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Processo n.º 78/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., por sentença proferida em 2 de Fevereiro de 2010, no processo n.º 671/07.7GEOER, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, foi condenado na pena de um ano de prisão, pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, formulando as seguintes conclusões:
«1. Devemos atender a que a medida da pena deve ser atribuída em função da culpa do agente, sob pena de se violar o disposto no 1 e 2 do art.º 40º e n.º 1 do art. 71º, ambos do Cód. Penal, pelo que deverá a pena aplicada ser diminuída, devendo ser inferior a 1 (um) ano de prisão, pois o contrário seria prejudicial à sua ressocialização;
2. Quanto à possibilidade de suspensão da sua pena de prisão, é de referir diversos pontos que apoiam essa possibilidade de suspensa;
3. Estamos em crer que no recorrente se encontram reunidas as condições necessárias para a aplicação da suspensão da execução da pena, atenta a sua interiorização das consequências da prática de crimes.
4. É de sublinhar que se o actual governo vislumbra serem maiores os malefícios de uma curta pena de prisão (sujeição de uma pessoa a um local onde proliferam doenças incuráveis como SIDA e Hepatite e onde pela companhia dos outros reclusos apenas se aprende a cometer mais crimes e a usar violência) do que os benefícios, parece-nos ser sensata a possibilidade de não sujeitar o recorrente a uma pena de prisão efectiva;
5. Até porque estamos em crer que com a verdadeira ameaça de prisão que lhe foi feita agora, com uma condenação efectiva, já este ponderará (sem qualquer dúvida) de futuro sobre a prática de qualquer crime, pois certo é que já se apercebeu que ainda que lhe suspendam a pena desta vez, para uma próxima (a haver próxima) já essa pena nunca será suspensa;
6. Não devemos assim esquecer que a suspensão da pena de prisão permite a sujeição a um regime de prova, dando assim uma oportunidade ao recorrente, e retirando essa mesma oportunidade se o recorrente não se demonstrar digno da confiança depositada;
7. Pelo que nos parece se poder afirmar com grande grau de segurança que no caso sub judice a simples ameaça de prisão realizará ainda de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;
8. Ameaça essa que poderá ser sujeita a regime de prova, nos termos dos artº 50º e ss. do Cód. Penal;
9. Demonstrando-se essa aplicação ajustada no caso dos presentes autos, sob pena de se violar o disposto no 2 do artº 40º e n.º 1 do art.º 71º, ambos do Código Penal;
10. Sem prejuízo ainda de que sempre poderão ser aplicados ao recorrente os regimes mais favoráveis constantes nos artº 43º, art.º 44º, art.º 45º ou mesmo do art.º 46º todos do Cód Penal, e que visivelmente se mostram mais favoráveis ao recorrente, salvaguardando ainda esses regimes todas as necessidades de prevenção geral e especial;
11. Violados se revelam, em consequência, salvo melhor opinião, os preceitos legais invocados nas presentes alegações de recurso.
Nestes termos e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, assim se fazendo...
...JUSTIÇA!!!»
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 17 de Junho de 2010, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
O arguido requereu a reforma deste acórdão, o que foi indeferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 7 de Outubro de 2010.
O arguido requereu também a aclaração deste último acórdão, o que foi indeferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por novo acórdão proferido em 2 de Dezembro de 2010.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“A., arguido nos autos acima referenciados, tendo sido notificado da Decisão neles proferida e não se conformando com a mesma, dela vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O presente recurso funda-se no disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, por inconstitucionalidade material do art.º 70º do Código Penal, que ao colocarem limitações no direito ao recurso pelo arguido incorrem na violação do disposto no art.º 13º e 32º, ambos da Constituição da República Portuguesa, Por ter legitimidade, estar em tempo, e a decisão ser recorrível, requer seja o recurso agora interposto admitido.”
Foi proferida decisão sumária em 15 de Fevereiro de 2011 de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada norma ou interpretação normativa, tem de incidir sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
No caso dos autos, a questão que, antes de mais, importa apreciar prende-se com saber se durante o processo foi suscitada validamente uma questão de constitucionalidade.
A suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade implica, no plano formal, que o recorrente tenha invocado perante o tribunal recorrido, em tempo e modo que vincule este ao seu conhecimento, a inconstitucionalidade da mesma norma, ou da mesma interpretação normativa que agora questiona perante o Tribunal Constitucional.
Como se escreveu no acórdão n.º 269/94 (acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt):
“Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que - como já se disse - tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringidos.”
No caso dos autos, o Recorrente fez constar do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que este foi interposto com fundamento na inconstitucionalidade material do artigo 70.º do Código Penal que, ao colocar limitações no direito ao recurso pelo arguido, viola o disposto nos artigos 13.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Ora, constata-se que esta questão não foi suscitada perante o tribunal recorrido no momento processual adequado: isto é, nas alegações de recurso interposto pelo arguido para o tribunal da Relação de Lisboa, em termos de este tribunal estar obrigado a conhecer da questão.
Com efeito, se analisarmos a motivação deste recurso e as respectivas conclusões, verifica-se que não foi aí suscitada qualquer questão de constitucionalidade, designadamente, no que respeita ao artigo 70.º do Código Penal.
Ora, a questão de inconstitucionalidade deve ser suscitada antes de se mostrar esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre tal questão, na medida em que o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal recorrido sobre a questão de inconstitucionalidade que é objecto do recurso.
Só em casos muito particulares – em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar tal questão antes de ser proferida a decisão recorrida, ou tendo tido essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de inconstitucionalidade, ou em que, por força de preceito específico, o poder jurisdicional não se tivesse esgotado com a prolação da decisão final – é que será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
É certo que o Recorrente, no requerimento em que solicitou a aclaração do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Junho de 2010, refere que, caso não tenha sido ponderada a aplicação dos regimes previstos nos artigos 45.º, 46.º e 58.º do Código Penal, se verifica a violação dos artigos 13.º, n.º 1, e 32º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
No entanto, não só esta alegação não coincide com a questão de constitucionalidade que agora é colocada no Tribunal Constitucional, como tem sido reiteradamente entendido que os incidentes pós-decisórios (pedido de aclaração, de reforma ou arguição de nulidade da decisão), não são, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar, pela primeira vez, uma questão de constitucionalidade.
Uma tal forma de proceder é assim manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que recai sobre o Recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa em termos de este a dever apreciar.
Face ao exposto, é manifesto que se não pode considerar que tenha sido cumprido o requisito exigido pelo n.º 2, do artigo 72.º, da LTC, pelo que, não estando preenchido este requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, deverá ser proferida decisão sumária de não conhecimento, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
O Recorrente reclamou desta decisão, expondo os seguintes argumentos:
“Por decisão sumária de 15 de Fevereiro de 2011, decidiu o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator deste Tribunal Constitucional não tomar conhecimento do objecto do recurso apresentado pelo ora reclamante, apontando aí nessa decisão sumária os motivos porque se decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Porém, alguns considerandos haverá que se fazer para uma boa aplicação da justiça e para a correcta admissão e apreciação do recurso apresentado pelo ora reclamante,
Assim:
Um dos pressupostos para a admissão do recurso, é a de que o tribunal recorrido tenha aplicado, como ratio decidendi, norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, considerando essa norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, mediatizada pela decisão recorrida.
Entendeu o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator, explanando esse entendimento na decisão sumária não ter sido adequadamente suscitada uma questão de constitucionalidade normativa, para que o douto Tribunal recorrido, ao apreciar o recurso, soubesse que tinha que conhecer dela.
Refira-se que:
* a invocação de inconstitucionalidade, segundo o que resulta da lei, bastará ter sido invocada em qualquer fase do processo (e não apenas imediatamente no acto anterior àquele de que se recorre para o Tribunal Constitucional),
* desde que seja perceptível ao tribunal (de cuja decisão se recorre para o Tribunal Constitucional) que se propalou pela inconstitucionalidade de uma determinada norma quando interpretada em determinado sentido,
* tendo esse mesmo tribunal interpretado essa norma dessa forma que se pugnou pela inconstitucionalidade.
Certo é que o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, ao apreciar os recursos dos então recorrentes da decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, não apenas terão analisado esses recursos (sob pena de insipiência), como também terão analisado, entre outros, o douto acórdão então proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Certo é que:
* O reclamante havia já durante o processo arguido inconstitucionalidade de norma jurídica,
* O douto Tribunal recorrido ao não admitir o recurso para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça fê-lo através da aplicação da norma que se invocou a inconstitucionalidade e com a interpretação que se pretende ver impugnada;
Termos em que:
1 – É admissível o recurso interposto para o Tribunal Constitucional da douta decisão do Tribunal da Relação de Lisboa por ter este último sufragado entendimento que já se havia pugnado como inconstitucional;
3 – Pelo que a haver incorrecções, inexactidões ou imperfeições no recurso do ora reclamante para o Tribunal Constitucional, sempre haverá este que ser convidado a suprir essas irregularidades através do aperfeiçoamento, nos termos do n.º 5 do art.º 75º-A da LTC.
Termos em que deve ser aceite o presente recurso e convidado o ora recorrente a aperfeiçoar e mesmo”.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação.
Fundamentação
O recurso interposto para o Tribunal Constitucional não foi conhecido por não se mostrar cumprido o requisito da suscitação adequada perante o tribunal recorrido da questão de constitucionalidade colocada no requerimento de interposição de recurso.
Na reclamação apresentada, pretende-se que a decisão recorrida não admitiu um recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, mediante a interpretação cuja constitucionalidade se questionou e havia sido anteriormente suscitada perante o Tribunal recorrido.
Contudo, da análise dos autos constata-se que não foi apresentado qualquer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não tendo sido proferida qualquer decisão pelo tribunal recorrido de não admissão de recurso, pelo que se torna incompreensível a reclamação apresentada.
Não se justifica também a utilização do mecanismo de convite à correcção do requerimento de interposição de recurso previsto no artigo 75.º - A, n.º 5, da LTC, uma vez que o requisito cuja omissão justificou o não conhecimento do recurso – suscitação adequada perante o tribunal recorrido da questão de constitucionalidade constante do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional - não é suprível.
Por estas razões deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.