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Processo n.º 585/2010
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e B., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional dos acórdãos daquele Tribunal de 9 de Dezembro de 2009 e de 5 de Maio de 2010.
2. Pela Decisão Sumária n.º 425/2010, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«Do requerimento de interposição de recurso resulta que o recorrente pretende recorrer ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, nos termos da qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
1. Um dos requisitos do recurso interposto é a suscitação prévia, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, da questão de inconstitucionalidade (artigos 70º, nº 1, alínea b) e 72º, nº 2, da LTC) cuja apreciação é requerida a este Tribunal
O recorrente interpôs recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Dezembro de 2009 para apreciação de norma que reporta ao artigo 97º, nº 5, do Código de Processo Penal. Sucede, porém, que questionou a constitucionalidade desta norma já depois de ter sido notificado daquele acórdão (cf. ponto 2. do Relatório). Nestas circunstâncias, e independentemente da questão de saber se, em tal peça processual, a questão foi suscitada de modo processualmente adequado, o Tribunal não pode tomar conhecimento do objecto do recurso. É manifesto que a questão de constitucionalidade não foi suscitada previamente à prolação da decisão recorrida.
Justifica-se, pois, nesta parte, a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).
2. Um outro requisito do recurso interposto é a aplicação, pela decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é requerida a este Tribunal (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC).
Com o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5 de Maio de 2010, o recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil, interpretado no sentido de que o juiz está impedido de pronunciar-se e, eventualmente, de alterar decisão proferida, se e aquando se invoca a existência de vícios na mesma, não podendo, por isso, conhecer dos aludidos, por esgotado o poder jurisdicional, quando a decisão não permite recurso strictu sensu.
Da fundamentação do acórdão de 5 de Maio (supra, ponto 3. do Relatório) resulta, porém, que não foi aplicado, como razão de decidir, o artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil na interpretação especificada. Na decisão recorrida, o Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se sobre os vícios invocados pelo requerente, relativamente ao acórdão de 9 de Dezembro, conhecendo-os.
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, o Tribunal não pode, também nesta parte, tomar conhecimento do objecto do mesmo, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, invocando o seguinte:
«1- Segundo a decisão reclamada, não se tomou conhecimento do recurso interposto, porquanto:
a) No que tange à decisão de fls…..porquanto só questionou a inconstitucionalidade depois de ter sido notificado da mesma.
b) No que concerne à decisão de 5 de Maio, porquanto a norma cuja apreciação é requerida não foi utilizada como ratio decidendi da decisão recorrida.
2. Ora, como consta da respectiva interposição, foi expressamente invocado que o recorrente não o poderia ter questionado a inconstitucionalidade antes da oportunidade em que o fez, por ser de todo impensável o sentido da decisão, face ao teor explicito da norma questionada.
3. Por outro lado, efectivamente, o artigo 666º nº 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 4º do CPP, foi expressamente invocado como ratio decidendi da decisão recorrida.
4. Na verdade, pode ler-se na mesma:
(…)
5. Temos, pois, que não só está adequadamente justificada a razão pela qual a inconstitucionalidade foi invocada na oportunidade em que o foi, como o artigo 666º nº 1 do CPC foi invocado como razão de decidir da decisão recorrida».
4. Notificado, o Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:
«1º
Pela Decisão Sumária nº 425/2010, decidiu-se não conhecer do recurso quanto às duas questões colocadas pelo recorrente.
2º
Na respeitante ao artigo 97º, nº 5, do CPP, porque a questão não tinha sido suscitada previamente à prolação da decisão recorrida.
3.º
Efectivamente, o Acórdão que recusou, por ser manifestamente infundado, o requerimento de recusa de intervenção do juiz, não fez qualquer interpretação insólita ou imprevisível que dispensasse o recorrente do ónus da suscitação prévia.
4.º
Por outro lado, nos casos em que, pelo recorrente, é invocado que foi surpreendido pela interpretação anómala ou imprevisível que o tenha impossibilitado de anteriormente suscitar a questão, recai sobre ele o ónus de “explicitar os factores objectivos que possam conduzir o Tribunal a aceitar uma tal conclusão”, sendo “insuficiente afirmar de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente” (v.g. Acórdão nº 213/2004).
