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Proc. n.º 21/02 Acórdão nº
146/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 1435 e seguintes, não se conheceu do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
10. Conforme esclarecimento prestado pela recorrente (supra, 9.), o acórdão recorrido é o do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Dezembro de 2001 (supra,
8.), ou seja, o acórdão que apreciou a arguição de nulidade por falta de fundamentação de direito do acórdão que concedeu a revista interposta pelas ora recorridas. O recurso ora interposto foi-o ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (certamente por lapso, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal menciona-se o artigo 20º), constituindo pressuposto processual dos recursos previstos nesse preceito a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja conformidade constitucional é questionada. No caso dos autos, a interpretação normativa cuja conformidade constitucional a recorrente questiona é a dos artigos 158º e 668º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, de acordo com a qual «a simples enumeração de preceitos da lei constitui fundamentação bastante». Ora, independentemente da questão de saber se o acórdão recorrido aplicou as referidas normas do Código de Processo Civil – e, desde logo, a do artigo 158º do Código de Processo Civil (que, de resto, nem foi questionada pela recorrente na peça processual indicada), já que a fundamentação de direito da decisão da revista competiu ao acórdão de 27 de Setembro de 2001 (supra, 6.) e não, naturalmente, ao acórdão ora recorrido – e independentemente também da questão de saber se, no presente processo, se questiona a conformidade constitucional de uma interpretação normativa ou da própria decisão recorrida, caso em que o objecto do recurso extravasaria a competência do Tribunal Constitucional – veja-se, a propósito de questão muito semelhante, o acórdão deste Tribunal n.º
343/2000, de 4 de Julho, proferido no processo n.º 299/00 –, a verdade é que o acórdão ora recorrido não perfilhou a interpretação normativa cuja conformidade constitucional a recorrente questiona. Com efeito, o acórdão ora recorrido não procedeu a uma simples enumeração de preceitos da lei, como com facilidade se depreende da leitura do respectivo texto (supra, 8.), tendo-se nele explicitado o processo de formação da convicção do tribunal. Não tendo o acórdão recorrido procedido a uma simples enumeração de preceitos da lei, é evidente que nesse acórdão não podia perfilhar-se a interpretação normativa cuja conformidade constitucional a recorrente questiona. E não tendo sido tal interpretação normativa perfilhada ou aplicada na decisão recorrida (o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Dezembro de 2001), não está consequentemente verificado um dos pressupostos processuais de qualquer recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: justamente, a aplicação, pela decisão recorrida, da norma (ou interpretação normativa) cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Como tal, não pode tomar-se conhecimento do objecto do presente recurso.
[...].'
2. Desta decisão sumária reclamou agora A para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls.
1447 e seguintes). Na reclamação alega, em síntese, o seguinte: a. A ora reclamante arguiu a nulidade, por falta de fundamentação, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que deu provimento ao recurso de revista interposto pela Autora, tendo na altura invocado que a mera enumeração de preceitos legais não constitui fundamentação de direito bastante e, simultaneamente, suscitado a questão da inconstitucionalidade do artigo 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, na interpretação normativa segundo a qual a mera enumeração de preceitos legais constitui fundamentação bastante; b. O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu tal arguição de nulidade, o que significa que decidiu que o anterior acórdão, proferido em 27 de Setembro de
2001, estava fundamentado de forma legal e que a interpretação normativa dos artigos 158º e 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, nele sustentada, não violava a Constituição; c. Ao não ter declarado a nulidade do acórdão proferido em 27 de Setembro de 2001, o acórdão recorrido claramente perfilhou, contrariamente ao que se sustenta na decisão sumária reclamada, a interpretação normativa cuja conformidade constitucional se questiona; d. A situação presente é inteiramente semelhante à que esteve na origem da prolação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, proferido no processo n.º 456/95, que conheceu do recurso e decidiu pela inconstitucionalidade invocada, pelo que o objecto do recurso ora interposto deve ser apreciado; e. Ao ter mantido a decisão anterior, o tribunal recorrido aplicou a norma cuja inconstitucionalidade se invoca e retirou daí um efeito jurídico concreto, ao ter indeferido a arguição de nulidade, por considerar que a fundamentação era correcta, podendo bastar-se com a mera enumeração de preceitos legais; f. Tendo sido aplicada, no acórdão recorrido, a norma cuja inconstitucionalidade se invoca, na interpretação normativa que lhe foi dada pelo acórdão proferido em 27 de Setembro de 2001, e tendo-se retirado daí um efeito jurídico concreto, há que conhecer do objecto do presente recurso.
