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Processo n.º 195/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Barcelos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, da sentença daquele Tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil (CCiv), na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade.
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1- Os fundamentos que levaram a que o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 23/2006, declarasse a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, não devem ser acriticamente transpostos para as acções de impugnação de paternidade, sobretudo para as propostas pelo marido da mãe.
2- Assim, a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, na versão dada pela Lei n.º 14/2009, de 01 de Abril, ao fixar um prazo, no caso de três anos, para a propositura de acção da impugnação de paternidade, por parte do marido, não viola o direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento de personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
3- Termos em que deverá o recurso ser julgado procedente.»
3. O recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:
«1° - O digníssimo procurador-geral adjunto do Ministério Público do Tribunal Judicial de Barcelos interpôs recurso da douta decisão do tribunal recorrido nos autos, acima identificados.
2° - O objecto do recurso do Ministério Público centra-se na questão da inconstitucionalidade da alínea a) do n.° 1 do artigo 1842.° do C.C., na redacção dada pela Lei n.° 14/2009 de 1 Abril.
3° - Alega ainda o procurador do MP que a ré, Maria dos Prazeres, na contestação, invocou a caducidade da acção quanto ao réu B. porque desde o início da gravidez o autor sabia que não era pai do mesmo e, como tal, o prazo de três anos para intentar a acção já havia caducado.
4° - Mais refere o ilustre procurador do MP que o meritíssimo juiz que proferiu a decisão considerou que o prazo de caducidade da acção em relação ao réu B. teria sido ultrapassado mas que o mesmo juiz considerou tal norma inconstitucional e, como tal, recusou a aplicação de tal norma, considerou que a acção não havia caducado e apreciou a questão de fundo.
5° - Considera o procurador do MP que o senhor juiz do tribunal recorrido deveria ter considerado a alínea a) do n.°1 do artigo 1842.° do C.C., na redacção dada pela Lei n.° 14/2009 de 1 Abril, constitucional e, como tal, não ter apreciado a acção de impugnação por já estar caducada.
6° - No entanto, salvo o devido respeito por opinião em contrário, entende o autor que não assiste qualquer razão ao digníssimo procurador do MP que apresentou o presente recurso.
7° - O procurador do MP afirma: “Em relação ao Réu B. esse prazo já teria sido ultrapassado”.
8° - Contudo, ao contrário do alegado pelo procurador recorrente e como podemos verificar através da sentença, em nenhum momento o meritíssimo juiz do tribunal recorrido considera que o prazo de caducidade de três anos em relação ao Réu B. havia decorrido.
9° - O Senhor juiz do tribunal da primeira instância limita-se a mencionar que a questão da caducidade é levantada pela ré na sua contestação. Não afirma o meritíssimo juiz do tribunal recorrido que a ré demonstrou e provou o decurso do prazo de caducidade.
10º - O ponto 46.° da base instrutória (O autor sempre soube que não era pai do B.-) foi considerado não provado.
11° - Através da fundamentação da sentença, da resposta e fundamentação da base instrutória, é inequívoco que o meritíssimo não considera que os três anos para intentar a acção de impugnação tenham sido ultrapassados.
12° - Tendo em conta o supra alegado, o autor considera que o meritíssimo juiz a quo limitou-se a considerar a norma alínea a) do n.° 1 do artigo 1842.° do C.C. inconstitucional, não a aplicando.
13° - Mesmo que o meritíssimo juiz do tribunal não considerasse a norma da alínea a) do n.° 1 do artigo 1842.° do C.C inconstitucional, uma vez que não foi demonstrado nem provado pelos réus que o autor tinha conhecimento da probabilidade do réu B. não ser seu filho, há mais de três anos, o meritíssimo juiz sempre teria de apreciar a presente acção de impugnação.
14º - O procurador recorrente parte do principio de que ficou demonstrado em sede de audiência de julgamento que o autor soube desde o inicio da gravidez que o réu B. não era seu filho e, como tal, entende o digníssimo procurador que o juiz do tribunal recorrido devia aplicar a alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.° do C.C pela mesma ser constitucional e considerar a acção caducada.
15º - Contudo, tal como já referimos, não foi demonstrado nem provado pelos réus que o autor havia adquirido conhecimento de factos da sua provável não paternidade há mais de três anos da propositura da acção.
16°- Razão pela qual a questão da inconstitucionalidade da norma alínea a) do n.° 1 do artigo 1842.° do C.C nem se coloca.
