Imprimir acórdão
Processo n.º 996/09
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
(Conselheira Maria Lúcia Amaral)
Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de expropriação por utilidade pública, em que é expropriante A., S.A., e são expropriados B. e C., realizada a arbitragem, foi proferida decisão arbitral que, tendo classificado a parcela expropriada como “solo apto para construção”, fixou o valor da indemnização a pagar aos expropriados em € 545 720,68.
A expropriante recorreu da decisão arbitral, pedindo que a indemnização fosse fixada no montante de € 69 642,50, dado que, em seu entender, o respectivo solo deve antes ser classificado como “solo para outros fins”.
Por sentença do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, fixou-se o valor da indemnização devida pela expropriação da parcela no montante de € 106 484,82, a actualizar a partir da data de declaração de utilidade pública e até à data do trânsito em julgado da decisão.
O tribunal entendeu que, estando a parcela de terreno expropriada inserida em zona de Reserva Agrícola Nacional (RAN), não havia que considerar, para efeitos de cálculo do valor da indemnização, a pagar aos expropriados, qualquer potencialidade edificativa, devendo a mesma considerar-se como “solo para outros fins”, e que, portanto, assim classificado o solo, o cálculo do valor da indemnização devia ser feito de acordo com o disposto no artigo 27.º do Código das Expropriações (CE), aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, não sendo aplicável o disposto no n.º 12 do artigo 26.º desse diploma.
Dessa sentença, apelaram os expropriados para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 17 de Setembro de 2009, julgando-se parcialmente procedente a apelação, revogou-se a sentença recorrida, fixando-se a indemnização a pagar pela expropriação da parcela identificada nos autos no montante de € 271 315, 15, a actualizar a partir da data de declaração de utilidade pública e até à data do trânsito em julgado da decisão.
Resulta da fundamentação do tribunal que, atendendo a que o prédio em que a parcela expropriada se integra preenche, objectivamente, os requisitos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 25.º do CE, a que acresce o facto de na vizinhança imediata da parcela existirem núcleos urbanos consolidados, o valor real e corrente da parcela expropriada, não obstante a sua inserção em RAN, não pode ser alcançado, em princípio, através do critério referencial previsto no artigo 27.º do CE, destinado a “solo para outros fins” e que, por outro lado, justamente face à limitação imposta pela inserção da parcela expropriada em RAN, também não pode o valor da indemnização por expropriação ser obtido como se de “solo apto para construção” se tratasse.
Assim, dando relevância às características e localização da parcela expropriada, entendeu o tribunal que, in casu, se impõe a aplicação do critério referencial do n.º 12 do artigo 26.º desse diploma.
2. É dessa decisão que é interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Através dele pretende a recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie “a inconstitucionalidade – por violação do princípio constitucional da igualdade plasmado no artigo 13.º da CRP – da norma contida no n.º 12 do artigo 26.º do Código das Expropriações, quando interpretada no sentido de permitir (ainda que por aplicação extensiva) que solos integrados na RAN com aptidão edificativa segundo os elementos objectivos definidos no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Código, expropriados para implantação de vias de comunicação, possam ser avaliados em função «do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 m do limite da parcela expropriada»”.
3. Notificada para o efeito, a recorrente veio apresentar alegações, tendo concluído do seguinte modo:
“1ª Constitui consolidada jurisprudência deste Tribunal Constitucional que os terrenos integrados na RAN não têm aptidão construtiva, de acordo com o respectivo ordenamento jurídico (DL. n.º 196/89, de 14/6, alterado pelos DLs. n.ºs 274/92, de 12/12 e 278/95, de 25/10);
2ª Trata-se de uma restrição que se mostra necessária e funcionalmente adequada para acautelar uma reserva de terrenos agrícolas que propiciem o desenvolvimento da actividade agrícola, restrição constitucionalmente legítima e que não viola, nem o princípio da justa indemnização, dada a sua “vinculação situacional”, nem os princípios da igualdade e da proporcionalidade, pois atingem todos os proprietários que estão, quer em concreto, quer em abstracto, dentro da mesma situação jurídica.
3ª A integração de um terreno na RAN determina, na prática, não só a impossibilidade de o proprietário nele vir a construir edifícios urbanos, mas também o fim de qualquer expectativa razoável de desafectação para que tal solo possa vir a ser destinado à construção imobiliária.
4ª Essa impossibilidade, que é determinada por razões de interesse público (reservar para a produção agrícola os terrenos que, para tal, tenham melhor aptidão), encontra justificação constitucional no artigo 93° da Constituição.
5ª Assim sendo, no caso de expropriação de terrenos integrados na RAN, não há que considerar, para efeitos de cálculo do valor da indemnização, a pagar ao expropriado, qualquer potencialidade edificativa que não existe, nem nasce com a expropriação.
6ª É inconstitucional a interpretação das normas contidas no n.º 1 do artigo 23º e no nº 1 do artigo 26° do Código das Expropriações de 1999 (CE/99), que conduz a incluir na classificação de “solo apto para a construção” e, consequentemente, a indemnizar como tal, o solo, integrado na RAN, expropriado para implantação de vias de comunicação.
7ª O âmbito de aplicação da regra avaliatória constante do n° 12 do art. 26° do CE/99, restringe-se aos casos em que os terrenos tinham, abstractamente, aptidão construtiva, antes da sua classificação como zona verde, de lazer ou “espaço-canal” para instalação de infra-estruturas e equipamentos públicos e deixaram de tê-la em consequência da prossecução do interesse público – o interesse subjacente àquelas classificações.
8ª O critério de cálculo do valor de indemnização constante dessa norma, assenta na consideração dos terrenos referidos neste preceito como terrenos aptos para construção enquanto, directa, incidível e inelutavelmente, ligados à obrigação de realização das infra-estruturas que o planeamento urbanístico impõe e cuja satisfação visa directamente cumprir.
9ª Os terrenos integrados na RAN nunca perdem a sua aptidão construtiva em consequência da sua classificação por plano municipal como “espaço-canal”, pela simples razão de que a não possuíam antes – essa sua classificação não implica quaisquer restrições singulares às possibilidades objectivas de aproveitamento do solo (preexistentes e juridicamente consolidadas) que determinem uma limitação significativa na sua utilização.
10ª A inclusão no critério de cálculo do valor do solo previsto no n.º 12 do art.º 26° do CE/99 de parcelas de terreno integradas na RAN, expropriadas para a implantação de vias de comunicação, conduz a colocar os expropriados de tais parcelas numa situação de desigualdade perante os demais proprietários de parcelas contíguas igualmente integradas na RAN mas que não foram expropriados, conduzindo a um “ocasional locupletamento injustificado” dos primeiros em relação aos segundos.
