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Processo n.º 412/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, nº 1, al. b), da CRP e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão proferido, em conferência, pela Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em 18 de Janeiro de 2010 (fls. 177 a 183), que conheceu de reclamação de decisão sumária, que rejeitou recurso anteriormente interposto, proferida pelo Relator junto daquele Tribunal para que seja apreciada a constitucionalidade “da norma do artigo 417.º, n.º 6 do Código Processo Penal na interpretação acolhida pela sentença recorrida, de acordo com a qual a nova competência do relator para proferir decisão sumária sobre o recurso não é inconstitucional” (fls. 189).
2. Por se afigurar relevante para a compreensão da questão de constitucionalidade em apreço nos presentes autos, procede-se à transcrição parcial da decisão recorrida:
“(…) Inconstitucionalidade por falta de competência do relator para proferir decisão sumária.
• A revisão de 2007 veio introduzir significativas alterações à tramitação dos recursos, adaptando, em alguma medida, as soluções do CPP às entretanto tomadas vigentes em processo civil.
• Tais soluções devem a sua influência, em muito, às regras do processo constitucional, ou seja, às que constam da lei do tribunal constitucional.
• Assim, além de se ter terminado com a distinção entre motivação e alegações escritas, modificou-se a ordem de saneamento e de discussão. Tal como no processo civil, a motivação / alegação e resposta à mesma (no fundo a contra alegação) são anteriores a qualquer acto de saneamento por parte do tribunal.
• Uma outra modificação consiste exactamente na diferente distribuição de tarefas entre relator e tribunal (julgamento em conferência) e em especial no reforço das capacidades decisórias, mas de carácter saneador, do relator - através da decisão sumária. Esta distribuição de tarefas baseia-se na tramitação do recurso para o Tribunal Constitucional.
• A tarefa fundamental do relator, se bem que subordinada à possibilidade de reclamação para conferência, será exactamente a de, por um lado, ser um filtro entre a decisão sumária e a decisão colegial, mas, por outro lado, de preparar o julgamento de recurso.
• Reportando-nos ao assunto dos presentes autos, uma vez que o recorrente decidiu reclamar para a conferência é o que está a ter lugar. Não há pois, sequer, que falar em inconstitucionalidade, uma vez que, mesmo a ter havido preterição, ela está suprida a partir do momento em que é aceite a conferência.
• Concluímos deste modo que não há qualquer incompatibilidade com o direito do arguido de recurso e que, mesmo admitindo-se ter havido inconstitucionalidade, que não se admite, a mesma já estaria completamente suprida, [pois] foi deferida a pretensão do recorrente de levar o seu recurso a conferência.” (fls. 800 e 801)
3. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu as seguintes alegações:
«a) A., interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação de Guimarães de 18 de Janeiro de 2010.
b) O recurso foi interposto ao abrigo da al. b) do nº. 1 do art°. 70°, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.° 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei n.113 - A/98, de 26 de Fevereiro.
c) Com o presente recurso pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 417°, n.º 6 do CPP, uma interpretação acolhida pelo acórdão recorrido, de acordo com a qual “a nova competência do relator para proferir a decisão sumária sobre o recurso não é inconstitucional:
d) Ora tal interpretação, viola o direito de recurso, o direito de acesso aos tribunais, com clara violação dos artigos 20°, nº 1, 32º. n.º 1 e 7 da Constituição.
e) Com efeito, na versão inicial do CPP, o relator não tinha poderes de decisão sumária sobre o recurso aquando do exame preliminar, competindo à conferência esses poderes.
f) A Lei n.° 59/98 de 25.8, apenas previa a obrigatoriedade da notificação do visto do M° P°., no tribunal de recurso quando ele se pronunciasse sobre o processo e, em consonância com a mais ampla possibilidade de alegações escritas, estabeleceu os deveres de o relator fixar o prazo para alegações escritas quando o processo devesse prosseguir e de enunciar as questões que mereciam exame especial.
Contudo, a Lei n.° 48/2007, de 29.8, atribui ao relator poderes de decisão sumária sobre o recurso, bem como reconhece expressamente o poder de convite ao recorrente a apresentar, completar e esclarecer as conclusões formuladas.
g) Se a consagração explícita do poder do relator convidar a aperfeiçoar a motivação é uma importante inovação introduzida no art°. 417°, a mais relevante é, no entanto, a atribuição ao relator de poderes de decisão sumária sobre o recurso.
h) Assim, os recursos em processo penal passam a ser conhecidos por um dos três modos: uma decisão sumária do relator, em conferência ou em audiência.
i) Contudo, esta nova competência do relator para proferir a decisão sumária sobre o recurso é inconstitucional.
j) Ela (a competência) não é compatível com o direito do arguido de recurso, o direito do ofendido de participação no processo e de acesso aos tribunais de recurso (artigo 20°. Nº 1 e 32°. n. °! e 7 do CRP).
Conclusões:
1. A competência do relator para proferir a decisão sumária sobre o recurso é inconstitucional por violação dos artigos 20º, n. °1, 32°. nº. 1 e 7 do CRP.
2. A questão de inconstitucionalidade foi suscitada a fls..., aquando da interposição do recurso da decisão sumária proferida em 2ª instância pelo Relator Desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães.» (fls. 222 a 223).
4. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, cujas conclusões são as seguintes:
«1 - Da Decisão Sumária que rejeita o recurso por manifesta improcedência (artigo 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea a) do CPP), cabe reclamação para a conferência (n.º 8 do artigo 417.º).