3. A B respondeu à reclamação deduzida pela recorrente (fls. 1458 e seguintes), tendo alegado, em síntese, que: a. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não procedeu a uma tabelar enunciação de normas, tendo-se fundado num critério inquestionavelmente compreensível; b. Os critérios decisórios do Supremo Tribunal de Justiça que não contrariem qualquer regra constitucional ou dela derivada, mas que apliquem o direito secundário de um modo que não logre o apoio de uma das partes não são sindicáveis em sede de constitucionalidade; c. A hipótese subjacente ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98 e a actual são completamente diversas, como diverso é o tratamento decisório do Supremo, já que naquele caso estava em causa a fundamentação da matéria de facto, que se bastou no simples arrolamento dos meios de prova, ao passo que neste caso o Supremo, embora tivesse invocado preceitos legais, emitiu um critério normativo, que não é delongado, nem exuberante, mas que é concludentemente motivador, obedecendo a um imperativo ascético. Cumpre apreciar.
II
4. Contrariamente ao alegado pela reclamante (supra, 2., d)), a situação presente não é semelhante à que esteve na origem da prolação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, proferido no processo n.º 456/95, que conheceu do recurso e decidiu pela inconstitucionalidade invocada.
Na verdade, neste processo, o acórdão do qual se interpôs recurso para o Tribunal Constitucional não foi um acórdão que apreciou uma arguição de nulidade
– como sucedeu no presente caso –, mas sim um acórdão que conheceu da matéria da causa e ao qual competiu a fundamentação da decisão a ela referente. Como se refere logo no relatório do mencionado acórdão do Tribunal Constitucional n.º
680/98:
'[...]
1. Por acórdão do 3º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, de 13 de Janeiro de
1994, foram os recorrentes [...] condenados como co-autores de um crime de corrupção activa, nas penas, respectivamente, de 4 anos e seis meses de prisão e de 130 dias de multa, e de 4 anos de prisão e 110 dias de multa. Interpostos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça por ambos os arguidos, alegaram estes nas respectivas motivações, por entre o mais que ora não releva: a inconstitucionalidade do «nº 2 do artigo 374º» do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida no Acórdão recorrido, por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição; a inconstitucionalidade de «uma interpretação das normas pertinentes do CPP, nomeadamente do artigo 374º, nº 2, e 410º, nº 2, als. b) e c), no sentido de dispensar a indicação dos elementos que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência», por violação dos princípios informadores do Estado de Direito Democrático; a violação do princípio da presunção de inocência, por o acórdão não ter indicado
«qualquer prova positiva», susceptível de afastar a referida presunção. Por Acórdão de 3 de Maio de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu negar provimento aos recursos, confirmando integralmente a decisão recorrida. Interpuseram então os arguidos recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº
28/82, de 15 de Novembro). Tal como haviam feito na motivação dos recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, vieram acusar de ser inconstitucional a interpretação acolhida no Acórdão recorrido, que confirmara a decisão da primeira instância, «das normas dos arts. 374º, nº 2 e 410º, nº 2 als. b) e c), todas do Código de Processo Penal..., por ser uma interpretação violadora dos princípios basilares do Estado de direito Democrático e nomeadamente dos artºs 32º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa».
[...].'
A circunstância de, no presente recurso de constitucionalidade, o acórdão recorrido não ser o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Setembro de 2001 – aquele que concedeu a revista –, mas sim o acórdão do mesmo Supremo de 13 de Dezembro de 2001 – aquele que indeferiu a arguição de nulidade
–, conforme esclareceu a própria reclamante na resposta de fls. 1432, justifica que a decisão quanto à possibilidade de conhecimento do objecto do recurso não seja idêntica à que se proferiu no processo do qual emergiu o citado acórdão n.º
680/98. Na verdade, tal circunstância poderia legitimar logo a hipótese (aventada a fls.