17º - Se os réus não fizeram prova de que o autor sempre soube que não era pai do Réu B., a acção não se encontra caducada, e é inútil o tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade alínea a) do n.° 1 do artigo 1842.° do C.C.
18° - Qualquer que seja o juízo sobre a constitucionalidade da norma não teria qualquer repercussão no processo, o que obsta ao conhecimento do objecto do recurso.
19° - A decisão de constitucionalidade apresenta, em sede de fiscalização concreta, uma “função instrumental”, ou seja, a decisão da questão de constitucionalidade tem de “influir utilmente na decisão da questão de fundo”, pelo que a respectiva utilidade surge como condição do seu conhecimento (neste sentido, entre muitos outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 169/92, 463/94, 366/96 e 687/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
20° - O Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista, veio formular um juízo de inconstitucionalidade relativamente à referida disposição legal, recusando a sua aplicação no caso concreto, através do acórdão de 27 de Março de 2008.
21º - Essa decisão foi revogada (no que à questão da constitucionalidade respeita) pelo acórdão n.º 589/2007 do Tribunal Constitucional, que não julgou inconstitucional a referida norma.
22° - Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça chamado a reformar a decisão, continuou a negar a revista, mas agora com base no entendimento de que a prova dos factos integradores do decurso do prazo preclusivo do exercício do direito de impugnação, sendo uma excepção peremptória, compete aos demandados.
23° - Os demandados recorreram para o Tribunal Constitucional do acórdão do STJ de 27 de Março de 2008.
24° - E, consequentemente, o Tribunal Constitucional através do acórdão 73/2009 veio confirmar a decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
25° - Em suma, o autor considera que mesmo que o Tribunal Constitucional não se pronuncie pela inconstitucionalidade da norma da alínea a) do numero 1.° do artigo 1842.° do CC, ao contrário do decidido pelo tribunal recorrido, o senhor juiz de primeira instância sempre teria de se pronunciar sobre o mérito da acção uma vez que, tal como acima se demonstrou, os réus não provaram a excepção de caducidade, ou seja, não provaram que o autor tinha conhecimento de factos que tornassem improvável a sua não paternidade há mais e três anos.
26° - Sem prescindir e, assim, não se entendendo, na humilde opinião do autor a norma da alínea a) do número 1.° do artigo 1842.° do CC é inconstitucional.
27° - O autor não considera um erro transpor o acórdão n.° 23/2006 do Tribunal Constitucional para a acção de impugnação de paternidade, ao contrário do alegado pelo procurador recorrente.
28° - Não é infundamentado considerar inconstitucional a norma alínea a) do número 1.° do artigo 1842.° do CC tal como a norma do número 1 do artigo 1817.º do CC, referente à acção de investigação de paternidade.
29° - Na modesta opinião do autor os direitos salvaguardados na acção de investigação de paternidade e de impugnação de paternidade são, na realidade, os mesmos.
30º - Não é o direito do filho de conhecer o pai o mesmo objecto da acção de impugnação de paternidade- Por um lado temos o filho e por outro o pai. Mas não é a mesma realidade- O autor acredita que sim.
31º - Porque tem o direito à identidade do filho um peso superior ao direito de identidade do pai, de tal forma que o número 1 do artigo 1817.º do CC é inconstitucional e a alínea a) do número 1 do artigo 1842.° do CC não o é- Não é este um tratamento discriminatório.
32° - O acórdão do Tribunal Constitucional n.° 609/07 de 11/12/2007, versando sobre a hipótese da acção de impugnação ser intentada pelo filho maior ou emancipado, consigna: “as razões que estiveram na origem da declaração de inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817.°, n.°1 do CC estão outrossim para a disposição contida no artigo 1842.°, n.º1, alínea c) do CC.”
33° - Assim, tendo em conta que o direito de identidade do filho e do pai nas acções de investigação e de impugnação é sempre a mesma questão — a de filiação, não se antevê que o prazo de caducidade para o filho seja inconstitucional e para o pai seja constitucional.
34º - Não concorda, assim, o autor com o procurador do tribunal recorrido ao afirmar existir uma diferença de grau entre a acção de investigação intentada pelo filho e a acção de impugnação proposta pelo pai.
35° - Não apresenta o procurador recorrente um argumento forte para o direito à identidade pessoal do investigante e o direito à filiação do progenitor serem valores constitucionais tratados com distinção e se dar prevalência ao primeiro.
