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Processo n.º 771/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., por acórdão proferido na 5.ª Vara Criminal, em 2 de Abril de 2004, transitado em julgado, foi condenado na pena única de 3 anos de prisão, com execução suspensa por um período de 5 anos, com a condição de pagar à assistente, no prazo de 2 anos, a indemnização de €134.479,14, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde Maio de 1998.
Por despacho proferido em 28 de Fevereiro de 2008 foi revogada a suspensão da execução da pena, com fundamento em não ter sido cumprida a referida condição.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 26 de Novembro de 2009, julgou improcedente o recurso.
O arguido veio arguir a nulidade desta decisão por omissão de pronúncia, o que foi indeferido por acórdão proferido em 15 de Abril de 2010.
O arguido recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Desembargador Relator não admitido o recurso, por despacho de 2 de Julho de 2010.
O arguido reclamou desta decisão para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação por decisão proferida em 16 de Setembro de 2010.
O arguido recorreu para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“O presente recurso versará sobre várias questões, mas atenta a proliferação de elementos já constantes dos autos, os quais são aptos a provocarem equívocos, passamos a elencá-los, na perspectiva que os observamos:
O ora recorrente foi condenado por Acórdão transitado em 14/6/2005, numa pena de prisão, suspensa com a condição do pagamento de uma indemnização1 ao assistente, considerado como “lesado”.
Na 1ª instância foi revogada a suspensão da execução da pena, tendo sido determinada a prisão do ora aqui recorrente, o que veio efectivamente a acontecer.
Após recurso interposto, foi o mesmo considerado procedente, tendo-se procedido à libertação do ora aqui recorrente.
Proferido novo despacho a revogar a suspensão da execução da pena na sequência do decidido pelo Tribunal da Relação, foi novamente determinada a prisão do ora aqui recorrente, tendo então este, novamente, interposto recurso da mesma para o douto Tribunal da Relação de Lisboa. Este, por Acórdão datado de 26/11/2009, considerou improcedente o recurso.
Após a prolação do referido Acórdão, o ora aqui recorrente arguiu nulidades, requereu a aclaração e reforma e arguiu inconstitucionalidades, as quais vieram (algumas)2, a serem consideradas improcedentes, por decisão de 15/4/2010.
Recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no art.º 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal3, tendo o mesmo sido indeferido pelo Digníssimo Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa.
O ora aqui recorrente, deduziu então reclamação para o STJ, ao abrigo do art.º 405.º, do C.P.P., a qual veio a ser considerada improcedente por decisão de 17/9/2010.
Todas estas decisões acabam por se integrar numa decisão mais vasta, fazendo mesmo umas, parte integrante das outras4.
I. É inconstitucional o entendimento professado, que não atribui qualquer relevância à insolvência supervenientemente decretada, a qual fez extinguir a dívida a que o recorrente fora condenado a pagar ao assistente, elevada a condição da suspensão da execução da pena, por violação dos artºs 27º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa5, em consonância com o previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na verdade, uma eventual prisão por dívidas viola os princípios da necessidade das restrições dos direitos fundamentais, designadamente, da pena (artigo 18º, n.º 2) e da culpa (decorrente da dignidade da pessoa humana). Apesar de não ser referida a norma na qual se arreiga o referido entendimento, assemelhando-se a um “non liquet” normativo, está em causa segundo nos parece, a interpretação do art.º 56.º, n.º 1, do Código Penal6.
II. Escreveu-se na decisão aclaranda “Mas mesmo que tal questão pudesse ser apreciada em sede de recurso, sempre diremos que a insolvência do Recorrente não punha em causa a subsistência do dever que lhe foi imposto como condição de suspensão, não havendo qualquer inconstitucionalidade nessa subsistência.
A insolvência fez extinguir a dívida a que o ora recorrente tinha sido condenado, deixando de existir condição, pois contrariamente ao que consta do Acórdão 305/2001, do Tribunal Constitucional, de 27/6/2001, relatado pelo Exmos. Senhor Conselheiro Artur Maurício, e publicado no DR, II Série, de 19/11/2001, o qual ao ser transcrito em nota de rodapé (2), na decisão aclaranda, constitui interpretação de normas jurídicas, o valor pecuniário que constituiu a condição da suspensão de execução da pena, não é uma compensação, mas sim, uma indemnização emergente dos danos efectivos do “lesado”7.
