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Processo n.º 541/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Veio o recorrente A. reclamar para a conferência da decisão sumária, proferida nos autos, de não conhecimento do objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade por si interposto, pedindo, a final, seja revogada a decisão reclamada e substituída por outra que admita o recurso de constitucionalidade e, em consequência, convide o recorrente a apresentar alegações relativas a três questões de inconstitucionalidade que então identifica.
Fundamenta a reclamação, no essencial, no facto de não ter sido convidado a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso a fim de colmatar as «lacunas evidentes» de que o mesmo padece, como imposto pelo n.º 5 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), o que se justificava, no caso, pois que, relativamente às referidas questões, observou o ónus de tempestiva e adequada suscitação previsto nas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC.
O Ministério Público é de parecer que deve ser indeferida a reclamação porquanto duas das questões de inconstitucionalidade que o reclamante pretende ver apreciadas carecem de conteúdo normativo e, relativamente à terceira, não foi observado, no momento processual próprio, o ónus de suscitação legalmente imposto, pelo que não seria de aplicar, por inútil, o invocado artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC, sendo que, relativamente às demais questões, não se verificam sequer os pressupostos da sua aplicação.
2. Cumpre apreciar e decidir.
Embora o reclamante invoque a ilegalidade da decisão sumária proferida nos autos quanto às oito questões de inconstitucionalidade identificadas no seu requerimento de interposição de recurso, reclamando, quanto a todas elas, a possibilidade que alegadamente lhe foi ilegalmente vedada de o aperfeiçoar, a verdade é que, a final, delimita o objecto da reclamação a três dessas questões, pelo que prejudicadas ficam as demais.
Cumpre, assim, com tal precisão objectiva, verificar se, como pretende o reclamante, se impunha o convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso em vez do não conhecimento do seu objecto, como sumariamente decidido.
As três questões de inconstitucionalidade que o ora reclamante pretende ver apreciadas, tal como resultam enunciadas no requerimento de interposição de recurso (são irrelevantes, para o efeito de delimitação do objecto do recurso, as alterações que, a pretexto do seu mero aperfeiçoamento, nele foram agora introduzidas pelo reclamante), são as seguintes:
«III. (…) constitucionalidade do acórdão que considerou legal o despacho que considerou válidas as escutas que foram feitas com o processo em marcha, pois as escutas não podem valer como prova mas outrossim e apenas como modo de obtenção de prova – Violação do artigo 32.º n.º 4 da CRP.
IV. [inconstitucionalidade] do artigo 188.º do CPP na actual ou na anterior redacção, por violação das garantias de defesa asseguradas pelo artigo 32.º nº 1 da CRP;
V. (…) desconformidade com a lei e com a constituição por violação do artigo 32.º nº 2 e 5 da CRP, [do] acórdão recorrido por ter considerado válida a decisão da primeira instância e confirmação pela Relação de Coimbra, no que concerne à condenação do Recorrente pelo crime de corrupção passiva que teve como interveniente o co-arguido Fernando Gouveia, porquanto a referida condenação foi apenas baseada na valoração do depoimento desse co-arguido e o mesmo, enquanto meio de prova, era legalmente inadmissível pelo que todos os factos dados como provados com base no seu depoimento não podem ser dados como provados».
Considerou o relator, na decisão sumária de que ora se reclama, que, com as questões de inconstitucionalidade indicadas nos pontos III. e V., entre outras que extravasam o objecto da presente reclamação, pretendia o recorrente sindicar as próprias decisões proferidas, no caso concreto, pelos tribunais, no exercício da sua função jurisdicional, e não «(…) o autónomo ou autonomizável critério normativo que lhes serviu de fundamento jurídico (…)», pelo que, tendo «o recurso de constitucionalidade, tal como está estruturado no nosso ordenamento jurídico, (…) por objecto normas jurídicas (e respectiva interpretação) e não decisões jurisdicionais (artigos 280º da Constituição da República Portuguesa e 70.º da LTC)», não estava o recurso, nessa parte, em condições de prosseguir para uma apreciação de mérito.
