Imprimir acórdão
Processo n.º 838/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal Central Administrativo Norte, em que é recorrente A. e recorrida a Caixa Geral de Aposentações, o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, quanto à primeira questão colocada, e de improcedência manifesta da segunda questão, com os seguintes fundamentos:
«(…)2. A recorrente interpôs o presente recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da constitucionalidade de duas dimensões normativas da norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 169/85, de 20 de Maio:
i) quando interpretada no sentido de que o tempo de serviço só poderá ser certificado com base em documento autenticado pelo respectivo estabelecimento de ensino;
ii) quando interpretada no sentido de prever requisitos cumulativos da certificação do tempo de serviço.
3. Não estão reunidos os pressupostos necessários ao conhecimento do objecto do recurso relativamente à primeira dimensão normativa da supra citada norma.
Na realidade, o tribunal recorrido não adoptou uma tal interpretação daquela norma, com o sentido que a recorrente reputa inconstitucional. Como expressamente esclarece o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, «aqui nunca se referiu que o tempo de serviço, no caso concreto, apenas poderia ser provado exclusivamente por documento autêntico» (cfr. fls. 200 dos autos). O que foi decisivo para fundamentar a decisão, foi que os testemunhos que a recorrente apresentou como prova foram «genéricos e abstractos, não preenchendo os requisitos que supra se mencionaram», ou seja, a «certificação do tempo de serviço prestado, com discriminação das circunstâncias em que o mesmo foi desempenhado, nomeadamente, o número de horas lectivas semanais, faltas e licenças especificadas e os vencimentos sucessivamente auferidos» (fls. 199/200 e 198 dos autos).
É o que se retira, com clareza, do seguinte trecho do acórdão:
«Deste modo, ainda que se relevassem como meio de prova as declarações constantes de fls. 28 a 34 dos autos (5 pessoas que declaram que a recorrente desempenhou funções lectivas no período de tempo em causa no ensino particular em Luanda), ainda assim, não lograram especificar os elementos exigidos na alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º do DL 169/85, de 20 de Maio» (fls. 198 dos autos). Isto é, o tribunal recorrido não rejeita a relevância da prova testemunhal, contrariamente ao que vem alegado. Apenas não toma posição quanto à questão, por, in casu, a prova prestada não ter fornecido informações bastantes quanto aos requisitos legalmente exigidos, o que foi “decisivo” para fundamentar a decisão.
Não pode, assim, conhecer-se do objecto do recurso, nesta parte.
4. A segunda questão que a recorrente pretende ver apreciada é a da inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 169/85, de 20 de Maio, quando interpretada no sentido de prever requisitos cumulativos da certificação do tempo de serviço.
No entender da recorrente uma tal interpretação daquela norma é inconstitucional, uma vez que estes requisitos «não são impostos pela prossecução de interesses legal ou constitucionalmente relevantes (nomeadamente para efeitos de cálculo da pensão de aposentação)». Mais invoca que esta interpretação viola o direito à tutela jurisdicional efectiva e o princípio da proporcionalidade (artigos 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição), na medida em que afecta a efectividade do “direito de ver relevar, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, todo o tempo de trabalho, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado», constitucionalmente consagrado no artigo 63.º, n.º 4, da Constituição, e que comunga da «fundamentalidade do direito à segurança social».
Pelas razões a seguir aduzidas, o recurso apresenta-se, nesta parte, como manifestamente infundado, o que justifica a prolação de decisão sumária, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
O artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 169/85 prevê que compete à “Direcção-Geral do Ensino Particular e Cooperativo” ou ao “competente serviço do respectivo ministério”:
«b) Certificar ainda, através dos elementos que lhe deverão ser fornecidos em documento autenticado pelo respectivo estabelecimento de ensino, o tempo de serviço prestado, com discriminação das circunstâncias em que o mesmo foi desempenhado, nomeadamente o número de horas lectivas semanais, faltas e licenças especificadas, os vencimentos sucessivamente auferidos e, quando for caso disso, o requisito a que se referem as alíneas a) e b) do artigo anterior.»