5º
Ora, foi precisamente o que ocorreu no presente recurso em que o recorrente se limitou a afirmar a surpresa “por ser de todo impensável o sentido da decisão”.
6º
Por outro lado, parece-nos evidente, que nem sequer foi suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa, traduzindo-se a afirmação do recorrente, numa discordância com a fundamentação do Acórdão.
7º
Quanto á segunda questão – inconstitucionalidade referente ao artigo 666º, nº 1, do CPC – também nos parece claro que, como se decidiu na Decisão Sumária, a norma não foi aplicada na interpretação especificada pelo recorrente.
8º
Efectivamente, na decisão recorrida, após se tecerem considerações genéricas sobre o alcance do disposto no artigo 666º, nº1, do CPC, apreciou-se “as razões e os vícios apontados pelo requerente”.
9º
Contraditoriamente, a própria reclamação agora apresentada e as partes, aí transcritas, da decisão recorrida, levam à confirmação daquele entendimento.
10º
Na verdade, só se pode concluir que “não constitui vício” ou “que se não configura qualquer vício”, se se apreciar a existência dos vícios».
5. Notificada, a recorrida não se pronunciou.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. No que se refere à norma que o recorrente reportou ao artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, a decisão reclamada concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso por não se verificar um dos seus requisitos: a suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade cuja apreciação seja requerida (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC).
O reclamante sustenta que não poderia ter questionado tal inconstitucionalidade em momento prévio, por ser de todo impensável o sentido da decisão, face ao teor explícito da norma questionada.
O Tribunal Constitucional tem vindo a entender que o recorrente está dispensado do ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade nos casos excepcionais e anómalos em que não disponha de oportunidade processual para a suscitar durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir (cf., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 61/92 e 426/2002, disponíveis em www.tribunalconsitucional.pt). Sucede, porém, que o reclamante nada diz que, concretizando o sentido impensável da decisão, demonstre que estava dispensado daquele ónus. Sendo certo que recai sobre o recorrente o ónus de expor, com a devida concretização, as circunstâncias pelas quais lhe foi impossível suscitar a questão de forma atempada, uma vez que está dispensado daquele ónus somente em casos excepcionais e anómalos (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 213/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Além do mais, este Tribunal não vislumbra, no caso, um qualquer sentido impensável da decisão, por referência ao artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
2. Relativamente à norma que o recorrente reportou ao artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a decisão reclamada concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso por não se verificar um dos seus outros requisitos: a aplicação, pela decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é requerida a este Tribunal (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC).
O reclamante argumenta que o artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil foi expressamente invocado como ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, do acórdão da Relação do Porto de 5 de Maio de 2010. Porém, esta argumentação em nada colide com a decisão sumária, uma vez que o que está em causa é a aplicação, como razão de decidir, daquele artigo na dimensão interpretativa especificada no requerimento de interposição de recurso. Isto é, interpretado “no sentido de que o juiz está impedido de pronunciar-se e, eventualmente, alterar decisão proferida, se e aquando se invoca a existência de vícios na mesma, não podendo, por isso, conhecer dos aludidos, por esgotado o poder jurisdicional, quando a decisão não permite recurso strictu sensu”. O que, manifestamente, não sucedeu, como já se conclui na decisão reclamada. Com efeito, o Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se sobre os vícios invocados pelo requerente, conhecendo-os, depois de explicitar que a lei possibilita “a correcção oficiosa ou a requerimento da sentença, para correcta observância dos seus requisitos, desde que a correcção não incida sobre qualquer das omissões ou falhas integrantes de nulidade, com previsão no artigo 379.º C. P. Penal, bem como para rectificação de qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial – artigo 380.º C. P. Penal”.
Nestes termos, não se vislumbra razão bastante para inverter os juízos firmados na decisão sumária ora reclamada, que assim deve ser confirmada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2010.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.