No que respeita, por seu lado, à questão indicada no ponto IV., decidiu-se não conhecer do objecto do recurso, pelas seguintes razões:
«(…) como tem sido entendimento deste Tribunal Constitucional, incumbe ao recorrente delimitar, com clareza e rigor, o objecto do recurso de constitucionalidade, em sede de requerimento de interposição do recurso, especificando, além do mais, qual a redacção do preceito a que se refere e, tratando-se, como é o caso, de norma complexa, integrada por diversos números, com diferentes comandos normativos, qual o concreto segmento ou dimensão normativa cuja constitucionalidade pretende ver (re)apreciada.
Com efeito, só deste modo pode o Tribunal Constitucional, verificados os restantes pressupostos processuais, formular, em correspondência, um juízo de constitucionalidade que, por determinado no seu conteúdo, esteja em condições de ser compreendido pelo tribunal recorrido e restantes operadores judiciários.
Ora, a referência genérica, sob formulação alternativa, à norma do artigo 188º do CPP, na actual ou anterior redacção, não satisfaz minimamente um tal ónus de clara e perceptível individualização do objecto do recurso de constitucionalidade.
De facto, (…), o sindicado artigo 188º do CPP, embora todo ele atinente a uma matéria comum (formalidades a que devem obedecer as escutas telefónicas) integra, na sua actual estruturação normativa, 13 números diferentes – e, antes da revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 5 números –, alguns dos quais subdivididos em diversas alíneas, com diferentes soluções ou comandos normativos, todos eles susceptíveis de gerar, em abstracto, diferentes respostas ou juízos de constitucionalidade.
Por isso que, também por inobservância, pelo arguido, do referido ónus processual – já, aliás, antes violado aquando da suscitação, em sede de alegações de recurso, da constitucionalidade do «(…) artigo 188º [do CPP] em globo», em que incorreu «num excesso e numa indefinição», como observado pelo Tribunal recorrido (…) – não é possível conhecer, nesta parte, do objecto do recurso de constitucionalidade interposto pelo arguido.».
Confrontado com tais decisões, alega o reclamante, escudando-se em jurisprudência constitucional, que «o convite [ao aperfeiçoamento] só é possível quando ocorra, apenas, uma deficiência no próprio requerimento e não quando, como é o caso, haja falta de um pressuposto de admissibilidade do recurso (…)» (acórdão n.º 33/2009) e que «a incompletude desse requerimento pode justificar o seu aperfeiçoamento salvo quando se trate de acto inútil por ser patente a falta de um pressuposto processual do recurso (…)» (acórdão n.º 18/2009).
Assim, sustenta, «a decisão sumária de não conhecimento do recurso de constitucionalidade (…) sem que seja dado ao recorrente a possibilidade de reparar as insuficiências/imperfeições do recurso, só pode fundar-se na falta dos pressupostos do recurso de constitucionalidade e não na incompletude do respectivo requerimento de interposição (…)».
E volvendo ao caso concreto, conclui:
É, pois, «manifesto que o despacho do qual agora se reclama, quando decidiu pelo não conhecimento do recurso de constitucionalidade, sem dar ao recorrente a possibilidade de completar, ou de corrigir, o recurso, violou os nºs 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC, preceitos que lhe impõem a obrigação de convidar o recorrente a colmatar as deficiências do seu recurso, o que não foi feito, bem como a violação do n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma legal, que estatui só ser admissível a não admissão do recurso, sem prévio convite à sua correcção no caso de estarmos perante uma situação de manifesta improcedência do recurso, ou seja, de o recurso não reunir os requisitos que a lei impõe para a sua admissibilidade, o que (…) não se verificou».
Contudo, é precisamente por aplicação ao caso vertente do entendimento que o reclamante invoca que se impõe a confirmação do despacho reclamado.
Na verdade, o que fundamentou o despacho reclamado não foram os vícios formais do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade mas, precisamente, a não verificação dos pressupostos processuais de que este depende.
Com efeito, o primeiro e básico pressuposto do recurso de constitucionalidade, em quaisquer das suas modalidades, respeita ao carácter necessariamente normativo do seu objecto, pelo que se o recorrente sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional uma concreta decisão judicial, que reputa de inconstitucional, e não as normas jurídicas que a fundamentaram, o recurso não pode prosseguir.
