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Processo n.º 15/2011
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão do Tribunal Judicial da Maia foi o ora recorrente, A., condenado como co-autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de seis anos de prisão e, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de €10,00. Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, em conferência, confirmou a decisão de 1ª instância, rejeitando ainda o recurso quanto à impugnação da matéria de facto com fundamento na falta de cumprimento das exigências constantes dos n.°s 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal (CPP).
2. Sempre inconformado, o arguido deduziu reclamação para a conferência - e requereu ainda, autonomamente, a aclaração do acórdão e a sua nulidade -, sustentando, além do mais, que o Tribunal deveria ter convidado o recorrente a aperfeiçoar o seu recurso, de forma a que aquele pudesse corrigir o apontado lapso formal, mais defendendo a “aplicação analógica” do Acórdão n.º 529/03 do Tribunal Constitucional, no qual este Tribunal declarou a inconstitucionalidade dos artigos 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º1 do CPP, quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões. Para tanto, afirmou o recorrente que:
“[...] 19. O Tribunal Constitucional considerou já inconstitucionais – por violação do disposto no art.º 32.º, n.º1 da constituição – os art.°s 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido da falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões (cfr. nesse sentido, os Acórdãos n.°s 193/97, 43/99, DR-II, de 29.03.99 e 417/99).
20. Entende assim o arguido que, analogicamente, visto também se tratar de questões formais, se devem aplicar aos citados acórdãos, bem como o Acórdão n.º 529/03 do Tribunal Constitucional, ao caso sub judice e deste modo proceder-se ao convite ao aperfeiçoamento do vício detectado (no entender dos Senhores Juízes Conselheiros).[…]
33. […], o arguido deve ser sempre convidado a aperfeiçoar tal vício sob pena de ver as garantias do direito de defesa do recorrente diminuídas, na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo art.º 32.º, n.º 1 da Constituição.
34. Na verdade, a atitude dos Senhores Juízes nos presentes autos, ao não ordenar o convite ao aperfeiçoamento, implica, salvo o devido respeito, uma ofensa das garantias de defesa dos arguidos e a violação dos artigos 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 1 e 8 e 34.º, n.º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.
35. A prevalência inaceitável da verdade formal sobre a verdade material implica além da violação dos preceitos do nosso Código de Processo Penal e Constituição da República Portuguesa, também uma violação da Convenção dos Direitos Humanos […].”
3. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03.06.2009, foram julgados improcedentes o pedido de aclaração e a arguição de nulidade.
4. Novamente inconformado, o arguido recorreu para este Tribunal, dizendo:
“[…] notificado [...], vem interpor Recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (art.º 208.º, n.º1, al. b) da C.R.P. e 70.º, n.º.1, al. b) n.º 2 da Lei n.º 28/82 de 15.11) para o que tem legitimidade (…), estando em tempo (…), pelo que requer a V.Exª se digne admiti-lo (…).
Com o presente recurso o Recorrente pretende ver declarada a inconstitucionalidade das seguintes normas: A inconstitucionalidade do art.º 412.º, n.º3 e 4 C.P.P., por violação do disposto no art.º34.º, n.º1 e n.º4 da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido da falta de indicação concreta das passagens em que funda a sua impugnação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido quanto à impugnação da matéria de facto, sem formulação de convite ao aperfeiçoamento dessa mesma indicação das concretas passagens a que alude o n.º 4 do art.º 412.º do CPP.”
5. Na sequência, foi proferida pelo relator, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, decisão sumária de não conhecimento do recurso. É o seguinte, na parte agora relevante, o respectivo teor:
“[...] Admitido o recurso no Tribunal da Relação do Porto, cumpre, antes de mais, decidir se se pode conhecer do seu objecto, uma vez que a decisão que os admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cf., artigo 76.º, n.º 3, da LTC).
Vem o presente recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC). Como este Tribunal tem repetidamente afirmado o recurso ali previsto tem por objecto exclusivo a apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas e pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha suscitado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida e de modo processualmente adequado, a exacta questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada e, que, não obstante, a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, a norma ou dimensão normativa arguida de inconstitucional.