Daí que, no caso concreto, o valor pecuniário seja efectivamente um valor indemnizatório e não compensatório, integra-se, além da própria análise clara do caso concreto, numa errada interpretação da norma do art.º 51.º, n.º 1 do C.P., em conjugação com o art.º 1.º, do mesmo compêndio, pois interpreta que o valor pecuniário condição da suspensão da execução da pena, tem carácter compensatório e logo não se extingue, mesmo extinguindo-se a dívida e ao mesmo tempo estamos perante um erro evidente na apreciação da matéria de facto, o que também é em si inconstitucional, pois os Juízes devem apreciar os casos de forma equilibrada, que constitui o dever no reverso do direito a uma decisão equitativa inserida num Estado de Direito Democrático. Na verdade, ao escolher-se o caminho do desvirtuamento de uma realidade factual, está-se também a impedir a concretização de “Justiça”, além de se inibir o recurso por inconstitucionalidade. No caso concreto, é notório que estamos perante uma indemnização na acepção jurídica do termo e ao qualificá-la como compensação, está-se a violar o princípio básico de Justiça de um Estado de Direito Democrático e está-se a vedar o concreto direito ao recurso por parte de um “condenado”
Estamos também perante a violação do artº 27º, nº 1, da C.R.P., em consonância com o previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e de uma prisão por dívidas que viola os princípios da necessidade das restrições dos direitos fundamentais, designadamente, da pena (artigo 18º, n.º 2) e da culpa (decorrente da dignidade da pessoa humana).
III. A decisão que incidiu sobre a reclamação deduzida pelo ora aqui recorrente, considerou irrecorrível, quer ao abrigo do disposto no art.º 400.º, n.º 1, alínea c), quer no mesmo artigo alínea f), o recurso que foi interposto para o STJ.
É inconstitucional o entendimento de irrecorribilidade de um Acórdão da Relação, completado com a reclamação que lhe deu sustento, à luz dos citados preceitos, quando do que se recorre é de uma questão que nunca foi apreciada em 1ª instância, até porque a mesma, sendo superveniente, nunca poderia tê-lo sido, por violação do direito ao recurso, previsto no art.º 32.º, número 1, da C.R.P.
É o que se lê nos Acórdãos que se seguem:
“5. Mas se o TR, na pendência de um recurso conhecer ex novo de questões processuais deve ser admitido o recurso para o STJ, sob pena de supressão prática de um grau de jurisdição e, consequentemente, do direito ao recurso.
Por esta razão8, conclui o Tribunal Constitucional no Acórdão 686/2004, Conselheira Maria Fernanda Palma, de 30 de Novembro de 2004, o seguinte:
b) Julgar inconstitucional por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição da norma do artigo 400º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, declarando-a,
Por último,
IV. Por outro lado, a decretação da prisão por uma dívida que afinal já não possui, constitui em si uma violação do princípio da culpa e da dignidade do ser humano, como o é o não cumprimento do pagamento de uma indemnização.
Ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual ou indemnizatória, violando-se o direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27º, nº 1, da Constituição, em consonância com o previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Dos trabalhos preparatórios do referido Protocolo resulta que o que se proíbe no artigo 1º é a «prisão por dívidas» por que uma tal situação é contrária à noção de liberdade e de dignidade humanas. Com efeito, privar um indivíduo da liberdade só porque ele não dispõe de meios materiais de cumprir as suas obrigações contratuais contende com o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Na verdade, uma eventual prisão por dívidas viola os princípios da necessidade das restrições dos direitos fundamentais, designadamente, da pena (artigo 18º, n.º 2) e da culpa (decorrente da dignidade da pessoa humana) e da proporcionalidade num Estado de Direito Democrático. Se a prisão por dívidas é inconstitucional, muito mais o será, quanto já não há dívida, pois não se pode obrigar alguém a pagar uma dívida quando ela já não existe, prendendo-o.