11ª Enquanto que os expropriados seriam indemnizados com base em tal critério específico de cálculo do valor de solo apto para construção, necessariamente superior ao valor de mercado, os proprietários não expropriados que pretendessem alienar os seus terrenos nunca alcançariam, no mercado, um tal valor por virtude da limitação edificativa legalmente estabelecida para os solos integrados na RAN e da falta de previsão, em relação a eles, do critério de equivalência estabelecido no n.º 12 do art.º 26°.
12ª A inclusão do terreno na RAN sujeita o terreno a um único estatuto jurídico sob o ponto de vista da sua ineptidão construtiva, em função do qual o legislador conformou o critério que concretiza o valor da justa indemnização exigida constitucionalmente como contrapartida da expropriação.
13ª Assim, a aplicação (mesmo que extensiva ou analógica) do n.º 12 do art. 26° do CE/99 a terrenos integrados na RAN, só porque se verificam as circunstâncias que, para terrenos situados fora da RAN, o n.º 2 do art.º 25° do CE/99 releva como elementos qualificantes de terrenos para construção, redundaria numa clara violação do princípio da igualdade.
14ª Dar-se tratamento jurídico-económico diferente sob o ponto de vista do critério de aferição do valor da indemnização devida em caso de expropriação a terrenos que, embora estejam todos incluídos na RAN (e que, por via disso, não podem ser destinados (ou aptos para) a construção – equivaleria a introduzir um elemento simplesmente formal ou materialmente irrelevante (do ponto de vista da aptidão para a construção) para fundar uma destrinça no aspecto indemnizatório.
15ª Desde que os terrenos estejam incluídos na RAN, a sua aptidão efectiva ou conjectural para a construção é exactamente a mesma, concorram ou não concorram outras circunstâncias que a lei releve para considerar como terrenos para construção terrenos que estão situados fora da RAN e como tal sujeitos a outro estatuto jurídico.
16ª Ao admitir-se que os terrenos incluídos na RAN possam ser indemnizados como se foram terrenos aptos para construção, dentro do regime próprio estabelecido no n.º 12 do art.º 26° do CE/99, só pelo simples facto de serem expropriados, está a violar-se frontalmente o princípio da igualdade, na sua vertente externa.
17ª Em caso de transmissão onerosa, num mercado em que não entrem factores anómalos e especulativos, jamais será possível ao proprietário não expropriado aspirar a uma valoração correspondente à conseguida através da sua expropriação e inclusão dentro do critério de cálculo do valor de indemnização constante do n.º 12 do art.º 26º do CE/99.
18ª É inconstitucional a norma contida no nº 12 do art. 26° do CE/99 quando interpretada no sentido de poder ser aplicada (mesmo que por aplicação extensiva ou analógica) a terrenos sem aptidão construtiva – no caso, em virtude da sua integração na RAN – só porque se verificam as circunstâncias que, para terrenos situados fora da RAN, o art.º 25°, n.º 2, do CE/99 releva como elementos qualificantes de terrenos para construção, ainda que na vizinhança imediata de tais solos existam núcleos urbanos consolidados.”
4. Os recorridos contra-alegaram, tendo sustentado que a interpretação e aplicação ao caso dos autos do n.º 12 do artigo 26.º não é inconstitucional.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Deve começar por dizer-se que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar se a decisão recorrida interpretou correctamente o direito infra-constitucional. O que está em juízo é a dimensão interpretativa do n.º 12 do artigo 26.º do CE, no sentido de permitir (ainda que por aplicação extensiva) que solos integrados na RAN com aptidão edificativa segundo os elementos objectivos definidos no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Código, expropriados para implantação de vias de comunicação, possam ser avaliados em função «do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 metros do limite da parcela expropriada».
Note-se que o cálculo da indemnização foi efectuada nestes termos apenas por se verificarem as referidas características objectivas e de proximidade do terreno expropriado com solo apto para a construção, ou seja, por se considerar que devia ser indemnizado segundo os mesmos critérios a expropriação de solo integrado em RAN e solo classificado como zona verde ou de lazer por instrumento de planificação urbanística. E não por se ter positiva e fundamente chegado à conclusão de que os critérios referenciais dos artigos 26.º e seguintes conduziam a uma determinação do valor da parcela expropriada que, em concreto e apesar de consideradas as limitações decorrentes da localização em área de RAN, se afastava do seu valor actual, real e corrente e em situação normal de mercado.
6. No sentido da não inconstitucionalidade da mesma dimensão normativa que agora está em apreciação decidiu-se nos acórdãos n.ºs 114/2005 e 239/2007. No sentido da sua inconstitucionalidade decidiu o Tribunal nos seus acórdãos n.ºs 417/2006 e 118/2007.
Tudo ponderado, continua a adoptar-se este segundo entendimento, recordando o que se disse no acórdão n.º 118/2007:
“6. É o entendimento deste último acórdão [ n.º 417/2006 ] que se perfilha, considerando-se, como aí, transponível para a apreciação da constitucionalidade da norma em causa o que o Tribunal disse no acórdão nº 275/04 (Diário da República, II Série, de 8 de Junho de 2004), em que avulta o seguinte:
« [ …]
9.2. A Constituição não fixa qualquer critério rígido de cálculo do valor da justa indemnização por expropriação, deixando margem ao legislador para que, dentro dos parâmetros constitucionais, o concretize. Este, no n.º 1 do artigo 23º do Código das Expropriações, estatuiu que “a justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal…”. O Tribunal Constitucional, por sua vez, já teve inúmeras ocasiões de se pronunciar sobre a questão. Assim, no Acórdão n.º 243/2001 (Diário da República, II Série, de 4 de Julho de 2001), afirmou-se o seguinte:
“[…] Ora, a indemnização só é justa, se conseguir ressarcir o expropriado do prejuízo que efectivamente sofreu. Não pode ser de montante tão reduzido que a torne irrisória ou meramente simbólica, mas também não pode ser desproporcionada à perda do bem expropriado. E, por isso, não deve atender a factores especulativos ou outros que distorçam a proporção que deve existir entre o prejuízo imposto pela expropriação e a compensação a pagar por ela, para mais ou para menos. Há, consequentemente, que observar aqui um princípio de igualdade e de proporcionalidade – um princípio de justiça, em suma. O quantum indemnizatório a pagar a cada expropriado há-de realizar a igualdade dos expropriados entre si e a destes com os não expropriados: trata-se de assegurar que haja igualdade de tratamento perante os encargos públicos. […]”
No que se refere a terrenos integrados na Reserva Agrícola Nacional (ou na Reserva Ecológica Nacional), o Tribunal Constitucional também já teve ocasião de salientar que, para efeitos da “justa indemnização”, o que releva não é o facto do terreno deixar de ter aptidão agrícola, salvaguardando, nomeadamente, o facto de se poder entender que a Constituição, pela determinação do pagamento de uma “justa indemnização”, não impõe a qualificação como “solo apto para construção” de terrenos integrados naquelas Reservas, ainda que expropriados para que neles se edifiquem construções urbanas (nesse sentido, cfr. Acórdãos n.ºs 333/2003 e 557/2003 já citados). Acresce que, ainda em relação a terrenos incluídos na Reserva Agrícola Nacional (objecto de parecer favorável para uma das limitadas utilizações não agrícolas que tais terrenos – solos agrícolas – podem, legalmente, vir a ter, por força de interesse público que o legitime), se afirmou naquele citado acórdão n.º 557/2003, que se justifica,
“a conclusão de que a norma contida no n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações (1991), interpretada com o sentido de excluir da classificação de “solo apto para a construção” o solo, integrado na Reserva Agrícola Nacional, expropriado para fins diversos da utilidade pública agrícola permitidos por lei, em concreto com a finalidade de nele se construir uma escola – tendo sido concedido parecer favorável à utilização do solo agrícola para esse fim, nos termos da alínea d), do n.º 2, do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho -, não é inconstitucional, não violando qualquer princípio constitucional, nomeadamente os princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade.”