36° - São a estabilidade, paz familiar e o medo do escândalo valores superiores à reposição da verdade da filiação-
37° - Levantando uma mera hipótese académica: pode um filho a qualquer momento investigar ou impugnar a paternidade pondo em causa a estabilidade das relações familiares mas já não o poderá o pai-
38° - O pai na acção de impugnação de paternidade não está apenas a salvaguardar um direito próprio à verdade biológica mas também o direito à identidade do próprio filho.
39° - É sempre uma questão de filiação, daí que o facto do investigando poder sempre impugnar leva a considerar, por uma questão igualdade e até eficácia jurídica, que a impugnação do progenitor possa sempre ser intentada.
40° - Tendo em conta a importância da verdade biológica, a reposição daquela nunca pode ser considerada tardia. Quando a filiação se encontra desconforme com a verdade, esta deve ser reposta.
41° - Hoje em dia com testes absolutamente fiáveis e com o resultado inequívoco, constante do processo, relativamente ao réu B., não é aceitável que um tribunal despreze o resultado, em que a paternidade está efectivamente excluída, e decida em sentido contrário.
42° - Quer autor quer réus, abdicaram dos pedidos de indemnização cíveis, abdicaram da sua prova na totalidade e chegaram a um entendimento quanto ao reconhecimento da não paternidade do réu B. perante um resultado inequívoco e o reconhecimento da verdade.
43° - Pese embora estejamos perante matéria indisponível, não se percebe uma decisão contra o entendimento das partes, contra um teste inequívoco e contra a verdade biológica.
44° - Em suma, o direito de identidade do filho e o direito à verdade biológica do pai nas acções de investigação e de impugnação são sempre a mesma questão — a de filiação, não se antevê que o prazo de caducidade para o filho seja inconstitucional e para o pai seja constitucional.
45° - Por tudo o supra exposto, entende o autor que a norma da alínea a) do numero 1 do artigo 1842.° do CC é inconstitucional por violar o direito fundamental à verdade biológica. o direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade do progenitor.
Termos em que,
Deve negar-se provimento ao recurso do digníssimo procurador do Ministério Público, nos termos supra expostos, fazendo assim Vs.»
4. Notificado o recorrente Ministério Público para se pronunciar sobre a questão da (in)utilidade do recursos suscitada nas contra-alegações, veio dizer o seguinte:
«1°
Na decisão recorrida o Senhor Juiz recusou expressa e inequivocamente aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do n.° 1, alínea a), do artigo 1842.° do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.° 14/2009, de 1 de Abril, que fixa um prazo de três anos para a propositura da acção de impugnação da paternidade por parte do marido da mãe.
2°
Tendo sido invocada pela ré, a caducidade do direito do autor em impugnar a paternidade, o Senhor Juiz concluiu que “não caducou, pois, o direito do autor”.
3º
Efectivamente, na lógica da decisão, se o Senhor Juiz entende, como consequência da recusa de aplicação da norma por inconstitucionalidade, que a acção podia ser posta a todo o tempo, não tinha necessidade de averiguar a eventual intempestividade na sua propositura.
4º
Portanto, toda a matéria de facto respeitante ao prazo de propositura da acção, não foi sequer apreciada, porque irrelevante.
5º
Talvez de uma forma não absolutamente rigorosa - temos que reconhecer -foi o que dissemos nas Alegações oportunamente apresentadas.
6.°
Quanto à utilidade no conhecimento do recurso, reafirmamos o que já anteriormente dissemos.
7º
Na verdade - mesmo para quem entenda que a questão da utilidade também se coloca nos recursos obrigatórios interpostos ao abrigo da alínea a) do n.° 1 do artigo 70.° da LTC - não pode falar-se em inutilidade no conhecimento do recurso, se se puder vislumbrar alguma utilidade, ainda que apenas remota ou eventualmente.
8°
Ora, cabendo recurso ordinário da decisão - já interposto - o outro fundamento, que não o de inconstitucionalidade, não está consolidado na ordem dos tribunais judiciais, não podendo, pois, concluir-se já, taxativamente, pela inutilidade no conhecimento do presente recurso.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A) Questão prévia: (in)utilidade do recurso
5. O recorrido A. suscita a inutilidade do presente recurso de constitucionalidade por considerar que, independentemente do entendimento sobre a constitucionalidade da norma em causa, sempre o tribunal recorrido teria de conhecer do mérito da acção, uma vez que «não foi demonstrado nem provado pelos réus que o autor havia adquirido conhecimento de factos da sua provável não paternidade há mais de três anos da propositura da acção».