Ora, no caso dos autos, é manifesto que o recorrente não colocou ao Tribunal da Relação do Porto, de modo processualmente adequado, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Na verdade, como resulta patente do supra transcrito em 2., o que o ora recorrente fez foi sindicar a constitucionalidade da própria decisão reclamada, não tendo, em momento algum anterior ao presente recurso, suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma que agora pretende ver apreciada – artigo 412.º, n.°s 3 e 4 do CPP. Ao afirmar que “a atitude dos Senhores Juízes nos presentes autos, ao não ordenar o convite ao aperfeiçoamento, implica, salvo o devido respeito, uma ofensa das garantias de defesa dos arguidos e a violação dos artigos 18º, n.º 2, 32º, n.º 1 e 8 e 34º, n.º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa”, o recorrente questiona, do ponto de vista da sua constitucionalidade, não uma norma jurídica, mas sim a decisão judicial que decidiu a causa em sentido que lhe é adverso. Ora, como o Tribunal tem reiteradamente afirmado, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280.º da Constituição e no artigo 70.º da Lei n.º 28/82.
6. Face ao exposto, não tendo sido suscitada perante o Tribunal a quo qualquer questão de constitucionalidade normativa, está vedado a este Tribunal conhecer do objecto do presente recurso.”
6. Inconformado, o recorrente reclama para a Conferência, afirmando:
“[...] o arguido suscitou em momento anterior, perante o Tribunal da Relação do Porto, a inconstitucionalidade do art.º 412.° n.° 3 e 4 C.P.P., por violação do disposto no art.º 34.º, n.º 1 e n.° 4 da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido da falta de indicação concreta das passagens em que funda a sua impugnação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido quanto à impugnação da matéria de facto, sem formulação de convite ao aperfeiçoamento dessa mesma indicação das concretas passagens a que alude o n.° 4 do art.º 412.° do CPP.
6. A situação que ora se suscita nos autos, surgiu pela primeira vez no momento em que o Tribunal da Relação do Porto rejeitou o recurso do arguido, quanto à impugnação da matéria de facto.
7. Fê-lo no Douto Acórdão proferido a fls. dos autos principais.
8. Nessa sequência e de modo processualmente adequado o arguido, ora recorrente reclamou para a Conferência do Venerando Tribunal da Relação do Porto, aí esgrimindo as suas motivações, de facto e de direito, entre as quais suscitou a questão da constitucionalidade normativa.
Vejamos, então, parte da exposição do arguido [...]
c) Tal normativo [art.º 417.º, n.º 3 do CPP] surgiu na esteira de ampla jurisprudência constitucional, neste sentido vide Acórdãos nºs 43/99 e 417/99 do T.C., «Ora, uma interpretação normativa dos preceitos que regulam a motivação do recurso penal e as respectivas conclusões (art. ºs 412.° e 420.º do C.P.P.) de forma que faça derivar da prolixidade ou falta de concisão das conclusões um efeito cominatório, irremediavelmente preclusivo do recurso, que não permita um prévio convite ao aperfeiçoamento da deficiência detectada, constitui uma delimitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça.»
d) O Tribunal Constitucional considerou já inconstitucionais — por violação do disposto no art.º 32, n.º 1 da Constituição — os art.°s 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido da falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões (cfr. nesse sentido, os Acórdãos n.º s 193/97, 43/99, DR-II, de 29.03.99 e 417/99)
e) Entende assim o arguido que, analogicamente, visto também se tratar de questões formais, se devem aplicar os citados acórdãos, bem como o Acórdão n.º 529/03 do Tribunal Constitucional, ao caso sub judice e deste modo proceder-se ao convite ao aperfeiçoamento do vício detectado (no entender dos Senhores Juízes Conselheiros). [...]
9. Na verdade a questão aí suscitada e nos moldes em que foi exposta, pretendia obviamente colocar em causa a inconstitucionalidade da norma prevista no art.º 412° n.º 3 e 4 C.P.P por violação do disposto no art.º 34.º, n.º 1 e n.° 4 da Constituição da República Portuguesa, e colocou-a neste sentido vide as alíneas c), d) e e). [...]
12. Não se sindicou, ao contrário do que consta da Douta decisão sumária ora posta em crise, a constitucionalidade da decisão reclamada, isto é, não se pretende considerar inconstitucional uma determinada decisão judicial proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, mas sim a interpretação que esse mesmo tribunal fez de determinada norma.[...]
23. Entende assim o recorrente que face ao eventual vício detectado, ou seja, a não indicação expressa das passagens concretas da gravação das provas que impunham decisão diversa, (muito embora tal se encontre implícito em toda a motivação e conclusões do recurso do acórdão condenatório), o arguido deve sempre ser convidado a aperfeiçoar tal vício sob pena de ver as garantias do direito de defesa do recorrente diminuídas, na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo art.º 32°, n° 1 da Constituição.
24. Fazer-se uma interpretação contrária ao que supra se defende, implica a inconstitucionalidade da norma do art.º 412° n. ° 3 e 4 C.P.P do CPP, por tal estar em contradição com os direitos do arguido previstos no art.º 32 da CRP.