A proibição de construir que incide sobre os solos integrados na Reserva Agrícola Nacional ou na Reserva Ecológica Nacional é, aliás, na jurisprudência deste Tribunal, uma consequência da “vinculação situacional” da propriedade que incide sobre os solos com tais características. De facto, como se afirmou no acórdão n.º 347/2003 já citado:
“[…] de acordo com o ordenamento jurídico que rege a situação dos terrenos abrangidos pela RAN (DL. N.º 196/89, de 14/6, alterado pelos DLs. N.os 274/92, de 12/12 e 278/95, de 25/10), REN (Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março) ou áreas non aedificandi previstas nos Planos Directores Municipais, Planos de urbanização ou Planos de pormenor (Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março), não é possível vir a construir-se neles. Trata-se de restrições que se mostram necessárias e funcionalmente adequadas para acautelar uma reserva de terrenos agrícolas que propiciem o desenvolvimento da actividade agrícola, o equilíbrio ecológico e outros interesses públicos. Estamos, pois, perante restrições constitucionalmente legítimas. E que não violam, quer o princípio da justa indemnização, dada aquela sua “vinculação situacional”, nem os princípios da igualdade e da proporcionalidade, pois atingem todos os proprietários e outros interessados que estão, quer em concreto, quer em abstracto, dentro da mesma situação jurídica. […]”
Daí que se conclua que, embora em teoria seja crível que se possa construir em qualquer solo, o facto é que a integração de um terreno na Reserva Agrícola Nacional ou na Reserva Ecológica Nacional determina, na prática, não só a impossibilidade de o proprietário nele vir a construir edifícios urbanos, mas também o fim de qualquer expectativa razoável de desafectação para que tal solo possa vir a ser destinado à construção imobiliária. Essa impossibilidade, que é determinada por razões de interesse público (reservar para a produção agrícola os terrenos que, para tal, tenham melhor aptidão ou garantir o equilíbrio ecológico e a protecção de ecossistemas fundamentais), encontra justificação constitucional, respectivamente, no artigo 93º da Constituição, que consagra como objectivos da política agrícola o aumento da “produção e a produtividade da agricultura” e a garantia de um “uso e [] gestão racionais dos solos”, e no artigo 66º também da Constituição, que prevê a criação de reservas para “garantir a conservação da natureza”. A proibição de construir em terreno integrado na Reserva Agrícola Nacional, imposta pela natureza intrínseca da propriedade, nada mais é, assim, do que “uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo” (cfr. Acórdão n.º 329/99, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Julho de 1999). Assim sendo, no caso de expropriação de terrenos integrados na Reserva Agrícola Nacional, não há que considerar, para efeitos de cálculo do valor da indemnização, a pagar ao expropriado, qualquer potencialidade edificativa que não existe, nem nasce com a expropriação.
9.3. Aqui chegados e no quadro desta jurisprudência, há então que verificar se viola ou não algum princípio constitucional a interpretação das normas contidas no n° 1 do artigo 23° e no n° 1 do artigo 26° do Código das Expropriações (1999) que conduz a incluir na classificação de “solo apto para a construção” e, consequentemente, a indemnizar como tal, o solo, integrado na Reserva Agrícola Nacional, expropriado para implantação de vias de comunicação.
Decisivo para o juízo que se vier a fazer sobre aquela interpretação normativa, afigura-se a consideração do respeito pelo princípio da igualdade perante os encargos públicos, que o princípio da “justa indemnização” postula. Ora, neste contexto, o princípio da igualdade desdobra-se em dois níveis de comparação, a saber: no âmbito relação interna e no domínio da relação externa. No âmbito da relação interna, o princípio da igualdade obriga o legislador a estabelecer critérios uniformes de cálculo da indemnização, que evitem tratamentos diferenciados entre os particulares sujeitos a expropriação. No domínio da relação externa, comparam-se os expropriados com os não expropriados, devendo a indemnização por expropriação ser fixada de tal forma que impeça um tratamento desigual entre estes dois grupos.
Ora, é precisamente em relação a este domínio da relação externa que a interpretação normativa efectuada pela decisão recorrida e questionada nestes autos coloca em crise aquele princípio. De facto, no caso concreto, os solos integrados na Reserva Agrícola Nacional são expropriados exclusivamente para construção de uma via de comunicação – uma das limitadas utilizações que, por força do interesse público, os solos agrícolas integrados na RAN podem ter, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho. Por outro lado, as parcelas de terreno circundante mantêm-se igualmente integradas na RAN, também sem qualquer aptidão edificativa. Assim sendo, considerar-se como terreno apto para construção, como tal devendo ser indemnizado em caso de expropriação destinada a uma das limitadas utilizações legalmente permitidas, um terreno onde o proprietário não pode construir, por força da sua integração na RAN, conduz não só à atribuição de uma indemnização que não corresponde ao seu “justo valor” – para o determinar há que atender ao valor que o bem terá num mercado onde não entrem em consideração factores especulativos ou anómalos e o valor de um terreno integrado na RAN está, necessariamente, condicionado pelo fim específico a que tal solo está destinado -, mas também a uma intolerável desigualdade em relação a todos os restantes proprietários de terrenos integrados naquela Reserva que não tenham sido contemplados com a expropriação. Nesse sentido, escreveu-se nos acórdãos n.ºs 333/2003 e 557/2003 já citados:
“[…] Não tendo o proprietário, pela integração do terreno na RAN, expectativa razoável de ver o terreno desafectado e destinado à construção, não poderia invocar o princípio da “justa indemnização”, de modo a ver calculado o montante indemnizatório com base numa potencialidade edificativa dos terrenos que era para ele legalmente inexistente, e com a qual não podia contar.
E, em rigor, a não ser assim, poderia, eventualmente, vir a configurar-se uma situação de desigualdade entre os proprietários de parcelas contíguas, consoante fossem ou não contemplados com a expropriação, com um ocasional locupletamento injustificado destes últimos. Na verdade, enquanto os expropriados viriam a ser indemnizados com base num valor significativamente superior ao valor de mercado, os outros, proprietários de prédios contíguos igualmente integrados na RAN e na REN e delas não desafectados, se acaso pretendessem alienar os seus prédios, não alcançariam senão o valor que resultava da limitação edificativa legalmente estabelecida. Ora, se é verdade que o “princípio da igualdade de encargos” entre os cidadãos, a que o Tribunal Constitucional já fez apelo por diversas vezes, a propósito da apreciação de regras de definição do cálculo da indemnização, obriga a que o expropriado não seja penalizado no confronto com os não expropriados, também não se afigura curial que, pela via da expropriação, devam os expropriados vir a ser manifestamente favorecidos em relação aos não expropriados. De facto, se é verdade que a indemnização só é justa se conseguir ressarcir o expropriado do prejuízo que ele efectivamente sofreu, e, por isso, não pode ser irrisória ou meramente simbólica, também não poderá ser desproporcionada à perda do bem expropriado para fins de utilidade pública. Assim, se a parcela a expropriar não permite legalmente a construção, não pode ser paga com o preço que teria se pudesse ser-lhe implantada uma construção.»
Estas razões valem do mesmo modo e respondem suficientemente aos problemas de constitucionalidade colocados perante o critério normativo de cálculo da indemnização que o acórdão recorrido extraiu da norma agora apreciada.
Com efeito, também no caso se reconhece não ter sido detectada “qualquer tentativa de manipulação das regras urbanísticas por parte da Administração” (Sem curar de saber, por um lado, se a eventual depreciação, pela inclusão na RAN, do valor de mercado de um solo já objectivamente apto à edificação é, por esse facto, indemnizável e a que título, nem se a via adequada para impedir que a actuação pré-ordenada da Administração, mediante manipulação dos instrumentos de planeamento urbanístico e de ordenamento do território, logre sucesso na diminuição do valor da indemnização por expropriação, é a da inconstitucionalidade das normas relativas ao cálculo dessa indemnização). E, do mesmo modo, o calculo da indemnização do terreno incluído na RAN como solo apto para construção, ficcionando-se uma aptidão edificativa semelhante à dos terrenos situados na envolvente de 300 metros, conduziria a que os expropriados viessem a ser indemnizados com base num valor superior ao valor do mercado, enquanto os proprietários de prédios contíguos e igualmente integrados na RAN e dela não desafectados, se pretendessem alienar os seus prédios, não obteriam senão o valor que resulta da limitação edificativa legalmente estabelecida.
O facto de a parcela expropriada ser dotada das infra-estruturas a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo 25.º do CE99, bem como a existência de solos classificados como espaços urbanos, na sua área envolvente, não permitiriam ao expropriado, em condições normais de mercado, transaccionar a parte dessa parcela incluída na RAN – só a indemnização por solo nessas condições está em causa – como se tivesse a aptidão edificativa média dos solos urbanos situados na área envolvente. Essa proximidade não funda qualquer expectativa jurídica de reclassificação do solo que imediatamente seja idónea a repercutir-se no valor de mercado desse solo, fora de situações especulativas, como apto para construção, e que possa dizer-se irremediavelmente frustrada pela expropriação. De todo o modo, para situações particulares que comprovadamente se afastem da normalidade, o sistema contém o remédio da cláusula de salvaguarda constante do n.º 5 do artigo 23.º do Código, pelo que, nesses casos extremos, a “justa indemnização” sempre está assegurada.
Pelas razões expostas, importa concluir que o artigo 26.º, n.º 12, do Código das Expropriações, quando interpretado no sentido de ser indemnizável como solo apto para construção, com valor determinado em função do valor médio do solo edificável da área envolvente, terreno integrado na RAN com aptidão edificativa segundo os elementos objectivos definidos no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Código, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa)”.
É este entendimento que se reitera, pelo que o recurso merece provimento.
7. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 26.º, n.º 12, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro, quando interpretado no sentido de ser indemnizável como solo apto para construção, com valor calculado em função do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 m do limite da parcela expropriada, terreno integrado na RAN com aptidão edificativa segundo os elementos objectivos definidos no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Código.
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral (vencida, nos termos da declaração que junto) – Ana Maria Guerra Martins (vencida, no essencial, pelos fundamentos constantes dos acórdãos n.º s 114/2005 e 239/07) – Gil Galvão (voto de qualidade).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida, pelas razões que constam do projecto inicial que não obteve vencimento, e que a seguir – por razões de economia de tempo – transcrevo:
1. A questão da conformidade com os princípios da igualdade e da justa indemnização, consagrados, respectivamente, nos artigos 13.º e 62.º, n.º 2 da Constituição, da dimensão normativa que considera aplicável o critério estabelecido no n.º 12 do artigo 26.º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, ao cálculo da indemnização devida pela expropriação de terrenos inseridos em RAN que possuam aptidão edificativa segundo os elementos objectivos definidos no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Código, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Nos acórdãos n.ºs 114/2005 e 239/2007, o Tribunal não julgou inconstitucional a dimensão normativa questionada, enquanto que, nos acórdãos n.ºs 417/2006 e 118/2007, o Tribunal julgou inconstitucional a referida dimensão normativa.
Afim à dimensão normativa questionada, embora aí a questão tenha sido posta de forma inversa, é o objecto do acórdão n.º 469/2007, que julgou inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 23.º, n.º 1, 25.º, n.ºs 2 e 3, 26.º, n.º 12 e 27.º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, segundo a qual o valor da indemnização devida pela expropriação, para construção de um terminal ferroviário, de um terreno, que objectivamente preenche os requisitos elencados no n.º 2 do artigo 25.º para a qualificação como “solo apto para construção”, mas que foi integrado na Reserva Agrícola Nacional por instrumento de gestão territorial em data posterior à sua aquisição pelos expropriados, deve ser calculado de acordo com os critérios definidos no artigo 27.º para os “solos para outros fins”, e não de acordo com o critério definido no n.º 12 do artigo 26.º do mesmo diploma.
Também com interesse para a apreciação da dimensão normativa que integra o objecto do presente recurso de constitucionalidade, por, embora, em rigor, com a mesma se não confunda, com ela estar directamente relacionada, na medida em que nela estão em conflito exactamente os mesmos princípios e valores constitucionais, é a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a dimensão normativa que considera aplicável o critério estabelecido no n.º 12 do artigo 26.º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, ao cálculo da indemnização devida pela expropriação de terrenos inseridos em RAN, independentemente de estes possuírem aptidão edificativa segundo os elementos objectivos definidos no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Código.
Tal dimensão normativa foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos n.ºs 145/2005 e 597/2008, sendo que, no acórdão n.º 234/2007, o juízo foi de não-inconstitucionalidade. Importa, a este propósito, observar que se retira da fundamentação contida no acórdão n.º 239/2007, já citado, que o juízo de não-inconstitucionalidade aí formulado, incidente embora sobre “norma” idêntica àquela que integra o presente recurso, aproveitaria ainda à dimensão normativa que considera aplicável o critério estabelecido no n.º 12 do artigo 26.º do CE ao cálculo da indemnização devida pela expropriação de terrenos inseridos em RAN, independentemente de estes possuírem aptidão edificativa segundo os elementos objectivos definidos no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Código.
Por último, importa referir o acórdão n.º 275/2004, que julgou inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, as normas contidas no n.º 1 do artigo 23.º e no n.º 1 do artigo 26.º do CE, quando interpretadas no sentido de incluir na classificação de “solo apto para construção” e, consequentemente, de como tal indemnizar, o solo, integrado em RAN, expropriado para implantação de vias de comunicação.
2. Entende a recorrente que a dimensão normativa do n.º 12 do artigo 26.º sub judicio viola os princípios da igualdade e da justa indemnização, consagrados, respectivamente, no artigo 13.º e 62, n.º 2 da Constituição.
Põe-se a questão de saber se os parâmetros constitucionais invocados pela recorrente têm, entre si, autonomia, ou se antes se não deixam reconduzir a um único parâmetro de controlo.
É que, contendo o conceito de “justa indemnização” já, em si mesmo, um critério de igualdade, o juízo sobre a conformidade de uma norma emitida pelo legislador com esse princípio constitucional implica também um juízo sobre a conformidade da mesma com o princípio da igualdade.
Problematizando essa questão, o Tribunal Constitucional já disse, no acórdão n.º 11/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que, mostrando-se violado o princípio constitucional da justa indemnização, consagrado no n.º 2 do artigo 62.º da Constituição, uma que vez que ao conceito de “justa indemnização” está umbilicalmente ligada a observância do princípio constitucional da igualdade (consagrado, em termos genéricos, no artigo 13.º, n.º 1, da C.R.P.), na sua manifestação de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, abrangendo a relação externa da expropriação, a norma então em juízo, ao impedir que os expropriados sejam plenamente compensados pelo “sacrifício” patrimonial que lhes foi exigido, recebendo menos do que aquilo que perderam, também infringe o referido princípio da igualdade de encargos.
Ao assim argumentar, o Tribunal parece admitir a indissociabilidade, em matéria de indemnização por expropriação, entre o princípio da igualdade e o princípio da justa indemnização. Concluindo-se pela existência de uma violação do princípio da justa indemnização, há-de concluir-se também, partindo da referida indissociabilidade, pela existência de uma violação do princípio da igualdade.
Resulta dessa mesma ideia de indissociabilidade que, inversamente, não é correcto pretender que determinada norma, inserida no regime que regula o processo expropriativo e versando a matéria do cálculo do valor da indemnização a pagar ao expropriado, sendo conforme ao princípio da justa indemnização, viola, porém, o princípio da igualdade. Não o é, porque, se determinada norma, inserida nesse contexto, afronta o princípio da igualdade, então essa norma não é, desde logo, conforme ao princípio da justa indemnização.
Isto é assim, porque, para a Constituição, não pode à determinação da medida da indemnização justa ser alheio um critério de igualdade.
3. O artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, determina que a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada mediante o pagamento de “justa indemnização”.
Apesar de a Constituição remeter para o legislador ordinário a fixação dos critérios conducentes à fixação da indemnização por expropriação, retira-se imediatamente do âmbito de protecção normativa do preceito um direito a uma indemnização que não seja irrisória ou manifestamente desproporcionada à perda do bem expropriado, direito esse que goza do regime de protecção específico dos direitos, liberdades e garantias (v., nesse sentido, acórdão n.º 341/86, publicado em DAR – II, n.º 65, de 19-03-1987, p. 3482)
Em termos gerais e utilizando definição comum à jurisprudência deste Tribunal, poder-se-á dizer que a “justa indemnização” há-de tomar como ponto de referência o valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda do bem que lhe pertencia, com respeito pelo princípio da equivalência de valores.
A função da indemnização é a de fazer entrar, na esfera do atingido, o equivalente pecuniário do bem expropriado, de tal modo que, efectuada a expropriação, o seu património activo muda de composição, mas não diminui o valor (v. Joaquim de Sousa Ribeiro, em “O direito de propriedade na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Relatório apresentado à Conferência Trilateral Espanha/Itália/Portugal, realizada em Outubro de 2009, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
Para cumprir essa função, o valor pecuniário arbitrado, a título de indemnização, deve ter como referência o valor real do bem expropriado.
Ora, o critério geral de valorização dos bens expropriados, como medida do ressarcimento do prejuízo sofrido pelo expropriado, numa sociedade de economia de mercado como a nossa, é o do seu valor corrente, ou seja o seu valor venal ou de mercado, numa situação de normalidade económica.
Como escreveu Alves Correia “… a indemnização calculada de acordo com o valor de mercado, isto é, com base na quantia que teria sido paga pelo bem expropriado se este tivesse sido objecto de um livre contrato de compra e venda, é aquela que está em melhores condições de compensar integralmente o sacrifício patrimonial do expropriado e de garantir que este, em comparação com outros cidadãos não expropriados, não seja tratado de modo desigual e injusto” (em O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Almedina, 1989, p. 546).
Apesar deste valor de mercado não poder atender a situações especulativas e poder sofrer algumas correcções impostas por razões de justiça que visam evitar enriquecimentos injustificados, de onde resultará um “valor de mercado normativo”, é ele que deve constituir o critério referencial determinante da avaliação dos bens expropriados para o efeito de fixação da respectiva indemnização a receber pelos expropriados.
4. Como vimos, a Constituição remete para o legislador ordinário a fixação dos critérios conducentes à fixação da indemnização por expropriação.
A modelação legislativa desses critérios vem regulada nos artigos 23.º e seguintes do Código das Expropriações.
Não cabe aqui examinar exaustivamente as soluções concretas encontradas pelo legislador (para uma análise v. Fernando Alves Correia, A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade pública e o Código das Expropriações de 1999, Separata da Revista de Legislação e Jurisprudência, Coimbra, 2000, pp. 131 ss), mas apenas – e de forma muito sucinta – apreender a lógica em que assenta o regime legal.
Em primeiro lugar, estabelece-se como finalidade a observar por cada critério legalmente previsto para o cálculo do valor da indemnização a da correspondência com o valor real e corrente do bem expropriado.
Essa finalidade decorre, desde logo, do disposto no n.º 1 do artigo 23.º do CE.
Que é esse o objectivo do legislador demonstra-o o disposto no n.º 5 do artigo 23.º que nos diz que os critérios referenciais legalmente estabelecidos (nos artigos 26.º e seguintes desse diploma) devem ser afastados – adoptando-se, nesse caso, outros critérios – sempre que se não verificar uma correspondência entre o valor dos bens calculado de acordo com aqueles e o valor real e corrente dos mesmos numa situação normal de mercado.
Para efeitos de obtenção do valor real e corrente do bem expropriado o próprio legislador estabelece um conjunto de critérios referenciais ou de elementos ou factores de cálculo, os quais variam conforme o objecto da expropriação sejam solos ou edifícios ou construções.
No que respeita aos critérios referenciais relativos a solos, todo o regime legal assenta na distinção entre “solo apto para construção” e “solo para outros fins”.
A recondução do solo expropriado a uma dessas duas categorias determina-se através do preenchimento de requisitos objectivos, o que significa que o legislador não adoptou um critério abstracto de aptidão edificativa – já que, em abstracto, todo o solo, mesmo o de prédios rústicos, é passível de edificação – mas antes um critério concreto de potencialidade edificativa.
Assim, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 25.º do CE, considera-se “solo apto para construção”, o que dispõe de infra-estruturas urbanísticas [alínea a)]; o que, dispondo apenas em parte de infra-estruturas urbanísticas, se encontra inserido em núcleo urbano [alínea b)]; o que é qualificado como tal em instrumento de gestão territorial [alínea c)]; o que possui alvará de loteamento ou licença de construção em vigor no momento da declaração de utilidade pública [alínea d)].
De acordo com o n.º 3 do preceito indicado, todo o solo que não deva ser considerado como “solo apto para construção”, por não observar um dos requisitos objectivos enunciados, considera-se “solo para outros fins”.
Os critérios referenciais do cálculo do valor do solo variam consoante o solo expropriado se reconduza a uma ou outra categoria.
O artigo 26.º do CE contém os critérios referenciais do cálculo do valor do solo apto para construção.
Nos termos do seu n.º 1, o valor dessa espécie de solo “calcula-se por referência à construção que nele seria possível efectuar se não tivesse sido sujeito a expropriação, num aproveitamento económico normal, de acordo com as leis e os regulamentos em vigor, nos termos dos números seguintes e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 23.º”.
Para o efeito, atende-se, nisso consistindo o primeiro critério referencial, à média aritmética actualizada entre os preços unitários de aquisições, ou avaliações fiscais que corrijam os valores declarados, efectuadas numa zona preestabelecida (artigo 26.º, n.º 2); apurando-se, nisso consistindo o segundo critério referencial legalmente estabelecido, o cálculo do solo apto para construção em função do custo da construção em condições normais de mercado (artigo 26.º, n.º 4).
O artigo 27.º do CE contém os critérios referenciais do cálculo do valor do solo para outros fins. O n.º 1 do preceito contém uma disposição paralela à do n.º 2 do artigo 26.º.
À semelhança do disposto no n.º 4 do artigo 26.º, também em relação ao cálculo do valor do solo para outros fins entendeu o legislador fixar um segundo critério referencial, para o caso de não se revelar possível aplicar o critério estabelecido no n.º 1 do artigo 27.º, determinando que “o valor do solo para outros fins será calculado tendo em conta os seus rendimentos efectivo ou possível no estado existente à data da declaração de utilidade pública, a natureza do solo e do subsolo, a configuração do terreno e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas susceptíveis de influírem no respectivo cálculo” (artigo 27º, nº 3).
É neste quadro que importa apreciar a validade da norma sub judicio.
5. Sustenta a recorrente que tal norma viola os princípios da igualdade e da justa indemnização, consagrados, respectivamente, no artigo 13.º e 62.º, n.º 2 da Constituição.
No entender da recorrente, tal violação resultaria da circunstância de o expropriado ficar numa situação mais vantajosa comparativamente com aquela em que fica o não-expropriado, o que seria intolerável face àqueles princípios constitucionais.
Com efeito, a classificação de solos como RAN implica severos constrangimentos para os seus proprietários, pois, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho (é esse o diploma aplicável ao caso dos autos, sendo que o mesmo foi entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março), tais solos passam a ser exclusivamente afectos à agricultura, sendo proibidas todas as acções que diminuam ou destruam as suas potencialidades agrícolas, só em casos excepcionais, previstos no n.º 2 do artigo 9.º desse diploma, podendo a tais solos ser dada utilização não agrícola.
Tal significa que a classificação de solos como RAN repercute-se, inevitavelmente, no seu valor, o qual sofre uma redução significativa relacionada com as limitações inerentes ao estatuto dessa reserva.
Não obstante, a lei não prevê qualquer indemnização ao proprietário de terreno que veja parcelas do mesmo serem integradas em RAN, opção essa que não merece qualquer censura constitucional, pois o Tribunal Constitucional tem entendido que as proibições, designadamente a proibição de construção, restrições ou condicionamentos à utilização dos terrenos integrados em RAN, são uma mera consequência da vinculação situacional da propriedade que incide sobre eles, pelo que são encaradas como meramente conformadoras do conteúdo do direito de propriedade, não gerando por isso qualquer direito de indemnização autónomo (v., nesse sentido, acórdão n.º 347/2003).
Ora, a atribuição de uma indemnização por expropriação de parcela integrada em RAN, calculada com base no critério estabelecido para “solo apto para construção”, abstraindo, assim, das proibições decorrentes da classificação do solo como RAN, teria como consequência um resultado inaceitável: o expropriado conseguiria obter pela parcela expropriada um valor que o proprietário de prédio vizinho não expropriado – com idênticas características e também classificado como RAN – jamais lograria obter caso o pretendesse alienar no mercado.
A injustiça da indemnização, assim calculada, é ainda mais evidente se se considerar que todo o desenho legal dos diferentes critérios referenciais a adoptar para efeitos de cálculo do valor da indemnização por expropriação tem na sua base a natureza do solo, sendo a qualificação do mesmo como “apto para construção” ou como “solo para outros fins” determinante.
Ora, a partir do momento em que a lei opta por estabelecer critérios referenciais que assentam na natureza do solo, vir ela, posteriormente, admitir que o cálculo do valor da indemnização se processe através de um critério que abstrai da natureza do solo é, em si mesmo, contraditório, desrazoável e, por isso, arbitrário.
No sentido da inconstitucionalidade das normas contidas no n.º 1 do artigo 23.º e no n.º 1 do artigo 26.º do CE, quando interpretadas no sentido de incluir na classificação de “solo apto para construção” e, consequentemente, de como tal indemnizar, o solo, inserido em RAN, expropriado para implantação de vias de comunicação, decidiu o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 275/04.
6. Sucede, porém, que o pressuposto de que parte o entendimento acabado de expor, e acolhido no referido acórdão do Tribunal Constitucional, é inaplicável ao caso dos autos.
Recorde-se que, inicialmente, a decisão arbitral, tendo classificado a parcela expropriada como “solo apto para construção”, fixara o valor da indemnização a pagar aos expropriados em € 545 720,68, um montante muito além dos € 271 315,15 a que se chegou na decisão recorrida através da aplicação do critério acolhido na norma sub judicio.
Tal significa que, em rigor, a dimensão normativa questionada não procede ao cálculo do valor da indemnização através de um critério que abstrai da natureza do solo.
Com efeito, não se está aí a proceder ao cálculo do valor da parcela expropriada nos exactos termos em que se efectua o cálculo de “solo apto para construção”.
Longe de pretender ignorar os constrangimentos que resultam da integração em RAN do terreno em que se insere a parcela expropriada – de outra maneira os critérios referenciais a observar seriam os que vêm previstos nos n.ºs 2 e 4 do artigo 26.º – a dimensão interpretativa sub judicio parte do pressuposto de que justamente existem constrangimentos regulamentares à edificação nesse solo, determinando, como critério de cálculo do valor de indemnização, um factor certo e objectivo, qual seja o do valor médio das construções existentes na vizinhança do prédio em que se integra a parcela expropriada.
É certo que a factualidade dos autos está fora do âmbito de aplicação da norma contida no n.º 12 do artigo 26.º do CE.
Com efeito, esse preceito, que corresponde, com algumas alterações, ao n.º 2, do artigo 25.º, do Código das Expropriações de 1991, teve como finalidade evitar as manipulações das regras urbanísticas por parte da Administração, nomeadamente na classificação dolosa e preordenada de um terreno como zona verde, de lazer ou para instalação de infra-estruturas ou equipamentos públicos, com vista à sua desvalorização e ulterior aquisição, por expropriação, mediante o pagamento de uma indemnização de um valor correspondente ao do solo não apto para construção (v., nesse sentido, Fernando Alves Correia, Código das Expropriações e outra legislação sobre expropriações por utilidade pública, Aequitas, 1992, pp. 23-24 e A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade pública e o Código das Expropriações de 1999, ob. cit., pp. 145-146 e José Osvaldo Gomes, Expropriações por utilidade pública, Texto Editora, 1997, pp. 195-196).
Prescindindo da prova da actuação dolosa nessas intervenções a dois tempos, o legislador entendeu que a expropriação de determinados terrenos após a sua anterior classificação como zona verde, de lazer ou para instalação de infra-estruturas ou equipamentos públicos, por plano municipal de ordenamento do território, relativamente a quem já era proprietário desses terrenos à data dessa classificação, deveria ser compensada, não com o pagamento duma indemnização equivalente ao seu valor venal à data da expropriação, mas sim com uma indemnização que tivesse em consideração a capacidade edificativa dos terrenos vizinhos que não foram atingidos por aquela restrição de uso.
As situações contempladas na letra do referido n.º 12, do artigo 26.º, do CE, correspondem, pois, a casos em que as limitações impostas por plano de ordenamento do território aniquilam de tal forma o conteúdo mínimo essencial do direito de propriedade que se traduzem em actos equivalentes a uma verdadeira expropriação, pelo que o legislador considerou que a sua posterior expropriação efectiva por um valor que atendesse à desvalorização resultante das severas limitações impostas, se traduzia objectivamente numa inadmissível manipulação das regras urbanísticas pela Administração, independentemente da prova de uma intenção dolosa.
Assim sendo, é pacífico que a inserção de um terreno na RAN não é equiparável a essas situações, uma vez que as limitações inerentes ao estatuto dessa reserva não têm a severidade dos casos anteriormente referidos e têm em atenção a especial localização factual desse terreno e as suas características intrínsecas, não gerando por isso qualquer direito de indemnização autónomo.
Porém, o que está em juízo no Tribunal Constitucional não é a aplicação ao caso dos autos da norma constante do n.º 12 do artigo 26.º do CE, pois que tal matéria constitui objecto inidóneo para efeitos de um processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, o qual tem por objecto apenas normas e não decisões judiciais em si mesmas consideradas.
O que está em juízo é a dimensão interpretativa do n.º 12 do artigo 26.º do CE, no sentido de permitir (ainda que por aplicação extensiva) que solos integrados na RAN com aptidão edificativa segundo os elementos objectivos definidos no n.º 2 do artigo 25.º do mesmo Código, expropriados para implantação de vias de comunicação, possam ser avaliados em função «do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 metros do limite da parcela expropriada».
7. No sentido da inconstitucionalidade da norma, assim delimitada, decidiu o Tribunal Constitucional nos seus acórdãos n.ºs 417/2006 e 118/2007.
O primeiro desses arestos limita-se a remeter para o acórdão n.º 275/04, cuja fundamentação reproduz na íntegra, sendo que a dimensão normativa não é coincidente, porquanto neste último o que estava em causa era uma norma que conduzia a proceder ao cálculo do valor do solo inserido em RAN nos exactos termos em que se efectua o cálculo de “solo apto para construção”, o que, como já se deixou claro, nada tem que ver com a norma sub judicio, que parte do pressuposto de que justamente existem constrangimentos regulamentares à edificação nesse solo.
Já o acórdão n.º 118/2007, embora partindo da distinção entre a dimensão normativa apreciada no acórdão n.º 275/04 e a que integra o objecto desse recurso de constitucionalidade, coincidente com o dos presentes autos, não extrai quaisquer consequências dessa distinção, afirmando antes que «[…] do mesmo modo, o cálculo da indemnização do terreno incluído na RAN como solo apto para construção, ficcionando-se uma aptidão edificativa semelhante à dos terrenos situados na envolvente de 300 metros, conduziria a que os expropriados viessem a ser indemnizados com base num valor superior ao valor do mercado, enquanto os proprietários de prédios contíguos e igualmente integrados na RAN e dela não desafectados, se pretendessem alienar os seus prédios, não obteriam senão o valor que resulta da limitação edificativa legalmente estabelecida».
Não se seguirá tal fundamentação por duas ordens de razões.
8. Em primeiro lugar, porque não é possível afirmar com absoluta certeza que o cálculo do valor do terreno inserido em RAN através do critério referencial contido no n.º 12 do artigo 26.º do CE leve a que o expropriado seja indemnizado num montante superior ao valor de mercado do bem expropriado.
Em segundo lugar, porque, ainda que assim não fosse, i. é, mesmo na hipótese de a adopção do critério referencial contido no n.º 12 do artigo 26.º do CE conduzir a que o expropriado seja indemnizado num montante superior ao valor de mercado do bem expropriado, ainda assim não seria de concluir, sem mais, por um juízo de inconstitucionalidade.
Importa articular melhor os dois argumentos acabados de enunciar.
Quanto à impossibilidade de se afirmar com absoluta certeza que o cálculo do valor do terreno inserido em RAN através do critério referencial contido no n.º 12 do artigo 26.º do CE leve a que o expropriado seja indemnizado num montante superior ao valor de mercado do bem expropriado, está-se com isso a dizer que o critério normativo adoptado na decisão recorrida não é manifestamente inidóneo para garantir que, através dele, o valor da indemnização corresponda ou se aproxime o mais possível do valor real e corrente da parcela expropriada, correspondência essa que, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 23.º do CE, é o objectivo final do legislador (importa ainda, ter presente o disposto no n.º 5 do artigo 23.º desse diploma, onde se determina que os critérios referenciais legalmente estabelecidos devem ser afastados – adoptando-se, nesse caso, outros critérios – sempre que se não verificar uma correspondência entre o valor dos bens calculado de acordo com aqueles e o valor real e corrente dos mesmos numa situação normal de mercado).
Com efeito, não é desrazoável admitir que o valor real e corrente de um terreno inserido em RAN, situado próximo de um núcleo urbano consolidado, tenha um valor relativamente superior ao de um terreno, com a mesma área e demais características, também inserido em RAN, que se situe a uma mais longa distância do núcleo urbano mais próximo.
Porque nada impede que à utilização não agrícola de terreno inserido em RAN, legalmente prevista no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 196/89, de 14 de Junho, seja atribuído um valor económico específico, medido a partir de elementos certos e objectivos relativos à localização do próprio terreno, à sua acessibilidade e ao desenvolvimento urbanístico da zona, não é possível afirmar que a norma sub judicio leva ao resultado indesejado de o expropriado se locupletar indevidamente à custa do erário público.
Não se pode afirmar, com absoluta certeza, que o valor real e corrente da parcela expropriada não é justamente aquele que se obtém através dessa fórmula. Dito de outro modo, o Tribunal Constitucional não dispõe de todos os elementos de facto para poder responder à questão de saber se, à data da declaração de utilidade pública da parcela expropriada, o proprietário do terreno expropriado não teria conseguido obter pela alienação da mesma no mercado, justamente o valor que se obtém através do critério acolhido na norma sub judicio.
Quanto ao segundo argumento utilizado, i. é que, mesmo na hipótese de a adopção do critério referencial contido no n.º 12 do artigo 26.º do CE conduzir a que o expropriado seja indemnizado num montante superior ao valor de mercado do bem expropriado, ainda assim não seria de concluir, sem mais, por um juízo de inconstitucionalidade, vale o mesmo por dizer que o Tribunal Constitucional não se deve substituir ao legislador na distribuição por este efectuada do risco de uma eventual falta de correspondência entre o valor real e corrente do bem expropriado e o montante indemnizatório atribuído.
Nada garante que o critério adoptado na decisão recorrida seja, de entre todos, o mais idóneo para se obter o valor real do bem expropriado.
Com efeito, admite-se que o critério normativo acolhido na decisão recorrida possa conduzir, em alguns casos, à fixação de um valor indemnizatório que exceda o valor real e corrente do bem expropriado, assim distorcendo a proporção que deve existir entre o prejuízo imposto pela expropriação e a compensação a pagar por ela.
Inversamente, também é fácil imaginar a situação oposta, i. é, a possibilidade real de o recurso aos critérios referenciais, legalmente estabelecidos, nos n.ºs 1 e 3 do artigo 27.º do CE levar, pelo menos em alguns casos, à fixação de uma indemnização que fique aquém do valor real e corrente do bem expropriado, também aqui existindo um desequilíbrio entre o sacrifício imposto ao expropriado e o custo suportado pela comunidade, expresso no montante indemnizatório.
Esta incerteza, relativa afinal ao impossível asseguramento de uma correspondência em todos os casos absoluta entre o valor da indemnização e o valor de mercado do bem expropriado, decorre do simples facto de não poder o legislador fazer mais do que ordenar um sistema de critérios referenciais atinentes ao cálculo do quantum indemnizatur, sistema esse que, devidamente aplicado, tenderá a proporcionar uma indemnização efectivamente correspondente ao “valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo numa utilização económica normal” Como é evidente, da aplicação de tal sistema podem decorrer variações, para mais ou para menos, entre o montante da indemnização e o valor real do bem. Tais variações, porém, só se tornarão lesivas do princípio constitucional da indemnização justa quando forem de intensidade tal que se apresentem, à evidência, como algo de desrazoável e de desproporcionado.
Não é o que se passa no caso dos autos, relativamente à “norma” decorrente das disposições conjugadas dos artigos 26.º, nº 12 e 25.º, nº 2, do Código das Expropriações, que o tribunal a quo aplicou.- Maria Lúcia Amaral.