E foi precisamente isso que o ora reclamante fez ao indicar como objecto do recurso as questões de inconstitucionalidade enunciadas nos pontos III. e V. do seu requerimento, as quais, como decorre da sua simples leitura, manifestamente carecem de qualquer conteúdo normativo.
Ora, não está em causa, em tais casos, a simples omissão de indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, o que poderia implicar o ora reclamado direito ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso, mas a indicação de um objecto inidóneo, por carecido de conteúdo normativo, para merecer um juízo de censura constitucional.
Impunha-se, pois, no caso, por inidoneidade do objecto do recurso, o seu não conhecimento, pelo que, por tais razões, é de confirmar o que, a propósito, decidiu o despacho de que ora se reclama.
E também não merece censura o que, relativamente à questão de inconstitucionalidade enunciada no ponto IV. do requerimento de interposição de recurso acima transcrito, decidiu o despacho objecto da presente reclamação.
É que, na observância do ónus de suscitação da uma questão de inconstitucionalidade normativa, tal como está concretizado nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, o decisivo não é a invocação de inconstitucionalidades mas o que, em substância, é desse modo censurado.
Assim, apenas se considerará observado um tal ónus quando do discurso argumentativo usado perante o Tribunal recorrido para fundamentar a pretensão revogatória do recorrente, se surpreenda, com nitidez, qual a norma ou interpretação normativa que se considera violadora da Constituição; mas já não se poderá concluir desse modo quando não se consiga identificar, com clareza, qual a concreta dimensão normativa que, por referência a dado preceito legal, o recorrente reputa de inconstitucional ou quando não se descortina no objecto de censura constitucional qualquer norma jurídica mas a própria decisão judicial, pois que, em tais situações, não está o Tribunal recorrido processualmente obrigado a formular qualquer juízo de inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade, que, por determinado no seu conteúdo normativo, possa ser reapreciado, em recurso, pelo Tribunal Constitucional.
Ora, percorrendo as alegações de recurso apresentadas pelo ora reclamante perante o Supremo Tribunal de Justiça, na parte relevante, verifica-se que o recorrente não identifica, com a clareza exigível, qual a concreta interpretação normativa que, tendo por base o artigo 188º da CRP, viola a Lei Fundamental; o que, ao invés, delas se extrai é, no essencial, um juízo de inconstitucionalidade difusamente dirigido à decisão de ordenar a destruição dos suportes magnéticos das escutas realizadas nos autos – seja porque não se verificavam os pressupostos de que dependia a sua admissibilidade, nos termos do artigo 188.º, n.º 6, do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Dezembro, cuja aplicação reclama, seja porque alegadamente carece da exigida fundamentação legal – com a consequente invalidade, como meio de prova, das transcrições de escutas telefónicas cujo suporte magnético foi destruído sem fundamentação e fora daquele circunstancialismo legal (cf., em particular, conclusões B. 31, B. 32, B. 33 e B. 35).
E a referência isolada e «em globo», em tal contexto argumentativo, à «inconstitucionalização do artigo 188.º, na actual ou anterior redacção, por violação do artigo 32º-1 do diploma fundamental» (cf. conclusão B. 34), não pode objectivamente sustentar conclusão contrária, sendo certo que, por detrás de um tal «excesso» e «indefinição», está, na verdade, como acima demonstrado, a invocação de uma questão de inconstitucionalidade reportada à referida decisão judicial e não a qualquer norma aplicada ou interpretação normativa acolhida pelo Tribunal recorrido.
Assim, não tendo o ora reclamante, quanto a tal questão, observado o ónus de prévia e adequada suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, como também sublinhado no despacho reclamado, não se justificava, por inútil, a prolação do despacho a que alude o invocado n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC.
Impõe-se, por isso, também no que se refere a esta última questão, o indeferimento da presente reclamação.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando-se, em consequência, a decisão sumária proferida nos presentes autos.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de Novembro de 2010.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.