Termos em que deve ser aceite o presente recurso dirigido ao Venerando Tribunal Constitucional, tudo nos termos expostos e com as respectivas consequências legais.”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso em 23 de Novembro de 2010, com a seguinte fundamentação:
“1.Delimitação do objecto do recurso
Da leitura do requerimento de interposição de recurso constata-se que o Recorrente pretende recorrer não só da decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação que lhe dirigiu, mas também dos dois acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Dispõe o artigo 75.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), que interposto recurso ordinário que não seja admitido, com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite o recurso.
Ora, recorrendo-se para o Tribunal Constitucional da decisão que indeferiu a reclamação do despacho que não admitiu o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, a decisão que não admitiu o recurso ainda não se tornou definitiva, pelo que ainda não se iniciou o prazo para o arguido recorrer para o Tribunal Constitucional dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação.
Assim sendo, não é possível conhecer neste recurso das questões de constitucionalidade imputadas a esses arestos.
Relativamente à decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o arguido suscita a inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, c) e f), do CPP, no entendimento de que é irrecorrível uma decisão proferida em recurso por tribunal de 2.ª instância que se pronuncia sobre questão superveniente e que por isso não havia sido apreciada na 1.ª instância.
O despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que apreciou o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não admitiu o recurso na parte em que imputa a inconstitucionalidade à alínea c), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP.
Não tendo sido impugnada esta decisão, a mesma transitou em julgado, pelo que o objecto do recurso cinge-se à questão da constitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, f), do CPP, no entendimento de que é irrecorrível uma decisão proferida em recurso por tribunal de 2.ª instância, que se pronuncia sobre questão superveniente e que por isso não havia sido apreciada na 1.ª instância.
2.Do conhecimento do recurso
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
“1. O arguido A. notificado do despacho que não admitiu o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça com base no disposto no art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, reclama ao abrigo do art. 405.º do CPP, transcrevendo a motivação do recurso apresentado e referindo que o despacho reclamado viola o citado art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretado no sentido de ser irrecorrível uma decisão que se pronuncie pela primeira vez sobre os efeitos da insolvência na suspensão da execução da pena, sendo essa interpretação inconstitucional, por violação art. 32.º, n.º 1, da CRP.
2. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.11.2009 foi confirmada a decisão da 1ª instância que, nos termos do art. 56.º, n.º 1, alínea a), do CP, revogara a suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão, determinando o cumprimento desta.
O acórdão recorrido, proferido em 15.04.2010 julgou improcedente a arguida nulidade do anterior acórdão de 26.11.2009, por omissão de pronúncia.
3. No caso em apreço, foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação que julgou improcedente a arguida nulidade, por omissão de pronúncia (cf. fls. 24 e segs.)
Tal arguição reporta-se ao acórdão que confirmou a decisão da 1ª instância que, nos termos do art. 56.º, n.º 1, alínea a), do CP, revogara a suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão, determinando o cumprimento desta.
No domínio dos recursos e das normas que disciplinam a competência em razão da hierarquia, a nova redacção do art. 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP, dispõe que há recurso para o Supremo Tribunal das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas em recurso pelas relações nos termos do artigo 400.º.
E o art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, estabelece serem irrecorríveis «os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo».
O objecto do processo penal é delimitado pela acusação ou pela pronúncia e constitui a definição dos termos em que vai ser julgado e decidido o mérito da causa – ou seja, os termos em que, para garantia de defesa, possa ser discutida a questão da culpa e, eventualmente, da pena.
No caso concreto, o acórdão de 15.04.20 10 de que o reclamante pretende recorrer ao julgar improcedente a arguição de nulidade, não conheceu do objecto do processo.
Com efeito, nem o anterior acórdão, arguido de nulidade, de 26.11.2009, proferido em recurso, confirmativo da decisão da 1ª instância que determinara a revogação da suspensão da execução da pena, conheceu do objecto do processo nem julgou do mérito da causa, sendo antes proferido em procedimento específico da execução da pena suspensa, previsto no art. 492.º e segs. do CPP, isto é, já depois da decisão final.
