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Processo n.º 92/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. Contrariamente ao invocado pelo recorrente, verifica-se que este não suscitou, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada ao artigo 358.º do Código de Processo Penal.
Na motivação do recurso apresentado junto do Tribunal da Relação de Guimarães, e nas respectivas conclusões, o recorrente limitou-se a invocar a inconstitucionalidade da «interpretação que foi dada na douta sentença recorrida ao artigo 358.º do CPP, nos termos do aduzido supra em M1», mas no referido ponto “M1” da motivação do recurso, o recorrente não enuncia uma qualquer dimensão normativa daquela norma, alegadamente aplicada como ratio decidendi da decisão aí recorrida, para depois lhe imputar o vício de inconstitucionalidade. Nesse ponto “M1”, sob a epígrafe “questão prévia”, o recorrente apenas invoca, para sustentar a nulidade da decisão, que o tribunal recorrido “saiu da esfera e dos limites que necessariamente o artigo 358.º contém” e tece considerações várias sobre o regime da alteração substancial dos factos.
A não suscitação da questão de constitucionalidade obsta, só por si, ao conhecimento do objecto do recurso (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
3. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso. (…)»
2. Notificado da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…)1. Temos o maior respeito e admiração pelo Ilustre Mestre subscritor da decisão, Professor do maior Estatuto da Universidade Coimbra e com um curriculum académico e profissional invejável.
2. E, no caso concreto, cremos que a decisão proferida apenas o foi nesse sentido, porque não terá havido a compreensão da estruturação das motivações e conclusões do recurso apresentado pelo recorrente.
3. Com efeito, diz-se na douta decisão sumária em apreço, que nas motivações e alegações de recurso, não vem suscitada a questão da inconstitucionalidade, designadamente no ponto M1 da motivações do mesmo recurso.
4. Vejamos a estruturação contextualizante do recurso apresentado no Tribunal da Relação de Guimarães.
5. Logo no ponto seguinte ao referido Ml das alegações de recurso - ponto M2, diz-se (passa a citar-se) :-
« M2. A interpretação que foi dada na douta sentença recorrida ao artigo 358.º do CPP, nos termos do aduzido supra em Ml, que aqui se dá por reproduzido, afigura-se-nos de todo inconstitucional, por desconforme ao preceituado no artigo 32.º, n.º 1 e n.° 5 da Lei Fundamental, violando os princípios das garantias de defesa, do acusatório e do contraditório.
Citando Gomes Canotilho, Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, 2007, pgs. 522 e 523, «O princípio acusatório (n.° 5, 1ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial…
… Estrutura acusatória significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.
…A estrutura acusatória do processo penal implica...b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador».
Quanto à extensão processual do princípio do contraditório, dizem os mesmos autores, ob e loc cit, que «o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição (do arguido) e em especial audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar»….
Quanto às garantias de defesa, dizem tais ilustres constitucionalistas, ob cit, pg. 516, que «Em todas as garantias de defesa engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas ».
A violação do princípio constitucional do acusatório na douta sentença recorrida, dá- se quando o órgão acusador - que formulou a nova acusação, foi o mesmo que proferiu a sentença.
A violação dos princípios constitucionais do contraditório e das garantias de defesa, dá-se quando a sentença dá como provados factos que não foram investigados em sede de inquérito e de instrução, fases processuais em que, o arguido melhor estaria habilitado a apresentar a sua defesa e as suas provas, em razão do largo período de tempo em tais fases decorrem e a susceptibilidade da acusação ser aferida por um Juiz de instrução - controlador da acusação, fase esta que ficou postergada com os factos introduzidos ex novo na sentença — não se pode requerer a abertura de instrução quanto a tais factos.
A declaração da inconstitucionalidade tem como efeito a anulação da decisão recorrida e o reenvio do processo para novo julgamento.
6. Assim se vê que nas motivações de recurso, sempre com o maior dos respeitos por devido, foi devidamente suscitada a questão da inconstitucionalidade.
7. Por outro lado, mais o recorrente estruturou as suas conclusões nos termos seguintes :-
a) As conclusões IX, X e XVHI, reflectem a súmula do que vem aduzido em Ml, quando conclui (passa a citar-se) :-
IX. No início da audiência de 3 de Abril de 2009 o arguido, ora recorrente, apresentou a sua resposta à supra referida e alegada alteração não substancial dos factos, nos seguintes moldes, onde alegou, muito em síntese, que tal alegada alteração vê-se o arguido confrontado com uma acusação totalmente nova, muito mais complexa, onde a mera imputação do único facto imputado que impugnou «efectivamente recebido», vai substituída por imputações descritas em cerca de 30 linhas!!!
XX. Sucede que, o artigo 358.° do CPP e o conceito de alteração não substancial de factos, mesmo quando não envolva a imputação de crime diverso ou o agravamento da moldura penal, foi pensado para pequenas alterações, concretizações pontuais da acusação e não para reestruturar por inteiro o factualismo descrito na acusação.
XVIII. Nessa denominada alteração não substancial dos factos, o Tribunal a quo exorbitou dos seus poderes, saindo da esfera e dos limites que necessariamente O artigo 358.° do CPP contem, pelo que a douta sentença recorrida, ao acolher na íntegra como provados tais factos, é nula — cfr. o artigo 379.°, n.° 1, alínea b) do CPPenal , já que tais factos não podiam ter sido considerados na decisão final.
b) a conclusão seguinte XIX, é a condensação do ponto M2, das motivações, aliás, tanto assim o é, que transcreve o primeiro parágrafo desse mesmo ponto M2 das motivações de recurso, a saber :-
A interpretação que foi dada na douta sentença recorrida ao artigo 358.° do CPP, nos termos do aduzido supra em M1, que aqui se dá por reproduzido, é inconstitucional, por desconforme ao preceituado no artigo 32.°, n.° 1 e n.° 5 da Lei Fundamental, violando os princípios das garantias de defesa, do acusatório e do contraditório.
8. Assim, resulta que na conclusão XIX o recorrente apenas pretendeu a remissão para o alegado nas motivações de recurso em Ml, mas para efeitos e introdução da síntese CONCLUSIVA do ponto M2 — até porque, como antes se disse, a conclusão XVIII e anteriores eram elas próprias a síntese do dito Ml.
9. O que significa que nos termos da construção da sua estrutura de recurso, o recorrente arquitectou-o nos moldes seguinte:-
Assim, diz-se em resumo em M1:-
A dar-se uma resposta positiva à questão, que é a de saber «se o Juiz da causa, pode alterar de tal forma os factos da acusação ou, como é o caso, da decisão instrutória, que já não estamos perante a mesma acusação / decisão instrutória, mas uma acusação / decisão instrutória radicalmente diferente, com factos imputados ao arguido que ultrapassam completamente a estrutura acusatória inicial salvo o devido respeito, está-se a passar para o Juiz da causa, a posição que cabe estrutural e processualmente ao Ministério Público ou ao Juiz de Instrução, transmutando-se o Juiz da causa, ao mesmo tempo, em acusador e decisor.
O que ocorreu, in casu, onde sob a capa de uma alteração não substancial dos factos, se arquitecta uma acusação totalmente nova, com factos totalmente novos e com estrutura dotada de uma radical complexidade, que não existia na pronúncia.
Ou seja, enunciou em Ml uma dimensão normativa daquela norma do artigo 358.° do CPP, aplicada como «ratio decidendi da decisão aí recorrida» - passagem para o Juiz da causa, da posição que cabe estrutural e processualmente ao Ministério Público ou ao Juiz de Instrução, transmutando-se o Juiz da causa, ao mesmo tempo, em acusador e decisor, o que ocorreu, in casu, onde sob a capa de uma alteração não substancial dos factos, se arquitecta uma acusação totalmente nova, com factos totalmente novos e com estrutura dotada de uma radical complexidade, que não existia na pronúncia.
Para depois lhe imputar o vício da inconstitucionalidade, dizendo-se em M2, além do mais que :-
A violação do princípio constitucional do acusatório na douta sentença recorrida dá-se quando o órgão acusador — que formulou a nova acusação, foi o mesmo que proferiu a sentença.
Para concluir em XIX que, tal como aduzido em Ml, ou seja, que a tal «passagem para o Juiz da causa, da posição que cabe estrutural e processualmente ao Ministério Público ou ao Juiz de Instrução, transmutando-se o Juiz da causa, ao mesmo tempo, em acusador e decisor, o que ocorreu, in casu, onde sob a capa de uma alteração não substancial dos factos, se arquitecta uma acusação totalmente nova, com factos totalmente novos e com estrutura dotada de uma radical complexidade, que não existia na pronúncia é inconstitucional, por desconforme ao preceituado no artigo 32.º, n.° 1 e n.º 5 da Lei Fundamental, violando os princípios das garantias de defesa, do acusatório e do contraditório.
9. Ainda, porque, conforme consta do ponto Ml e da conclusão IX, com tal alegada alteração viu-se o arguido confrontado com uma acusação totalmente nova, muito mais complexa, onde de um único facto imputado, que impugnou, a expressão «efectivamente recebido», foi substituído por novas imputações descritas em cerca de 30 linhas!!!
Logo, alteração inconstitucional, por desconforme ao preceituado no artigo 32.°, n.° 1 e n.° 5 da Lei Fundamental, violando os princípios das garantias de defesa, do acusatório — Repete-se a feliz expressão do Prof. Canotilho supra citada, a propósito. A estrutura acusatória do processo penal implica… b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador», e do contraditório.
10. Sendo certo, estaremos de acordo, que um recurso, como qualquer articulado ou peça processual, tem de ser visto no seu todo e de forma integrada, sob pena de tautologias ou de repetições inúteis e extenuantes e que, o alegado em Ml contém em si mesmo e a ele se refere, ao documento do Sr. Juiz do processo de alteração substancial dos factos — descrito no ponto G das motivações de recurso, em confronto com o teor da acusação.
11. Parece-nos que, com estes esclarecimentos, ou, melhor, enquadramento, se nos afigura perceptível que a questão da constitucionalidade foi devidamente suscitada na motivação e conclusões do recurso apresentado pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
NESTES TERMOS E NOS MAIS QUE V. Exª.s sabiamente suprirão,
Requer que, em conferência, seja deferida a presente reclamação e seja decidido conhecer do objecto do recurso,
Seguindo-se os demais trâmites legais. (…)»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou resposta nos seguintes termos:
«1º
Pela Decisão Sumária nº 137/2011, não se conheceu do objecto do recurso porque durante o processo o recorrente não suscitara, de forma adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, relacionado com o artigo 358º do CPP.
2º
Sendo a decisão recorrida o Acórdão da Relação de Guimarães que negou provimento ao recurso interposto da sentença da 1ª. Instância que condenou o arguido na pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa, na sua execução, por igual período, o momento processual oportuno para suscitar a questão de constitucionalidade era a motivação do recurso para a Relação.
3.º
Ora, vendo tal peça processual – quer o texto quer as conclusões – constata-se que ali não vem enunciada qualquer questão de natureza normativa.
4.º
Por ter sido dado provimento a um anterior recurso, o tribunal de 1ª instância ouviu as duas testemunhas indicadas pelo recorrente, na sequência da comunicação de alteração não substancial dos factos que o tribunal anteriormente lhe fizera.
5.º
Ora, o que o recorrente contesta é o tribunal ter considerado que se estava perante uma alteração não substancial dos factos (artigo 358º do CPP).
6.º
Segundo ele, as circunstâncias concretas que se verificavam - e que descreve - não podiam levar a concluir-se que se estava perante uma alteração não substancial, sendo inconstitucional (violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição), considerar o contrário, como ocorrera na sentença condenatória.
7.º
Aliás, nesta fase do processo, continua sem se saber que dimensão normativa o recorrente pretende ver apreciada, uma vez que não a identificou, nem na motivação do recurso para a Relação (como vimos), nem no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, nem sequer na reclamação da douta Decisão Sumária.
8.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento no incumprimento, pelo recorrente, do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido.
Para contrariar esta conclusão, o reclamante vem invocar o alegado no ponto M2. das alegações que apresentou junto do tribunal recorrido, bem como o teor das respectivas conclusões IX, X e XVIII.
Contudo, em nenhum dos citados pontos (ou na parte remanescente) o reclamante enunciou uma dimensão normativa do artigo 358.º do Código de Processo Penal para depois lhe imputar o vício de inconstitucionalidade. Como salienta o Ministério Público, o que o reclamante reputa inconstitucional (por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição) é a conclusão a que o tribunal recorrido chegou, no sentido de se estar perante uma alteração não substancial dos factos.
Como é sabido, o recurso de constitucionalidade tem natureza estritamente normativa, não podendo o Tribunal Constitucional sindicar a bondade da decisão recorrida, em si mesma considerada.
Deve, por isso, manter-se na íntegra a decisão reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.