O acórdão recorrido entendeu que a sentença da 1.ª instância sob recurso, «andou bem ao julgar não verificado, no caso concreto, o requisito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º do DL 169/85, de 20 de Maio, pois não consta dos autos nem do PA que a entidade competente para o efeito tivesse certificado o tempo de serviço prestado, com discriminação das circunstâncias em que o mesmo foi desempenhado, nomeadamente o número de horas lectivas semanais, faltas e licenças especificadas e os vencimentos sucessivamente auferidos» (fls. 198 dos autos). Afirma-se, mais à frente que os elementos exigidos no citado artigo 3.º são «inquestionavelmente de verificação cumulativa» e que «inexiste qualquer inconstitucionalidade na interpretação desta norma, pois estes elementos são relevantes para efeitos de contagem de tempo de serviço para efeitos de aposentação, como aliás não podia deixar de ser e por isso, também, a recorrente pretende obter por via desta acção, o direito a ser-lhe reconhecido que trabalhou durante aquele período de tempo; de facto se isso fosse irrelevante, esta acção não faria qualquer sentido.» Conclui-se, por fim, que «não se restringem os meios de prova ao dispor da recorrente para fazer prova daqueles requisitos, designadamente não se limita essa prova a uma prova difícil ou impossível, pois, como já foi referido no citado Acórdão do TCA Sul, bastaria demonstrar não ser possível apresentar uma certidão emitida pelos competentes Serviços de Educação Angolanos, devidamente reconhecida pelas autoridades consulares portuguesas ou, então, apresentar testemunhas credíveis com conhecimento destes requisitos.»
De facto, a questão de constitucionalidade colocada pela recorrente é manifestamente improcedente, como resulta dos pretensos fundamentos de inconstitucionalidade avançados no requerimento de interposição do recurso.
Não tem qualquer cabimento a invocação de que os elementos exigidos na norma em apreço são legal e constitucionalmente “irrelevantes” ou, pelo menos, não são “impostos pela prossecução do interesse público”. Pelo contrário, são precisamente razões de interesse público que justificam a obrigatoriedade de comprovar “circunstanciadamente” o “tempo de serviço prestado”, sendo evidente que os elementos referidos na norma em causa apresentam uma conexão óbvia e necessária com a pretendida aposentação e a contagem do tempo de serviço que lhe está subjacente. Sendo assim, atribuindo expressamente o artigo 63.º, n.º 4, da CRP competência à lei para regulação do cálculo de “todo o tempo de trabalho”, para efeito da pensão de velhice (o que, naturalmente, implica a fixação do modo de comprovação do tempo de serviço), não se mostra que o legislador tenha exercitado essa competência em termos arbitrários ou carecidos de razoabilidade, pelo que não resulta afectada a garantia de aproveitamento total do tempo de trabalho.
É igualmente desprovida de sentido a invocação, aliás vaga e meramente conclusiva, de que a norma assim interpretada viola o direito à tutela jurisdicional efectiva e o princípio da proporcionalidade (artigos 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição). Por um lado, é manifesto que não está em causa o direito à tutela jurisdicional efectiva, uma vez que não foi negado à recorrente – nem por ela tal foi invocado – o acesso à justiça ou aos tribunais administrativos nem quaisquer direitos processuais que lhe assistam. Por outro lado, não se vislumbra em que medida os elementos exigidos na norma em questão podem contender com o princípio da proporcionalidade, sendo certo que a própria recorrente não é capaz de consubstanciar minimamente uma tal alegação genérica.
Em suma, é de concluir pela manifesta improcedência do presente recurso.
5. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso quanto à norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 169/85, de 20 de Maio, quando interpretada no sentido de que o tempo de serviço só poderá ser certificado com base em documento autenticado pelo respectivo estabelecimento de ensino, por tal dimensão normativa não ter sido adoptada pelo acórdão recorrido;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 169/85, de 20 de Maio, quando interpretada no sentido de prever requisitos cumulativos da certificação do tempo de serviço; e, consequentemente, negar provimento ao recurso nesta parte. (…)»
2. Notificada da decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) 1.- O Ex.mo Juiz Conselheiro Relator, quanto à segunda questão que a Recorrente pretendia ver apreciada - inconstitucionalidade da norma do artigo 3.°/2/b) do DL 169/85 de 20 de Maio -, considerou o recurso manifestamente infundado.
2.- Salvo o devido respeito, a Recorrente não concorda com esta parte da decisão.
3.- O art. 78.°A/1 da CTC permite que o Relator aprecie o mérito da questão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por ser manifestamente infundada.