2 - O direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição não exige que sempre e em quaisquer circunstâncias um recurso tenha de ser apreciado em audiência.
3 - Desta forma, a norma da alínea b) do n.º 6 do artigo 417.º do CPP, enquanto atribui competência ao relator para proferir decisão sumária, nos casos de o recurso ser manifestamente infundado, não viola aquele preceito constitucional, não sendo, por isso, inconstitucional.
4 – Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.» (fls. 233).
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Nestes autos, o recorrente elegeu como objecto do recurso o n.º 6 do artigo 417º do Código de Processo Penal (CPP), que, desde a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, determina o seguinte:
“Artigo 417.º
Exame preliminar
(…)
6 – Após exame preliminar, o relator profere Decisão Sumária sempre que:
a) Alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso;
b) O recurso dever ser rejeitado;
c) Existir causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo do recurso; ou
d) A questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado”.
Do confronto entre a decisão recorrida e o modo amplo como o recorrente fixou a norma jurídica sob fiscalização – note-se que aquele preceito legal contém, em si ínsitas, várias normas jurídicas distintas; pelo menos, tantas quantas as respectivas alíneas – resulta que aquela apenas aplicou efectivamente a norma jurídica extraída da alínea b) do n.º 6 do artigo 417º do CPP, pelo que, tratando-se este de um processo de fiscalização concreta, apenas desta precisa e específica questão poderá conhecer-se (artigo 79º-C da LTC).
6. A questão a dirimir afigura-se relativamente simples, tendo em conta a existência de jurisprudência consolidada, neste Tribunal, sobre o direito de recurso dos arguidos em processo penal e sobre diversos mecanismos de flexibilidade da administração da Justiça, designadamente, mediante a prolação de decisões sumárias no âmbito de recursos não criminais.
Trata-se, portanto, de aferir se a atribuição por parte do legislador de poderes para rejeitar, mediante decisão sumária, um recurso interposto a um Relator de um tribunal criminal de segunda instância, contraria, ou não, o direito fundamental de acesso à Justiça (artigo 20º, n.º 1, da CRP) e o direito fundamental dos arguidos ao recurso (artigo 32º, n. 1, da CRP) e ainda o direito fundamental do ofendido intervir no processo, nos termos da lei (artigo 32º, nº 7, da CRP).
Presentemente, a esfera de protecção normativa do direito fundamental ao recurso em processo penal encontra-se, exaustivamente, delimitada por vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional (a mero título de exemplo, ver apenas, mais recentemente, os Acórdãos n.º 263/09, n.º 551/09, n.º 645/09, n.º 125/10, n.º 174/10, n.º 276/10, n.º 277/10, n.º 308/10 e n.º 314/10, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). De acordo com esta jurisprudência, o direito fundamental ao recurso não se traduz num direito subjectivo ilimitado ou irrestringível, nem tão pouco exige um duplo grau de recurso. Pelo contrário, cabe ao legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação normativa, adoptar as normas ordinárias necessárias à boa tramitação dos recursos, designadamente, adoptando normas processuais que garantam outros valores constitucionais que se encontram em confronto com os direitos dos arguidos, tais como a necessidade de garantir um processo célere e de proteger o direito das vítimas de crimes.
Assim sendo, o direito fundamental ao recurso em processo penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP) não pode ser entendido como impeditivo da consagração de uma norma processual – tal como a que resulta da norma objecto do presente recurso, ou seja, o artigo 417º, n.º 6, alínea b), do CPP –, na medida em que aquela norma constitucional não impõe, de modo algum, que a decisão sobre a procedência de determinado recurso ordinário seja imediatamente apreciada por um colectivo de juízes (in casu, conferência).
E o mesmo se diga quanto à invocação do artigo 20º, n.º 1 da CRP. Como, aliás, notado pela própria decisão recorrida, o regime de conhecimento de recursos penais consagrado pela reforma processual de 2007, assemelha-se em muito ao próprio regime processual aplicável aos recursos perante o Tribunal Constitucional. Ora, esta mesma 3ª Secção, em conferência (cfr. Acórdão n.º 530/07, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), já teve oportunidade de esclarecer que a consagração legislativa do poder do Relator para proferir decisões sumárias não conflitua, em nada, com os direitos fundamentais de acesso à Justiça e de recurso em processo penal.
Com as devidas adaptações, a fundamentação constante daquele acórdão é inteiramente transponível para os presentes autos. Como é evidente, desta feita, afere-se se a lei pode determinar que um juiz-relator junto de um Tribunal de Relação profira decisão sumária quando seja manifesta a existência de fundamento legal para a sua rejeição [artigo 417º, n.º 6, alínea b), do CPP] e não quando tal questão se revista de simplicidade. De todo o modo, a fundamentação do acórdão supra citado é integralmente transponível para a questão ora em apreço, na medida em que tal opção legislativa não se revela nem desnecessária, nem desadequada, nem tão pouco desproporcionada em sentido estrito.
Por último, refira-se que o recorrente invoca ainda o artigo 32º, nº 7, da CRP, mas este tem a ver com os direitos do ofendido em processo e, portanto, não se aplica aos presentes autos em que o recorrente é arguido.
Posto isto, e concluindo, não é inconstitucional, por violação dos artigos 20º, n.º 1, e 32º, n.º 1, ambos da CRP, a norma extraída do artigo 417º, n.º 6, alínea b), do CPP, quando permite ao juiz-relator proferir decisão sumária de indeferimento, em caso de manifesta improcedência do mesmo, decisão essa passível de reclamação para a conferência
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral - Gil Galvão.