1443 da decisão sumária) de o acórdão ora recorrido não ter aplicado as normas dos artigos 158º e 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, já que a fundamentação de direito da decisão da revista competira obviamente ao acórdão de 27 de Setembro de 2001 (cfr. artigo 666º do Código de Processo Civil). E, não tendo tais normas sido aplicadas, necessariamente se verificaria a falta de preenchimento de um dos pressupostos processuais de qualquer recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
(como é o caso do presente recurso). Por outro lado – e independentemente da resolução de tal hipótese –, certo é que, tendo a ora reclamante recorrido do acórdão que indeferiu a arguição de nulidade, forçoso se tornava verificar se, neste mesmo acórdão, o Supremo se havia limitado a enumerar preceitos da lei, a fim de determinar se a interpretação normativa cuja constitucionalidade se havia questionado havia sido efectivamente acolhida e, consequentemente, se era possível conhecer do objecto do recurso interposto. E verificou-se que não, pois que bastava ler o texto desse mesmo acórdão para se concluir que nele se explicitava o processo de formação da convicção do tribunal, não ocorrendo uma mera enumeração de preceitos da lei. Na verdade, diz-se textualmente no acórdão recorrido (que é, repete-se, o que indeferiu a arguição de nulidade), a fls. 1424-1425:
'[...] O alegado cumprimento defeituoso, a existir, pode integrar responsabilidade contratual, como se quis dizer quando se referiu o art. 798º do CCIV66. A qualificar-se o contrato como de empreitada, face ao formulado pedido de indemnização, o correspondente direito segue os termos gerais (art. 1223º do CCIV66). Em sede de responsabilidade contratual o prazo ordinário quanto à prescrição do direito é o do art. 309º do mesmo diploma – 20 anos. No acórdão em causa não se fez qualquer confusão entre caducidade e prescrição. Ao dizer-se que o prazo a ter em conta, na propositura da acção, era o geral do art. 309º do CCIV66, não podia deixar de se entender que, a partir da prescrição, deixava de ter suporte a acção. O Tribunal, repete-se, não está sujeito às qualificações de direito que as partes tenham feito. Assim, não extravasou dos limites do que podia conhecer
(citado art. 664º). O Tribunal não qualificou o contrato, nesta sede de apreciação da arguida caducidade, por não ter interesse. Face à alegação de cumprimento defeituoso e do pedido de indemnização pelos alegados danos dele derivados, não se verifica caducidade (sempre prevista, ou na lei ou por vontade das partes – nº 2 do art. 298º do CCIV66), mas apenas o exercício do direito está sujeito ao prazo ordinário do art. 309º do mesmo Código. Não havia necessidade de considerar se houve ou não reconhecimento dos alegados defeitos.
[...].'
Não procedendo o acórdão recorrido a simples enumeração de preceitos da lei, impõe-se naturalmente a conclusão de que tal acórdão não perfilhou a questionada interpretação normativa.
E tal conclusão não é desmentida pela circunstância de em tal acórdão se entender que o acórdão anterior – o de 27 de Setembro de 2001 – estava suficientemente fundamentado, não se verificando a correspondente nulidade (diversamente do alegado supra, 2., b), c), e) e f)).
É que a aplicação de uma interpretação normativa, enquanto pressuposto processual do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, não significa a simples adesão a certa orientação, ou concordância com ela, antes equivalendo à materialização de uma orientação na decisão que a final se profira. Só assim o recurso de constitucionalidade pode ter alguma utilidade, pois que só assim a decisão quanto à questão de constitucionalidade pode influir no sentido da decisão recorrida. Não se tendo reflectido ou materializado na decisão recorrida a interpretação normativa questionada nos autos, pois que no acórdão recorrido se não procedeu a mera enumeração de preceitos da lei, conclui-se que tal interpretação não foi aplicada, não podendo consequentemente conhecer-se do objecto do presente recurso.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de fls. 1435 e seguintes, que concluiu no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 16 de Abril de 2002- Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida