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Processo n.º 178/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
Não tendo tal recurso sido admitido pelo tribunal a quo, apresentou a presente reclamação.
2. O reclamante foi condenado, por decisão transitada em julgado, numa pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, sob condição de pagar uma quantia monetária ao assistente e demandante cível, no prazo de um ano.
A pretensão que deduziu, no sentido da prorrogação do prazo de cumprimento da condição, foi indeferida, por decisão confirmada, em recurso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Inconformado, o reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que não foi admitido, por despacho de 18 de Novembro de 2010, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP).
Tal decisão foi objecto de reclamação, ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Penal.
A reclamação foi indeferida, por decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, datada de 17 de Janeiro de 2011.
Desta decisão, o reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional.
Por decisão datada de 9 de Fevereiro de 2011, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso, aduzindo a seguinte argumentação:
“O recorrente A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da LTC, para que seja apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.
Acontece que esta norma não foi aplicada no despacho que conheceu da rec1amação de fls. 42 e segs.
Esta decisão fundamentou a inadmissibilidade do recurso para o STJ, na alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.
Assim sendo, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por a norma do art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, não ter sido aplicada na decisão impugnada, o que inviabiliza qualquer julgamento por parte do TC, porquanto os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental, só podendo o Tribunal Constitucional conhecer de uma questão de constitucionalidade quando exerça influência no julgamento da causa.”
3. O reclamante apresentou, então, a presente reclamação, com os seguintes fundamentos:
“Vem o presente recurso inadmitido com o fundamento de que a norma arguida de inconstitucionalidade, a da alínea f) do n.º 1 do art.º 400.° do Código de Processo Penal, não foi a aplicada na decisão sindicada mas sim a da alínea c) do mesmo normativo legal, facto que impede o seu conhecimento por este Tribunal por não exercer influência no julgamento da causa.
Ora, uma tal decisão enferma, salvo o devido respeito, que muito é, de uma grave deficiência de leitura e percepção dos termos do recurso onde se evidencia a § 1.°: 'Para apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no art.º 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, - devidamente conjugado com as normas dos seus n.ºs 2 e 3 e todas as mais do edifício jurídico-penal nacional, para além do que está estabelecido nas convenções internacionais sobre direitos humanos ratificadas pelo Estado Português - na interpretação que lhe foi dada no douto despacho de fls. 1502, ainda que insuficientemente expressa e fundamentada, de que “(…) sendo a pena em causa nos autos de três anos de prisão, o recurso que se pretende interpor com o requerimento de fls. 1484 e ss. não é admissível nos termos do disposto no art.º 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal(…)'
Esta a vexata quaestio colocada no texto recursivo rejeitado e que tinha expressão na reclamação para o Ex.mo Senhor Doutor Juiz Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que a antecedia, sendo o seu fundamento por ser a norma dessa alínea f) a que foi expressamente indicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no seu despacho de fls. 1502.
Sendo inócuo que o STJ tenha também invocado a regra da alínea c) para alterar o raciocínio que sustentava o recurso apresentado.
De resto também o Recorrente veio a invocar expressamente as normas dos n.ºs 2 e 3 do mesmo art.º 400.° da lei adjectiva penal, para além do direito internacional aplicável, como se alcança facilmente da simples leitura do texto transcrito supra.
Clarividente fica que o Recorrente se reportou à norma invocada pelo Tribunal da Relação de Lisboa quando não admitiu o seu recurso para o Supremo e só a ela se podia reportar por ter sido ela a aplicada em concreto, logo produzindo os efeitos próprios de fundamentação de direito.
Tudo o mais decidido subsequentemente é mera interpretação de um mesmo normativo, o do art.º 400.°, que, no seu conjunto, concomitância e complementaridade elenca as causas de inadmissibilidade de um recurso do tipo do apresentado pelo Recorrente, ora Reclamante, que se ateve no processado por si impulsionado à regra imposta pelo despacho a que se reportava em reclamação sindicante
Nada obstando, pois, na modesta perspectiva do Reclamante, à admissão e apreciação do mérito do presente recurso, sob pena de, em concretização de summum jus, suma injuria, se estar violando direitos fundamentais de plena defesa do arguido, de acesso ao direito e aos tribunais e de recurso, reconhecidos ao cidadão português, segundo os tratados e convenções internacionais ratificados pelo Estado Português, mormente os art.ºs 6.°, n.º 1, 13.° e 14.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o que requer, para todos os efeitos legais.”
O Ministério Público, no Tribunal Constitucional, defendeu o indeferimento da reclamação, porquanto a decisão recorrida não aplicou a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo reclamante, circunstância que gera a inadmissibilidade do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
4. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Concentremo-nos no requisito relativo à efectiva aplicação da norma, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, como fundamento jurídico determinante da solução a que o tribunal a quo chegou, relativamente à questão controvertida.
O presente requisito surge como corolário do princípio da instrumentalidade dos recursos de fiscalização concreta, traduzido este último na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto.
Ora, a decisão proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça fundamenta-se na norma extraída da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal e o recurso de constitucionalidade interposto tem como objecto preceito diverso: a alínea f) do n.º 1 do mesmo artigo 400.º.
A circunstância de o reclamante centrar o recurso numa norma diferente da utilizada na decisão recorrida obsta à admissibilidade da sua pretensão, porquanto, como resulta manifesto, o juízo de constitucionalidade que o Tribunal Constitucional viesse a fazer sobre a norma, que o reclamante selecciona como objecto de apreciação, não teria qualquer influência na decisão recorrida, redundando em actividade processual inútil e desadequada, face ao princípio da instrumentalidade a que aludimos supra.
O argumento utilizado pelo reclamante – no sentido de ter feito corresponder a norma a sindicar com a norma utilizada pelo Tribunal da Relação, quando indeferiu o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, “sendo inócuo que o STJ tenha também invocado a regra da alínea c)” – não procede, porquanto o critério de correspondência, condicionador da admissibilidade do recurso, opera entre o critério normativo da decisão recorrida – que corresponde, nesta espécie de recurso, à última palavra da ordem jurisdicional a que pertence o tribunal a quo, ou seja, no caso, à decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2011 – e o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, seleccionado no requerimento de interposição respectivo.
Dito de outro modo, é irrelevante que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa tenha utilizado norma extraída da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, como fundamento da solução dada, já que tal decisão foi consumida, quanto ao seu sentido útil e eficácia, pela decisão que a veio a sindicar, exactamente a decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que consubstancia a decisão recorrida, na presente instância recursiva.
6. Nestes termos, não correspondendo a norma, cuja sindicância o reclamante pretende, à ratio decidendi da decisão recorrida, como refere a decisão reclamada, conclui-se pela inadmissibilidade do recurso e consequente improcedência da presente reclamação.
III – Decisão
7. Pelo exposto, decide-se:
- julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.