justificação material para a 'diferenciação' que (eventualmente) estabelecem. É que, se a tiverem, não importarão – ou deixarão de importar –, violação do princípio da igualdade. Assim delimitado o alcance e sentido do princípio constitucional da igualdade, há então que averiguar se, in casu, se verifica uma discriminação, ou seja, no caso de se verificar uma diferenciação remuneratória, se esta é irracional, ou arbitrária, isto é, carecida de fundamentação.
10. (...) Como já se fez notar supra, o regime instituído pelo Decreto-Lei nº 299/97, de
31 de Outubro, não quis instituir um regime idêntico para os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea aos da Marinha; apenas criou um diferencial de remuneração a ser abonado aos primeiros, nas condições ali previstas. Na verdade, o diploma visou antes de mais corrigir a situação criada pelo Decreto-Lei nº 80/95, substituindo a disciplina de reposicionamento noutro escalão pela atribuição de um diferencial de remuneração, relativamente aos primeiros-sargentos da Marinha, e estendendo este diferencial aos primeiros-sargentos dos restantes quadros das FAs, sempre que estes tenham igual ou maior antiguidade no posto, e aufiram menor retribuição face aos primeiros-sargentos da Marinha. Com efeito, se o legislador procurasse instituir um regime em tudo igual ao dos primeiros-sargentos da Marinha para os do Exército e da Força Aérea, então teria estabelecido um regime ou um sistema que visasse a situação dos respectivos primeiros-sargentos dentro dos respectivos ramos das Forças Armadas, como fez para os da Marinha, ou seja, visando as situações em que aqueles auferissem menor retribuição que os segundos-sargentos do mesmo ramo. O que não foi manifestamente o caso. Para o recorrente, a desigualdade gerou-se com o anterior Decreto-Lei nº 80/95, ao estabelecer aquele regime apenas para os primeiros-sargentos da Marinha, não determinando que, quando ocorresse um tal reposicionamento de escalões daí decorresse, por arrastamento, um reposicionamento dos escalões dos primeiros-sargentos dos restantes ramos das FAs com maior ou igual antiguidade, ou seja, ter-se-á criado assim, enquanto durou a sua vigência, uma desigualdade, injustificada no seu entender, entre os primeiros-sargentos da Marinha e os dos restantes quadros das Forças Armadas.
11. Mas não é a isso que o princípio da igualdade obriga. O Tribunal Central Administrativo tem reiterado a sua posição em vários arestos, entendendo que «o legislador não está impedido de tratar de forma diferente e no aspecto remuneratório sargentos que pertencem a ramos distintos das forças armadas e cujas funções são diferentes» (acórdão de 18 de Maio de 2000, proc. nº
1445/98, entre outros). Na verdade, o objectivo do Decreto-Lei nº 80/95, como se referiu, foi o de corrigir as anomalias constatadas no seio – e apenas neste ramo – dos primeiros-sargentos da Marinha, por via do reposicionamento nos escalões da respectiva escala indiciária: concretamente, fazendo com que os primeiros-sargentos que auferissem remuneração inferior à dos sargentos de menor antiguidade ou posto fossem remunerados de acordo com o escalão equivalente ao valor daquele pelo qual os sargentos de menor antiguidade eram efectivamente remunerados; ou, na falta daquele escalão, pelo índice imediatamente superior. Este diploma não visou os restantes ramos das FAs, nem a eles se dirigiu, pois que o legislador não constatou ou não verificou nesses ramos a existência de tais anomalias ou distorções. Ora, o princípio da igualdade não impõe necessariamente uma igualdade absoluta entre os militares pertencentes a diferentes ramos das FAs, no que se refere à globalidade do respectivo sistema remuneratório, tal como o não exige para o regime global de progressão nas respectivas carreiras. Assim, no que se reporta à progressão nas carreiras, verifica-se, desde logo, que, para além das condições gerais de promoção a cada posto - previstas no artigo 55º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (aprovado pelo Decreto-Lei nº 236/99, de 25 de Junho) - prevê ainda o mesmo Estatuto, para cada ramo das FAs, disposições específicas que consagram regimes diversos quanto às condições especiais de promoção, tendo em atenção, naturalmente, as especificidades de cada ramo. É o que resulta do disposto respectivamente nos artigos 271º (para a Marinha), 275º (para o Exército), e 280º (para a Força Aérea), sendo certo que essas condições especiais, no que se refere à Marinha, prendem-se com o condicionalismo específico do exercício da actividade no seio deste ramo das FAs, pelo que compreendem determinados tempos de embarque e de navegação, como se estabelece no anexo III ao mencionado Estatuto. Por outro lado, como determina o artigo 116º do Estatuto, o «militar tem direito a aceder aos postos imediatos dentro da respectiva categoria», segundo não apenas «as