25. Na verdade, a atitude dos Senhores Juízes nos presentes autos, ao não ordenar o convite ao aperfeiçoamento, implica, salvo o devido respeito, uma ofensa das garantias de defesa dos arguidos e a violação dos artigos 18.°, n.° 2, 32°, n.° 1 e 8 e 34° n.° 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, não sendo inconstitucional a atitude dos juízes em si, mas antes a interpretação — inconstitucional, no entender do arguido da norma supra citada.
26. Assim em face de tudo o exposto, sempre com devido respeito, entende, respeitosa e humildemente o arguido, pelas razões especificadas e fundamentos supra referidos, que não poderá concordar com a decisão reclamada. [...]”
7. Notificado para responder, o Ministério Público reclamado sustentou que as afirmações constantes da “reclamação para a conferência de acórdão de conferência ou reclamação para o Senhor Presidente da Relação de acórdão proferido em conferência por essa Relação”, - designadamente a invocação da inconstitucionalidade -, “não podem ser levadas em consideração” e que “o Tribunal Constitucional, numa jurisprudência uniforme, tem entendido que a interpretação do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, segundo a qual o não cumprimento dos ónus ali fixados, quer na motivação, quer nas conclusões, leva à improcedência do recurso, nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências, não é inconstitucional (Acórdãos n.ºs 259/2002, 375/2006, 140/2004, 488/2004 e 342/2006) [...]”.
8. Atenta a questão suscitada pelo Ministério Público - utilização de meio processual inexistente para alegação do vício de inconstitucionalidade -, foi o reclamante notificado para responder, o que fez, afirmando que:
“[…] 4. Na verdade, tal peça processual não foi desentranhada dos autos, mantendo-se no processo.
5. E ainda que, como reclamação para a conferência, não tenha sido admitida, o certo é que, como requerimento que é, se mantém nos autos, devendo ser aproveitado para todos os devidos efeitos.
6. E se aí – como foi o caso – foi alegada a inconstitucionalidade de uma determinada norma, deverá tal arguição ser considerada válida e atempada.
7. Estamos em crer, sempre com o devido respeito, que, in casu, como em todos os processos em geral e particularmente naqueles em que está em causa a liberdade das pessoas, se deveria impor a apreciação da materialidade da questão suscitada, prevalecendo este sobre os princípios de natureza formal. […]”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
9. A decisão reclamada sustentou a impossibilidade de conhecimento do recurso por o recorrente não ter suscitado qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o Tribunal a quo, limitando-se a sindicar a própria decisão recorrida.
Ora, ainda que se admita que é relevante o afirmado pelo recorrente na reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação do Porto, há que confirmar tal juízo. Na verdade, a afirmação, entre outras, de que “a atitude dos Senhores Juízes nos presentes autos, ao não ordenar o convite ao aperfeiçoamento, implica, salvo o devido respeito, uma ofensa das garantias de defesa dos arguidos e a violação dos artigos 18º, n.º 2, 32º, n.º 1 e 8 e 34º, n.º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa”, é a demonstração de que foi a própria decisão judicial que foi questionada e não qualquer norma jurídica. E como o Tribunal tem reiteradamente afirmado, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal - artigos 280.º da Constituição e 70.º da Lei n.º 28/82. Sobre esta matéria, aliás, o reclamante nada de novo aduz que possa colocar em causa o fundamento da decisão ora reclamada, a qual, como tal, mantém inteira validade, conduzindo, necessariamente, à improcedência da presente reclamação.
10. Acresce que, ao contrário do que defende o reclamante, tem razão o Ministério Público quando sublinha que o vício de inconstitucionalidade foi alegado através da utilização de um meio processual inexistente. Na verdade, não existe nem é processualmente admissível uma “reclamação para a conferência de acórdão de conferência ou reclamação para o Senhor Presidente da Relação de acórdão proferido em conferência por essa Relação”. E o facto de tal peça não ter sido desentranhada dos autos não lhe confere, como é óbvio, o valor processual que a mesma não pode ter nem a torna processualmente admissível.
Ora, constando a invocação de inconstitucionalidade de peça processualmente inadmissível, não é a mesma relevante para efeitos de preenchimento do pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta consistente na “suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida”. O que sempre conduziria à decisão agora reclamada de não conhecimento do objecto do recurso e, consequentemente, à improcedência desta reclamação.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 29 de Março de 2011.- Gil Galvão – José Borges Soeiro – Rui Manuel Moura Ramos.