A decisão que conheceu a final do objecto do processo, para efeitos do citado art. 400.º, n.º 1 alínea e), do CPP, foi o acórdão transitado em julgado em 14.06.05, que condenara o arguido na pena única de 3 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 5 anos com a condição de pagar à assistente, no prazo de 2 anos, a indemnização de € 134 479,14, acrescida de juros de mora à taxa legal, prazo esse que posteriormente, após audição do arguido, foi prorrogado por 90 dias.
E, face ao não cumprimento desta obrigação, o acórdão de 26.11.2009, em consonância com o decidido em 1ª instância, de harmonia com o disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 56.º do CP, revogou a suspensão da execução da pena de prisão, respeitando assim à execução da pena de substituição e suas consequências.
Ora, na hipótese em apreciação, estamos perante uma questão lateral ao objecto do processo, que apenas foi conhecida na competência da Relação, precisamente por a decisão da Relação não ser susceptível de recurso.
Pelos mesmos motivos, também o acórdão não era recorrível, ao abrigo da redacção anterior do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por não ter posto termo à causa.
A causa, com o sentido da determinação do direito do caso - culpa e pena - terminou com a decisão condenatória, sendo a fase posterior já, como se referiu, um procedimento consequente de execução.
Assim, não é o recurso admissível nem ao abrigo da redacção anterior da alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP nem da actual introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29/08.
4. O recurso não seria admissível ainda por outro fundamento.
O art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP determina a irrecorribilidade de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a oito anos.
E, no caso, o acórdão da Relação de 26.11.2009, confirmou a decisão da 1ª instância que revogara a suspensão da pena de 3 anos de prisão aplicada ao arguido, cabendo assim na previsão do art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.
E esta interpretação da referida alínea f) não é inconstitucional, uma vez que o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no n.º 1 do art. 32.º da Constituição, se basta com um grau de recurso, ou segundo grau de jurisdição, direito esse que o reclamante já utilizou ao recorrer para a Relação.
5. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação.”
Conforme se constata da leitura da mesma, em parte alguma se sustentou que é irrecorrível uma decisão proferida em recurso por tribunal de 2.ª instância, que se pronuncia sobre questão superveniente e que por isso não havia sido apreciada na 1.ª instância, não integrando esse pensamento a sua ratio decidendi.
É certo que o Recorrente havia colocado a respectiva questão na reclamação que dirigiu ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mas ela não foi objecto de apreciação, pelo que não se assumiu a interpretação normativa que aqui se pretende ver fiscalizada.
Se essa omissão podia permitir outro tipo de reacção, não tem o condão de tornar cognoscível o mérito deste recurso, atenta a sua inutilidade, uma vez que a decisão sobre a constitucionalidade de tal interpretação nunca teria a virtualidade de determinar a alteração da decisão recorrida, uma vez que ela não integrou os seus fundamentos.
Não estando presente este requisito essencial ao conhecimento do recurso constitucional, deve ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.
O Recorrente reclamou desta decisão, com a seguinte argumentação:
A douta decisão sumária não tomou conhecimento do recurso interposto pelo ora recorrente, no primeiro ponto abordado, no que foi designado por “dois Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa”, que considerou as inconstitucionalidades arguidas se dirigiam a esses mesmos “dois acórdãos”, razão pela qual, não era ainda o tempo processual adequado para se recorrer para o Tribunal Constitucional, nos termos do art.º 75.º, n.º 2, da LOFTC.
Ora, analisando a citada norma, efectivamente assim é, não se descortinando a esta distância como tal na prática se poderá processar, atento o facto do processo ficar algum tempo no Tribunal Constitucional para elaboração da conta e demorar outro mensurável tempo a ser remetido para a Relação, mas efectivamente, “de jure”, assim o é.
Já quanto ao segundo ponto invocado pelo recorrente e decidido na decisão sumária, permitimo-nos discordar e por defeito de “fabrico profissional”, tecer algumas considerações.
Decretou a decisão sumária:
Conforme se constata da leitura da mesma, em parte alguma se sustentou que é irrecorrível uma decisão proferida em recurso por tribunal de 2ª instância, que se pronuncia sobre questão superveniente e que por isso não havia sido apreciada na 1ª instância, não integrando esse pensamento a sua ratio decidendi.
A pergunta que assola imediatamente o espírito do recorrente2 é esta:
“Onde é que eu errei-”
O recorrente, aquando da interposição do seu requerimento de recurso junto do Tribunal da Relação de Lisboa, nas suas conclusões de recurso, referiu expressamente que o recurso era interposto com base no facto de, pela primeira vez se ter apreciado uma determinada questão, reproduzindo-se apenas por precaução de patrocínio o vertido nas conclusões 1 e 2 do recurso3:
1) O presente recurso, face à dupla conforme, apenas pode versar sobre matéria que o Tribunal da Relação apreciou pela primeira vez.
2) O que é o caso de decisões substantivas e processuais inerentes a factos supervenientes trazidos aos autos.
O Juiz do Tribunal da Relação, exarou o seguinte:
Nos termos do disposto no artº 400º/f) do CPP, não é admissível recurso das decisões das relações, que confirmem decisão da primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
No presente caso, a decisão da primeira instância revogou a suspensão da execução de uma pena de 3 anos de prisão, determinando o cumprimento desta. O nosso acórdão de fls. 180 a 189 confirmou tal decisão Por isso nos termos da norma citada, este acórdão não é passível de recurso.
Nestes termos, não admitimos o recurso interposto pelo Arg., através do requerimento de fls. 220 a 235.
Ou seja, para qualquer pessoa estruturada e simples, o despacho de não admissão de recurso, pressupõe a não admissão do fundamento invocado pelo recorrente. Pensar de outra forma, será conduzir a existência humana a exigências desconformes, quer com a própria relação humana endógena, quer com o princípio da confiança que deve presidir às decisões judiciais. Foi por essa singela razão que não foi arguida a aclaração do despacho, pois até se o fizesse, seria “alcunhado” de querer protelar o processo!
Deduzida reclamação para o STJ, foi novamente invocado pelo recorrente que o recurso deveria ser admitido, pelo facto de, pela primeira vez ter sido apreciada uma questão nova. O despacho do Digníssimo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, veio indeferir essa reclamação, aplicando-se aqui, o mesmo principio de pressuposição, da não aceitação do fundamento reiteradamente invocado pelo recorrente e de economia processual objectiva.
É agora o recorrente confrontado com a inadmissibilidade do recurso, porque não vem expressamente referido que não foi acolhido esse fundamento, como ainda, tal fundamento não faz parte da “ratio decidendi” da decisão!
Não podemos, com o devido respeito que é muito, concordar com tal asserção.
Desde logo, é óbvio que o recurso não é admitido porque, nem o Tribunal da Relação, nem o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, concorda com a possibilidade de recurso nesse caso, pois, se concordasse tê-lo-ia admitido. Em segundo lugar, quando o recorrente, ora reclamante, recorreu para o Tribunal Constitucional, fê-lo com fundamento, quer no despacho do Tribunal da Relação, quer com fundamento no despacho do Supremo Tribunal de Justiça, pois, uma integra-se na outra. Por último, da própria forma de abordagem e análise da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, se compreende que o mesmo não é admitido por discordância do fundamento invocado pelo recorrente, ora reclamante, mais uma vez e essencialmente, porque se não o fosse teria sido admitido. É que o Supremo não encontra nenhuma excepção à dupla conforme, razão pela qual defende uma interpretação literal do art.º 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Se assim não fosse e caso não se entenda, está encontrada a forma de nunca ser apreciada qualquer questão de inconstitucionalidade, pois, basta pura e simplesmente o decisor ignorar o que é vertido pelo recorrente e em sede de aclaração ou reforma, voltar a omitir tal referência expressa e até condenar o recorrente por tentativa de protelar o processo. Convenhamos, com todo o respeito, que um “non liquet” não deverá ser criado por vias invias, por mais exigências de culpabilidade e punição que a sociedade hoje exija.
De outra face, e com o devido respeito, é opinião actualizada que o Tribunal Constitucional apenas aprecia critérios normativos, ou utilizando os seus próprios termos, “o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não sendo a decisão judicial que é objecto de fiscalização, enquanto operação subsuntiva da norma ao caso concreto4, mas sim o critério normativo utilizado para efectuar tal operação, como resultado da actividade interpretativa duma determinada norma. Conforme refere Carlos Lopes do Rego, “a interpretação normativa sindicável pelo Tribunal Constitucional pressupõe uma vocação de generalidade e abstracção na enunciação do critério normativo que lhe está subjacente, de modo a autonomizá-lo claramente da pura actividade subsuntiva, ligada irremediavelmente a particularidades especificas do caso concreto” (in “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”, em “Jurisprudência Constitucional”, nº 3, Julho/Setembro de 2004, pág. 7)5.
Para quem seja adepto do realismo jurídico6, uma decisão judicial é exactamente aquilo que quem decide, quer que ela seja.
Esta opção, nem sequer postula uma posição definitiva sobre o que seja considerado o Direito e correlativamente as normas jurídicas – “se com Llewellyn, para quem o direito é aquilo que os funcionários fazem acerca das disputas das quais conhecem; se com Holmes, que via na profecia do que viriam a decidir os tribunais a natureza primeira do direito; se com Gray, o qual defendia que as leis não são o direito, mas apenas a sua fonte; se com Austin, segundo quem o direito constitucional não passava de moral positiva; se com Kelsen, cuja teoria sustenta que o direito é a norma primária que estabelece a sanção; ou se com outro qualquer jusfi1ósofo.”7
Mas a corrente do neoconstitucionalismo, leva-nos a caminhos semelhantes.
A interpretação jurídica concretiza-se na fusão do caso concreto em aderência ao plano normativo, partindo deste princípio.
A norma é inerente ao acto de interpretar, pois não há norma sem significação da mesma, razão pela qual não restringimos a norma apenas à interpretação gramatical.
Logo, como exalta Eros Roberto Grau8, o conjunto de textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. Tal significa que o intérprete produz norma jurídica, no sentido de a interpretar.
Existindo o Direito para e pelas pessoas, torna-se mister que uma interpretação, ou melhor, uma “fatwa” que determine a irrecorribilidade, invocando apenas uma norma jurídica, sem cuidar do fundamento do recurso apresentado pelo recorrente, está ela própria a fazer lei e a determinar que nunca em caso algum é recorrível uma decisão baseada numa dupla conforme, o que abrange toda e qualquer situação da vida formal ou (e) real.
É por isso que permitimo-nos trazer à discussão que “O direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo acto que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha em qualquer sentido possível”9.
Se o Tribunal da Relação e Supremo Tribunal de Justiça, não admitiram o recurso com base nos fundamentos invocados pelo recorrente, porque é perfeitamente entendível que não os considera como cabendo dentro da moldura jurídica aplicável, está a efectuar a interpretação que o recorrente invocou como de inconstitucional.
Ainda noutra perspectiva, se uma norma é interpretada como não permitindo o recurso, quando estamos perante uma dupla conforme, então significa que é irrelevante verificar se houve, ou não, qualquer questão que tenha sido conhecida pela primeira vez, a que acresce o facto do fundamento utilizado para o recurso ser repetidamente invocado como sendo esse.
Termos em que e nos melhores de Direito, deverá ser proferida decisão de admissão liminar do recurso, seguindo-se os demais termos processuais, pois tal situação é, com o devido respeito, é de elementar Justiça”.
O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
Nesta reclamação o Recorrente discorda da decisão reclamada apenas na parte em que ela não tomou conhecimento do mérito do recurso na parte em que questionava a constitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), no entendimento de que é irrecorrível uma decisão proferida em recurso por tribunal de 2.ª instância, que se pronuncia sobre questão superveniente e que por isso não havia sido apreciada na 1.ª instância.
O recurso de constitucionalidade, em fiscalização sucessiva concreta, interposto nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, tem natureza instrumental, relativamente à decisão recorrida, pelo que um dos pressupostos objectivos deste recurso é o de que a decisão recorrida tenha aplicado efectivamente, como sua ratio decidendi, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver declarada. Só verificado este pressuposto é que o recurso tem um sentido útil, pois, só assim é que juízo aí proferido poderá repercutir-se na decisão recorrida, obrigando à sua reformulação.
É indiscutível que, neste caso, a decisão recorrida não aplicou expressamente a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, cuja constitucionalidade o Recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, apesar deste ter colocado a respectiva questão à instância recorrida, verificando-se por parte desta uma omissão da apreciação desse argumento.
Sustenta o Recorrente que o silêncio da decisão recorrida, nessa parte, traduz um juízo implícito correspondente à interpretação que constitui o objecto do recurso colocado ao Tribunal Constitucional.
Se é verdade que é possível a fiscalização pelo Tribunal Constitucional de interpretações implicitamente acolhidas pelas decisões recorridas (vide Blanco de Morais, em “Justiça Constitucional”, tomo II, pág. 702, da ed. de 2005, da Coimbra Editora, e Lopes do Rego, em “Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, pág. 111-112, da ed. de 2010, da Almedina), é necessário que essa interpretação esteja necessariamente subjacente à decisão proferida, por ser o necessário pressuposto da solução jurídica que se adoptou.
Nesta hipótese, em que a decisão recorrida omite completamente qualquer alusão ao argumento invocado pelo Recorrente, não é possível afirmar se a solução adoptada ponderou esse argumento, afastando-o, silenciosamente, na interpretação cuja conformidade constitucional se pretende agora ver apreciada, ou se essa omissão radicou noutra interpretação, ou ainda se foi involuntária, não tendo esse argumento sido objecto de qualquer ponderação.
Esta dúvida só poderia resultar esclarecida em incidente pós-decisório que confrontasse o Tribunal recorrido com essa omissão.
Não tendo ocorrido esse esclarecimento, não tem este Tribunal meios para poder concluir pela aplicação efectiva implícita da interpretação normativa que se pretende ver sindicada, pelo que não é possível a apreciação do presente recurso.
Mas, mesmo que se entendesse o contrário, nunca este recurso poderia ser apreciado, uma vez que a decisão recorrida assenta numa dupla fundamentação. Na verdade, o despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação do despacho do Desembargador Relator que não admitiu o recurso para aquele Tribunal, com fundamento não só na restrição prevista no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, por se verificar uma situação de dupla conforme, mas também na restrição prevista na alínea c), do mesmo artigo 400.º, n.º 1, porque a decisão do Tribunal da Relação não tinha conhecido do objecto do processo.
Existindo, pois, um segundo fundamento para a decisão, o qual não integra o objecto do recurso de constitucionalidade, o eventual conhecimento da constitucionalidade do outro fundamento nunca teria repercussão no sentido da decisão recorrida, uma vez que esta sempre se manteria alicerçada nesse segundo fundamento, pelo que, também por esta razão, o conhecimento do mérito deste recurso se revela desprovido de utilidade.
Nestes termos, importa indeferir a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária proferida por este Tribunal nestes autos em 23 de Novembro de 2010.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de Janeiro de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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1 Na verdadeira acepção concepto-jurídico do termo;
2 Aquelas que o Tribunal da Relação decidiu conhecer;
3 De ora em diante, abreviadamente designado por C.P.P.;
4 Como é o caso, da decisão aclaranda no Acórdão aclarado;
5 De ora em diante, abreviadamente designada por C.R.P.;
6 De ora em diante, abreviadamente designado por C.P.;
7 Em função do que ficou provado nos autos;
8 Sem prejuízo de se citar outra jurisprudência, exemplificativamente, Acórdão do Tribunal Constitucional, 287/2005, Acórdão do STJ, de 11/2/2002 e Acórdão do STJ de 26/6/2002, in. CJ, Acs. Do STJ, X, 2, 227), todos in. www.dgsi.pt;
2 À cautela e atento o estado actual da sociedade portuguesa em termos de relações humanas, afirma-se peremptoriamente, que tudo o que se verterá na presente peça, sê-lo-á unicamente, por convicção de raciocínio e na defesa dos interesses do mandante; Ideia que é desenvolvida em outras conclusões
3 Ideia que é desenvolvida em outras conclusões;
4 Escola Histórica do Direito;
5 Acórdão do Tribunal Constitucional número 420/2007;
6 Como é o subscritor da presente peça processual;
7 In. http://www.amatra19.org.br/artigos_/henrique_cavalcante/007.pdf;
8 GRAU, Eros, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 28
9 Kelsen, Hans, Teoria Pura do Direito, p. 390;