4.- Esta norma tem paralelismo com o disposto no art.º 705.° do CPC que igualmente permite a intervenção individual do Relator sobre o mérito do recurso. Comentando esta norma afirma ANTÓNIO GERALDES: “Independentemente do grau de complexidade da questão, pode justificar-se a opção pela decisão individual quando se verifique, pelo modo como foi colocada ou pela envolvente factual em que se sustenta que o recurso é manifestamente infundado. Nestes casos, o uso daquela opção está ligada à consistência do próprio recurso, visível não apenas através da motivação e das conclusões, como ainda do confronto que objectivamente se estabeleça entre a pretensão do Recorrente e a resposta do ordenamento jurídico.
Para o efeito, pode encontrar-se um certo paralelismo no modo como se encontra regulado o despacho de indeferimento liminar da petição, nos termos do art.º 234.° A, n.° 1, apontado para os casos em que o pedido se apresente manifestamente improcedente, seguindo o juiz um critério de natureza objectiva que faça prevalecer, sobre a sua percepção individual, a via que apontar a doutrina e a jurisprudência” (in “Recursos em Processo Civil Novo Regime”. Almedina, 2007, sublinhado nosso).
5.- A propósito do art.º 234.° A, n.° 1 do CPC escreveu LEBRE DE FREITAS: “O preenchimento da segunda categoria faz-se casuisticamente, havendo que apurar, em função do pedido e dos seus fundamentos de facto e de direito, se ele é “manifestamente improcedente”.
Sê-lo-á seguramente nos casos de caducidade de conhecimento oficioso do direito que se pretende fazer valer, bem como quando não possa haver dúvidas sobre a inexistência dos factos que o constituiriam ou sobre a existência, revelada pelo próprio Autor, de factos impeditivos ou extintivos desse direito”.
(in CPC,anotado)
6.- Entendemos que a doutrina supra referida que deverá ser aplicada à interpretação da norma do art.º 78.° A, n.° 1 da LTC, MAS com as devidas cautelas. É que no recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, quando é proferida decisão sumária, o Recorrente ainda não apresentou alegações. Ou seja, ainda não teve oportunidade de defender os fundamentos de facto e de direito que justificam o seu pedido de inconstitucionalidade.
7.- Entendemos também que a “manifesta improcedência” não pode derivar de percepção individual e subjectiva do relator, mas tem que derivar objectivamente da resposta do ordenamento jurídico (a via apontada pela doutrina e pela jurisprudência).
8.- Ora, no caso subjudice, o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator seguiu para justificar a manifesta improcedência do recurso um critério manifestamente subjectivo e individual (e não alicerçado na resposta do ordenamento jurídico sobre a questão de inconstitucionalidade colocada pela Recorrente. De facto …
9.- A Recorrente no recurso jurisdicional interposto para o TCA-Norte alegou o seguinte:
“Destas declarações decorre:
- que a Recorrente exerceu as funções docentes nos anos lectivos de 1973/1974 e 1974/1975;
- que a Recorrente exercia estas funções a tempo inteiro;
- que a Recorrente nunca faltou ao serviço;
- que a Recorrente recebia remuneração idêntica à dos demais professores que leccionavam, à época, no ensino particular em Luanda;
- que tal serviço docente não era acumulado com a função pública.
O acórdão entende que daqui não decorre o número de horas semanais prestadas pela Recorrente as faltas e licenças especificadas e os vencimentos auferidos.
Seria quase impossível demonstrar estes pormenores através de testemunhas, nem a lei o exige.
Mas a ora Recorrente conseguiu demonstrar essencial: o período de exercício das funções como docente.
Quanto às restantes condições previstas na alínea b) do n.° 2, do art.º 3.º do DL 169/85,
A que se refere o douto julgador a quo (número de horas lectivas semanais, faltas e licenças especificadas e dos vencimentos sucessivamente auferidos) estas nem sempre são pressupostos para a contagem do tempo de serviço para efeitos de aposentação.
O que esta norma legal exige é que seja certificado o tempo de serviço prestado, com discriminação das circunstâncias em que o mesmo foi desempenhado, NOMEADAMENTE o número de horas lectivas semanais, faltas e licenças especificadas e os vencimentos sucessivamente auferidos.
A expressão NOMEADAMENTE remete para uma exemplificação ou enumeração exemplificativa e não para a imposição de pressupostos cumulativos.
Para além deste elemento literal, para a correcta interpretação desta norma, importa atender que a certificação do tempo de serviço destina-se a aposentação.
Ou seja, na certificação do tempo de serviço deverão ser descriminadas as circunstâncias em que o serviço foi desempenhado necessárias à determinação da pensão de aposentação.
No caso em apreço, é totalmente irrelevante para a determinação da pensão de aposentação da Recorrente determinar o número de horas semanais, faltas e licenças especificadas e os vencimentos sucessivamente auferidos.
Pois a Autora foi aposentada pelo último cargo em que esteve inscrita na caixa (art.º 44.º do Estatuto da Aposentação) e tendo sido considerada a sua situação existente em 21/6/2006 (art.º 43.° do Estatuto da Aposentação) cfr. acto impugnado, documento n.° 3 junto com a petição inicial.
Para o cálculo da pensão de aposentação da Recorrente apenas foi considerado o último ordenado mensal do serviço (art.º 53.° do Estatuto da Aposentação).
A interpretação desta norma (alínea b) do n.° 2, do art.º 3.° do DL 169/85) como contendo requisitos cumulativos da certificação do tempo de serviço é inconstitucional por que estes requisitos não são impostos pela prossecução de interesses legal ou constitucionalmente relevantes (nomeadamente para efeitos de cálculo da pensão de aposentação). Esta interpretação afecta desproporcionadamente a efectividade da tutela jurisdicional de um direito constitucionalmente consagrado — o de ver relevar, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, todo o tempo de trabalho, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado (artigo 63.°, n.° 4, da CRP) -, que comunga da fundamentalidade do direito à segurança social, o que viola o direito à tutela jurisdicional efectiva e o princípio da proporcionalidade (arts. 20.°/1, 268.°/4 e 18.°/2 CRP).
Acresce que, dispõe o art. 6° do mesmo diploma legal que sendo impossível determinar o horário lectivo semanal distribuído, considera-se que o serviço foi prestado em regime de horário incompleto. Estando demonstrado que não é condição da certificação do tempo de serviço uma das condições referidas no acórdão: o número de horas semanais.”
10.- O Acórdão recorrido (conforme consta da decisão sumária) entendeu que a sentença da 1.ª instância sob recurso, «andou bem ao julgar não verificado, no caso concreto, o requisito previsto na alínea b) do n.°2 do artigo 3.° do DL 169/85, de 20 de Maio, pois não consta dos autos nem do PA que a entidade competente para o efeito tivesse certificado o tempo de serviço prestado, com discriminação das circunstâncias em que o mesmo foi desempenhado, nomeadamente o número de horas lectivas semanais, faltas e licenças especificadas e os vencimentos sucessivamente auferidos» (fls. 198 do autos). Afirma-se também que os elementos exigidos no citado artigo 3.° são «inquestionavelmente de verificação cumulativa» e que «inexiste qualquer inconstitucionalidade na interpretação desta norma, pois estes elementos são relevantes para efeitos de contagem de tempo de serviço para efeitos de aposentação, como aliás não podia deixar de ser e por isso, também, a recorrente pretende obter por via desta acção, o direito a ser-lhe reconhecido que trabalhou durante aquele período de tempo; de facto se isso fosse irrelevante, esta acção não faria qualquer sentido». Conclui-se que «não se restringem os meios de prova ao dispor da recorrente para fazer prova daqueles requisitos, designadamente não se limita essa prova a uma prova difícil ou impossível, pois, como já foi referido no citado Acórdão do TCA Sul, bastaria demonstrar não ser possível apresentar uma certidão emitida pelos competentes Serviços de Educação Angolanos, devidamente reconhecida pelas autoridades consulares portuguesas ou, então, apresentar testemunhas credíveis com conhecimento destes requisitos.»
11.- A invocação de que os elementos exigidos na norma em apreço são legal e constitucionalmente irrelevante e não são impostos pela prossecução do interesse público não é destituída de cabimento. Se o número de horas semanais, as faltas e licenças e os vencimentos auferidos do período em questão não são determinantes para a pensão de aposentação (pois a Recorrente foi aposentada pelo último cargo em que esteve inscrita e tendo sido considerada a sua situação existente em 21/6/2006) é óbvio que a exigência de prova destes requisitos não apresentam uma conexão com a aposentação e contagem do tempo de serviço.
12.- Pelo que a regulação do cálculo de “todo o tempo de trabalho” (art.º 63.°/4) pelo legislador é feita em termos arbitrários e desproporcionados. Ou seja, as exigências da norma do art.º 3°/2/b9 do DL 169/85 não são impostas pela necessidade de prossecução de interesses constitucionalmente relevantes e afectam desproporcionadamente a efectividade do direito da Recorrente de ver relevar para o cálculo da sua pensão de velhice todo o seu tempo de trabalho.
13.- É neste sentido que a Recorrente defendeu a violação do princípio da proporcionalidade e do art. 63.°/4.
14.- Quanto à violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, a Recorrente entende que esta tutela abrange o direito de prova do direito invocado em tribunal.
15.- Se, apesar de se entender que a Requerente podia provar a sua pretensão por prova testemunha, se limita impossível é também óbvio que o seu acesso à justiça fica também limitado.
16.- Quem é a pessoa que, decorridos mais de 30 anos, sabe depor sobre o número de horas semanais prestadas pela Recorrente, as faltas e licenças especificadas e os vencimentos auferidos-
Nem a Recorrente o consegue fazer.
17.- Se para o reconhecimento da pretensão da Recorrente se lhe impõe uma prova impossível é óbvio que o seu acesso ao direito fica suprimido (mais do que limitado).
Nestes termos deverá a presente reclamação ser julgada procedente seguindo os autos para alegações. (…)»
3. A recorrida Caixa Geral de Aposentações não contra-alegou.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A presente reclamação tem por objecto apenas a segunda parte da decisão sumária, na qual foi apreciada, e julgada manifestamente improcedente, a alegada inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 169/85, de 20 de Maio, quando interpretada no sentido de prever requisitos cumulativos da certificação do tempo de serviço.
Invoca a reclamante que a Decisão Sumária reclamada, na parte em que julgou o recurso manifestamente improcedente, seguiu «um critério manifestamente subjectivo e individual» e «não alicerçado na resposta do ordenamento jurídico sobre a questão de inconstitucionalidade» colocada pela ora reclamante.
Para fundamentar esta sua conclusão, a reclamante começa por sustentar que a norma do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, ao abrigo da qual foi apreciada a manifesta improcedência do recurso, nesta parte, deve ser interpretada com “as devidas cautelas” porque, ao contrário do que sucede no processo civil, no recurso de constitucionalidade a decisão sumária é proferida quando o recorrente ainda não apresentou alegações, ou seja, quando «ainda não teve oportunidade de defender os fundamentos de facto e de direito que justificam o seu pedido de inconstitucionalidade».
Depois, a reclamante discorre sobre as suas alegações junto do tribunal recorrido e sobre o julgamento deste (n.ºs 9. e 10. da reclamação). Resulta do respectivo teor que as questões aí discutidas o são numa perspectiva essencialmente infraconstitucional e, portanto, irrelevante para a presente decisão.
Continua a reclamante reafirmando a sua convicção de que a «invocação de que os elementos exigidos na norma em apreço são legal e constitucionalmente irrelevantes e não são impostos pela prossecução do interesse público». Diz que a norma viola o princípio da proporcionalidade e o artigo 63.º, n.º 4, da Constituição, porque «o número de horas semanais, as faltas e licenças e os vencimentos auferidos do período em questão não são determinantes para a pensão de aposentação» (foi aposentada pelo último cargo em que esteve inscrita) e, como tal, «a exigência de prova destes requisitos não apresenta uma conexão com a aposentação e contagem do tempo de serviço», sendo a regulação do cálculo de “todo o tempo de trabalho” (artigo 63.º, n.º 4, da CRP) feita, pelo legislador, em termos arbitrários e desproporcionados (n.ºs 11 a 13 da reclamação). Mais afirma que a norma viola o direito à tutela jurisdicional efectiva, o qual, segundo a reclamante, abrange «o direito de prova do direito invocado em tribunal» e que, no caso, se impôs à reclamante uma “prova impossível”, assim se suprimindo o seu acesso ao direito (n.ºs 14 a 17 da reclamação).
5. Cumpre começar por salientar que a decisão sumária do relator, prevista no artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC, é sempre e necessariamente uma decisão prévia à apresentação de alegações pelas partes. Como se lê no Acórdão n.º 656/2009: «(…) é inerente à possibilidade de decisão do recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 78.º-A da LTC a supressão da faculdade de produzir alegações. A decisão sumária do relator destina-se a por termo a recursos que, por falta dos respectivos pressupostos, ou por ser evidente o sentido decisório não justificam o processamento normal. O interessado não está impedido de apresentar as razões pelas quais sustenta a inconstitucionalidade. Efectivamente, uma das funções do ónus de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal da causa é também a de mostrar que não é manifestamente infundado questionar a validade da norma.»
A questão colocada na presente reclamação reconduz-se essencialmente a saber qual o critério que deve orientar o julgador para decidir se a questão sob recurso é, ou não, “manifestamente infundada”, de forma a preencher uma das previsões em que, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A, pode haver lugar a decisão sumária do relator.
Concretizando aquele conceito indeterminado, lê-se, por exemplo, no Acórdão n.º 656/2009 que «o artigo 78.º-A da LTC permite que o relator profira “decisão sumária”, isto é, com a fundamentação reduzida ao essencial. É um mecanismo de descongestionamento e racionalização do funcionamento da justiça constitucional, perante recursos de constitucionalidade repetitivos, que não satisfazem os pressupostos ou requisitos formais ou que se mostram destituídos de viabilidade, face aos termos em que a questão foi discutida, aos parâmetros que o requerente indica e àqueles outros que o Tribunal antecipe como razoavelmente susceptíveis de serem convocados.»
No âmbito desta 2.ª Secção, designadamente, nos Acórdãos n.ºs 484/2008 e 389/2010, seguiu-se a orientação fixada no Acórdão n.º 501/94, onde se refere o seguinte:
«9. Neste domínio é fundamental concretizar critérios de aferição do que seja um 'recurso manifestamente infundado' para delimitar tal conceito.
É desde logo evidente que não se pode, em sede de reclamação, antecipar a apreciação do mérito do recurso, procedendo a uma análise circunstanciada dos seus fundamentos. Não constitui objecto da reclamação avaliar a atendibilidade dos fundamentos do recurso, mas apenas apreciar a verificação das condições de admissibilidade do recurso. Em regra, tais condições possuem natureza formal, embora uma delas, concretamente a que ora nos interessa - ou seja, a de o recurso não ser 'manifestamente infundado' -, tenha uma irrecusável componente substantiva, na medida em que impõe uma certa avaliação dos fundamentos do recurso.
Porém, esta avaliação não pode ser idêntica à que teria lugar no julgamento do próprio recurso. Não é por entender que os fundamentos do recurso improcedem que o julgador pode, logo na apreciação da reclamação, considerar o recurso 'manifestamente infundado': por isso, a lei não se basta com que o recurso seja 'infundado', para determinar a não admissão do recurso e o subsequente indeferimento da reclamação, mas exige que o recurso seja 'manifestamente infundado'. Isto significa que o recurso só pode ser indeferido e a reclamação desatendida se uma avaliação sumária dos seus fundamentos permitir concluir, inequivocamente, pela sua inatendibilidade.
Se o julgador, no âmbito da reclamação, tiver de desenvolver uma actividade cognitiva e argumentativa semelhante à que utilizaria em sede de recurso para poder concluir pela inatendibilidade dos respectivos fundamentos, tal indiciará que não estamos perante um 'recurso manifestamente infundado' - e, por conseguinte, será de deferir a reclamação e determinar a subida do recurso, ainda que, a final, venha a ser-lhe negado provimento.
10. No Acórdão nº 269/94, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 18/6/94, o Tribunal Constitucional abordou o conceito de 'recurso manifestamente infundado' e concluiu que ele visa impedir que o recurso de constitucionalidade sirva fins dilatórios: a questão de inconstitucionalidade só deve subir ao Tribunal Constitucional quando apareça, prima facie, dotada de uma certa atendibilidade.
A finalidade deste pressuposto de admissibilidade do recurso é, sem dúvida, evitar recursos inúteis, com efeitos meramente dilatórios. Porém, tendo em atenção as considerações anteriormente expendidas, ele não pode ser utilizado para obstar à subida de recursos cuja atendibilidade seja duvidosa, sob pena de subversão das finalidades e características do meio processual 'reclamação', que não pode substituir o meio processual 'recurso' (com diferentes prazos e garantias para as partes). Com efeito, é este último o meio próprio para a avaliação ponderada da atendibilidade dos fundamentos do recurso.
Resulta do exposto que o conceito de 'recurso manifestamente infundado' deve ser delimitado negativamente, como, aliás, decorre da própria formulação legal do conceito.
Assim, é 'manifestamente infundado' o recurso cuja inatendibilidade seja liminarmente evidente ou ostensiva.
Isto significa que não há que averiguar se o recurso procede, nem se exige um determinado grau de probabilidade dessa procedência - caso em que se estaria a entrar, profundamente, na apreciação do respectivo mérito. O que o legislador exige é que se verifique, tão-só, se os fundamentos do recurso são notoriamente inatendíveis.
Daqui decorre que o recurso será, por exemplo, 'manifestamente infundado' quando nele falte qualquer fundamentação (ou seja, não se apresente - nem se vislumbre - argumentação no sentido da alegada inconstitucionalidade) ou quando a fundamentação revele contradições insanáveis de ordem lógica ou valorativa. Nestes casos, uma simples análise sumária ou liminar do requerimento de recurso basta para concluir pelo carácter 'manifestamente infundado' do recurso, sem necessidade de uma apreciação circunstanciada dos fundamentos, ou seja, sem entrar na apreciação do fundo do recurso que é reservada para um momento processual ulterior.»
Como se resumiu no citado Acórdão n.º 389/2010, o entendimento do Tribunal Constitucional tem sido no sentido de que «o referido juízo liminar não pode fundar-se numa averiguação tendente a apurar da procedência do recurso ou mesmo do grau de probabilidade dessa procedência, mas apenas na verificação sobre se os fundamentos do recurso são – de um ponto de vista jurídico-constitucional – manifestamente inatendíveis.»
Tendo em atenção esta delimitação do conceito de “manifestamente infundado”, importa verificar se o recurso interposto pela ora reclamante pode, ou não, ser considerado, ostensiva ou evidentemente, inatendível.
Conclui-se que sim.
Note-se que a decisão sumária reclamada fundou o juízo emitido de manifesta falta de cabimento e de pertinência dos argumentos invocados pela recorrente como pretensos fundamentos de inconstitucionalidade essencialmente na sua contradição com o teor do pedido. Na realidade, dos pontos de vista lógico e valorativo, é incoerente formular uma pretensão de consideração de um certo período de actividade lectiva para o cálculo da pensão a auferir e, ao mesmo tempo, sustentar a irrelevância dos elementos que, dando configuração concreta ao serviço prestado nesse período, influem nesse cálculo.
Como já se salientava no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, a argumentação da recorrente contém uma contradição insanável, pois ao mesmo tempo que pretende obter, por via da acção administrativa especial que interpôs, o reconhecimento de que trabalhou durante determinado período de tempo no ensino particular em Angola, a reclamante pretende também que seja julgada inconstitucional uma das normas que prevê os elementos relevantes para contagem desse tempo de serviço para efeitos de aposentação. A constatação dessa contradição, numa análise sumária e liminar, tornou desnecessária uma mais circunstanciada averiguação de fundo quanto ao mérito do recurso, em face dos parâmetros constitucionais invocados.
Cumpre ainda salientar que na presente reclamação a reclamante nada acrescenta de novo em relação a tais fundamentos. Mesmo na parte em que procura concretizar a alegada violação do princípio da proporcionalidade (que se limitara a enunciar genericamente no requerimento de interposição do recurso), a reclamante cai em nova incoerência ao invocar que há violação do artigo 63.º, n.º 4, da Constituição, porque «o número de horas semanais, as faltas e licenças e os vencimentos auferidos do período em questão não são determinantes para a pensão de aposentação», acrescentando que «foi aposentada pelo último cargo em que esteve inscrita». Se tais elementos fossem irrelevantes, perderia sentido a acção administrativa especial da qual emerge o presente recurso de constitucionalidade.
Conclui-se, assim, que o recurso pretendido interpor pela reclamante é, nesta parte, manifestamente infundado, na medida em que a questão de constitucionalidade colocada é inviável.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.