aptidões, competência profissional e tempo de serviço que possui», mas também «de acordo com as modalidades de promoção e as vagas existentes nos respectivos quadros especiais». Ora, tal determina que a progressão nas carreiras será tanto mais rápida quanto maior for o número de vagas a preencher, pelo que cada militar avançará ou progredirá mais ou menos rapidamente na respectiva carreira, não apenas consoante o ramo, como ainda consoante o quadro especial a que pertencer. De resto, também na Administração Pública civil a progressão nas carreiras varia de acordo com os quadros de cada serviço, desenvolvendo-se assim aquela progressão nuns casos de forma mais rápida do que noutros, nomeadamente consoante as vagas existentes nesses quadros. Nesta conformidade, nunca pode ocorrer uma igualdade absoluta entre todos os militares das FAs, relativamente à progressão na carreira. De igual modo, também a pertença a um ou outro ramo das FAs pode determinar diferenças remuneratórias, desde que não se configurem como manifestamente arbitrárias. E não serão tais diferenças arbitrárias, desde logo, se os cargos e conteúdos funcionais não coincidirem exactamente. Ora, os cargos e conteúdos funcionais estão definidos diferentemente consoante os ramos em que idênticas categorias se inserem. Assim, enquanto essa definição para os sargentos da Marinha se encontra no artigo 270º, é o artigo 274º que contém tal descrição para os sargentos do Exército, enquanto que relativamente aos sargentos da Força Aérea se encontra a descrição de tais cargos e conteúdos no artigo 279º do referido Estatuto. Não pode, pois, pretender-se uma necessária e obrigatória igualdade absoluta entre os sargentos dos diversos ramos das FAs, quando eles se encontram sujeitos a diferentes regimes no que se refere às condições especiais de promoção e aos respectivos conteúdos funcionais. Assim também o tem entendido o STA, nomeadamente no aresto de 28 de Junho de
2000, proferido no recurso nº 45.927 (não publicado, mas cujo sumário se encontra disponível em [http:www.dgsi.pt/-jsta.nsf/ ]no qual se pode ler:
O preâmbulo do DL nº 299/97 reconheceu que a disciplina instituída pelo DL nº 80/95 colocara os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea
«numa situação de relativa desigualdade remuneratória» em relação aos militares do mesmo posto da Marinha, desigualdade essa que o DL nº 299/97 intentou, entretanto, «superar». No entanto, as desigualdades verificadas numa dimensão simplesmente remuneratória não envolvem a automática existência de uma violação do princípio da igualdade, pois é claro que tais diferenças nas remunerações podem ser a tradução harmoniosa e justificada de diferenças havidas nas actividades desempenhadas. Ora, e como o acórdão recorrido assinalou, nada impedia o legislador do DL nº 80/95 de «tratar de forma diferente e no aspecto remuneratório sargentos que pertencem a ramos distintos das forças armadas e cujas funções são diferentes».
12. Assinale-se, finalmente, que o que o recorrente entende é que se deveria ter efectuado um reposicionamento dos escalões dos primeiros-sargentos de todos os restantes ramos das FAs sempre que se efectuasse o reposicionamento dos primeiros-sargentos da Marinha, ou seja, independentemente da verificação concreta, no respectivo ramo, daquelas circunstâncias anómalas que, desde o princípio, justificaram a feitura do Decreto-Lei nº 80/95. Ou seja, o recorrente não reclama a aplicação do regime deste Decreto-Lei aos restantes ramos das FAs, isto é, que se proceda a um reposicionamento no caso ou na hipótese de se verificarem as situações anómalas nele previstas. Se verificada uma tal situação, então aí poderíamos estar perante uma dimensão da norma eventualmente portadora de desigualdade; mas tal não é manifestamente o caso, nem é essa dimensão da norma que o recorrente identifica como violadora do princípio da igualdade. Por outro lado, dir-se-á ainda que não cabe a este Tribunal efectuar ou tecer juízos de censura ou apreciação sobre o bom ou mau direito, ou mesmo sobre a eventual «bondade» da solução adoptada pelo legislador, mas tão somente aferir da respectiva observância dos preceitos constitucionais, não se mostrando in casu afectado o invocado princípio da igualdade. O legislador limitou-se a aplicar tratamento diferente a situações diferentes, baseando-se nas especifidades respectivas de cada ramo, de forma razoável e com fundamento racional. Nestes termos, não se vislumbra qualquer violação do princípio constitucional da igualdade por banda da norma em crise.'
É este juízo de não inconstitucionalidade que aqui se reitera, nos mesmos termos e fundamentos.
Assim, concede-se provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Custas pelo recorrido, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 17 de Abril de 2002 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida