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Processo n.º 626/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por decisão de 4 de Janeiro de 2010, proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) no processo de contra-ordenação n.º 190902110, foi a arguida A., SA, ora recorrente, condenada no pagamento de uma coima, no valor de €750,00, pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 678º, n.º 1, do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Outubro, por violação das cláusulas 9.ª-C, 9.ª A, n.º 2, 9.ª-D, nº 2, e 10.ª, n.º 1, do anexo I da Convenção Colectiva de Trabalho celebrada entre a Associação dos Operadores Portuários dos Portos do Douro e Leixões e outra e o Sindicato dos Estivadores e Conferentes Marítimos e Fluviais do Distrito do Porto e outro, publicada no BTE, 1ª série n.º 6/1994, de 15 de Fevereiro, com as alterações publicadas no BTE, 1º série n.º 42/1998 de 15 de Novembro.
Dessa decisão recorreu a arguida para o Tribunal de Trabalho da Comarca de Matosinhos, que, por sentença de 18 de Maio de 2010, decidiu julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando, em consequência, a decisão recorrida.
É desta sentença que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, através do qual pretende a arguida, segundo esclarecimento prestado ao abrigo do n.º 5 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante da Cláusula 10.º do Anexo I do citado Contrato Colectivo de Trabalho, na interpretação segundo a qual «só podem exercer as actividades de “manobrador” os trabalhadores (filiados no Sindicato outorgante da Convenção) com a categoria de “portuário de base”», por violação dos artigos 13.º («princípio da igualdade – designadamente, da igualdade no acesso ao trabalho») e 55.º («designadamente, a liberdade sindical, em particular a liberdade de inscrição – quer na vertente positiva (que implica a inadmissibilidade constitucional de sindicatos fechados e do sistema de “closed shop”), quer na vertente negativa (garantindo o direito de não filiação e a garantia de não discriminação no trabalho em virtude da (não) filiação sindical»), da Constituição da República Portuguesa.
Admitido o recurso, pelo Tribunal recorrido, prosseguiram os autos com a apresentação de alegações pelo recorrente, a que o Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional respondeu, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso por falta de interesse em recorrer, na perspectiva da «pertinência» e «utilidade» do recurso de constitucionalidade, que implica, respectivamente, que a norma ou interpretação normativa a apreciar constitua o «motivo determinante da decisão recorrida» e da sua reforma, quanto à questão de inconstitucionalidade, resulte uma «utilidade prática para o recorrente», o que, segundo entende, no caso, se não verifica.
A recorrente, notificada para o efeito, pronunciou-se sobre tal questão prévia, sustentando, no essencial, que, contrariamente ao defendido pelo Ministério Público na sua resposta, a norma da cláusula 10.ª, n.º 1, da indicada CCT e a «interpretação minimalista ou ‘literalista’» que dela foi feita pelo Tribunal recorrido, como delimitado no aperfeiçoado requerimento de interposição de recurso, constituem a «base normativa» que sustentou a decisão recorrida, sendo que, por outro lado, a procedência do recurso, com a consequente consagração do entendimento normativo de que «na ausência de regulação das carteiras profissionais, o exercício das funções especializadas em causa pode ser atribuído a qualquer trabalhador portuário, desde que preencha os requisitos profissionais objectivamente adequados a esse exercício (experiência e qualificação), em igualdade de condições com os que hoje já são admitidos a exercê-las», implicará necessariamente a sua absolvição, pelo que, a seu ver, o recurso de constitucionalidade assume as características de pertinência e utilidade.
2. Cumpre, pois, apreciar e decidir, começando por analisar se o recorrente tem interesse em recorrer da decisão que, julgando improcedente o recurso, confirmou a decisão administrativa condenatória.
O Ministério Público equaciona a excepcionada falta de interesse em recorrer na perspectiva da pertinência da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada, na economia global da decisão recorrida – concluindo que a interpretação normativa sindicada não constituiu o seu motivo determinante – e na perspectiva da utilidade do recurso, afigurando-se-lhe inútil o seu conhecimento de mérito porque a sua procedência não implicará a absolvição da arguida, ora recorrente, atentos os fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida, que não resultarão alterados com a formulação do reivindicado juízo de inconstitucionalidade.
Julgamos, contudo, que a falta de interesse em recorrer da recorrente – porque de falta de interesse ainda se trata – resultará, desde logo, do facto de esta, atento o modo como configurou os fundamentos do recurso, não ser titular dos direitos fundamentais alegadamente violados com a interpretação normativa que reputa de inconstitucional, não resultando, pois, da sua adopção qualquer restrição constitucionalmente intolerável da sua esfera jurídica.
Com efeito, a recorrente enuncia como parâmetros de constitucionalidade violados os princípios da igualdade, na vertente de «igualdade no acesso ao trabalho», e da liberdade sindical, em particular na vertente (negativa) da garantia do «direito de não filiação (…) e de não discriminação no trabalho em virtude da (não) filiação sindical», consagrados, respectivamente, nos artigos 13.º e 55.º da Constituição da República Portuguesa, argumentando, no essencial, que, sufragando-se o entendimento normativo em causa, excluir-se-á «do acesso ao exercício das funções especializadas de manobrador um trabalhador que, apenas por não ser sindicalizado, também não pode aceder à categoria de ‘portuário de base’, apesar de ter (…) habilitações, formação profissional, experiência e atestada competência profissional para as exercer».
Sucede que quem é afectado, na sua posição jurídica subjectiva, em termos que justificariam a necessidade de tutela judicial que é fundamental pressuposto do interesse em demandar ou recorrer é, exclusivamente, quem alegadamente não pôde aceder a dada categoria profissional pela circunstância de não ser sindicalizado, sendo do trabalhador e não da empresa que pretende usar a sua mão de obra qualificada o direito fundamental de não ser discriminado, na sua progressão laboral, pelo facto de, no exercício da liberdade que, numa vertente negativa, também lhe é reconhecido pelo artigo 55.º da CRP, optar por não se sindicalizar.
Não pode, pois, a recorrente, que é sociedade anónima concessionária de carga geral fraccionada e de granéis sólidos no Porto de Leixões, pretender ver julgada inconstitucional dada norma ou interpretação normativa pelo facto, que ela própria alegou, de importar a violação de direitos fundamentais de um seu trabalhador, sendo irrelevante, neste particular, que o efeito reflexo, acessório ou secundário da formulação do juízo de inconstitucionalidade seja a reclamada possibilidade de o afectar ao exercício de funções especializadas embora não possua a categoria profissional para tanto convencionadamente necessária.
Nessa perspectiva substantiva, é, pois, inútil o conhecimento do objecto do recurso, pois que, independentemente de uma eventual e formal afectação adjectiva da posição processual que a recorrente assume nestes concretos autos, a verdade é que, não sendo esta titular da posição jurídica tutelada pelas normas fundamentais alegadamente violadas pela interpretação normativa sindicada, a confirmação, na procedência do recurso, de um tal juízo de inconstitucionalidade não implicará a reintegração, nos exactos termos constitucionalmente impostos, da esfera jurídica – que, em tal dimensão substantiva, se manteve incólume – de que é titular, mas da de terceiros, que optaram por não recorrer aos meios de tutela judicial legalmente previstos.
É que a garantia processual, também ela constitucionalmente tutelada, de que a todo o direito corresponde uma acção (artigos 20º da CRP e 2º, n.º 2, do CPC), aplicável em todos os escalões de intervenção jurisdicional, inclusive em sede de recurso, apela à ideia de que apenas quem se arroga à titularidade do direito violado pode legitimamente accionar as vias judiciais destinadas a prevenir ou reparar a sua violação e garantir, por via coerciva, a sua efectiva realização, não se justificando, por inútil, a adopção das correspondentes medidas de tutela jurisdicional em ordem à protecção da esfera jurídica de terceiros.
E esta ideia fundamental, subjacente a toda a estruturação adjectiva do sistema judicial, aplicar-se-á também, por imposição constitucional, ao próprio recurso de constitucionalidade, que, embora de carácter normativo, apenas pode ser legitimamente accionado pela parte afectada com a aplicação da norma inconstitucional, assumindo, assim, um incontornável alcance subjectivo porque destinado, também ele, à tutela de posições jurídicas individuais (cf., neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 585/2009).
Assim sendo, afigura-se que a recorrente, pelas enunciadas razões, não tem, com efeito, verdadeiro interesse em recorrer, não resultando da procedência do recurso o efeito útil associado, em caso de procedência, à formulação do reclamado juízo de inconstitucionalidade normativa, que é também, indissociavelmente, o da reintegração da esfera jurídica individual tutelada pela norma ou princípio constitucional violado.
3. Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta.
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral (votei a decisão de não conhecimento por inutilidade da decisão que o Tribunal viesse a proferir, mas fi-lo nos termos da minha declaração ao Acórdão n.º 585/2009) – Vítor Gomes (com declaração anexa) – Gil Galvão.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Afigura-se-me que deveria ter-se chegado à conclusão do não conhecimento do objecto do recurso com fundamento diverso daquele que o acórdão adoptou.
Efectivamente, a decisão recorrida não interpretou a cláusula 10.ª do referido Contrato Colectivo de Trabalho como reservando o exercício de funções especializadas para trabalhadores filiados em qualquer dos Sindicatos outorgantes, nem fez equivaler a categoria de “trabalhador portuário de base” a trabalhador sindicalizado ou dependente de filiação necessária nos referidos sindicatos. Essa pode ser a situação “de facto”, resultante da conjugação da prática sindical com a inércia do legislador ou da Administração quanto à regulamentação dos cursos de formação e carteiras profissionais previstos na lei para habilitação ao exercício de tais funções, mas não é a situação de jure. E, mesmo como situação de facto, não é dada como assente pela sentença recorrida, o que definitivamente inviabiliza a apreciação da violação pela referida norma – tomada como “direito vivente” com o referido sentido – dos parâmetros constitucionais indicados pela recorrente.
Consigno que se considerasse que a norma foi aplicada com o sentido que a recorrente defende, embora tenha subscrito o acórdão n.º 585/09, teria de remover as dúvidas com que agora me deparo quanto a saber se essa doutrina é transponível para a hipótese do presente acórdão. Designadamente, se num processo em que está em causa a sanção aplicada a uma empresa pela prática de uma contra-ordenação que consiste na violação de determinada restrição de afectação dos trabalhadores dos seus quadros a certas funções, pode negar-se-lhe interesse em discutir a validade da norma que estabelece esse condicionamento por cujo desrespeito é punida. Além do mais, talvez não esteja apenas em causa a dimensão subjectiva da liberdade sindical.- Vítor Gomes.