O recorrente Ministério Público pronunciou-se no sentido da utilidade do recurso, invocando, por um lado, que a sentença recorrida não apreciou a matéria de facto respeitante ao prazo de propositura da acção, por a mesma ser irrelevante face à decisão, aí tomada, de recusar, por inconstitucionalidade, a aplicação da norma que contém tal prazo, e salientando, por outro, que o presente recurso, que além do mais é um recurso obrigatório nos termos da lei, sempre terá utilidade na medida em que cabe recurso ordinário da sentença aqui recorrida, pelo que qualquer decisão, dela constante, quanto ao decurso do prazo em causa nunca seria a decisão definitiva.
Cumpre decidir.
Independentemente de questão de saber se o problema da utilidade do recurso se pode colocar da mesma forma no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o certo é que no presente caso não se verifica a inutilidade invocada.
Resulta do teor da sentença recorrida que o tribunal não tomou posição quanto à questão do decurso do prazo de caducidade de três anos para a acção de impugnação de paternidade poder ser intentada pelo marido da mãe, não tendo, designadamente, fixado a matéria de facto necessária para o efeito. E assim foi porque a sentença recorrida, passando logo a analisar a questão da constitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, pronunciou-se pela respectiva inconstitucionalidade, o que tornou desnecessário apreciar o decurso de tal prazo de caducidade.
Com esse juízo, o tribunal recorrido não enunciou um fundamento da decisão quanto ao mérito da causa, apenas afastou, in limine, uma excepção peremptória, cuja ocorrência obstaria ao conhecimento do fundo. O eventual provimento do recurso de constitucionalidade não elimina, nesta configuração, um dos fundamentos da decisão – contrariamente ao que se passa quando estamos perante fundamentos alternativos – tendo antes como consequência abrir uma hipótese de impossibilidade de apreciação do fundo da causa. De facto, um juízo de constitucionalidade forçará uma decisão prévia quanto a saber se a acção foi instaurada em prazo. E então, das duas uma: ou se responde afirmativamente, e, nesse caso, chegar-se-á a uma decisão de fundo, que, em via de recurso ordinário, pode não ser coincidente com a agora recorrida, mas que só o será por razões que nada têm a ver com o objecto do presente recurso de constitucionalidade; ou, inversamente, dá-se o prazo legal como já extinto e, a ser assim, fica vedada a possibilidade de pronúncia quanto ao mérito da causa.
É justamente ao abrir campo a esta última hipótese que o recurso de constitucionalidade é susceptível de se repercutir utilmente no processo, pois a decisão nele emitida pode levar a um desfecho de significado estruturalmente diferente do que cabe à decisão recorrida. É certo que o não conhecimento, tal como a improcedência da acção por falta de provas, importa a preterição da pretensão do autor em ver judicialmente reconhecido que não é pai do filho que lhe é atribuído pela presunção marital. Mas, ainda assim, trata-se de decisões de natureza e alcance distintos, mesmo do ponto de vista dos interesses pessoais envolvidos.
E, de qualquer forma, convém não esquecer que a vontade do legislador, claramente expressa por meio dos prazos de caducidade constantes da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, foi a de que, para além de certos limites temporais, o direito de impugnar a paternidade já não possa ser exercido pelo pai, o mesmo é dizer, já não possam ser tidas em consideração, ponderadas e debatidas em tribunal razões que alegadamente contrariam a presunção legal. Na hipótese a que nos estamos a referir, ao conhecer de fundo, e independentemente do sentido da decisão, o julgador está a desrespeitar essa vontade, impedindo um desejado efeito preclusivo com o único fundamento da sua desconformidade à Constituição. Cabe ao Tribunal Constitucional, chamado a decidir por recurso obrigatório do Ministério Público, pronunciar-se quanto a esse alegado vício da norma desaplicada.
Improcede, assim, a invocada inutilidade do recurso.
B) (In) constitucionalidade da norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil
6. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade.
Como salienta o representante do Ministério Público, não é perfeitamente claro se é a fixação de um prazo, em si mesma, que a sentença recorrida questiona, ou se é o concreto regime do prazo estabelecido, designadamente, a sua duração de três anos, que é tido por desconforme à Constituição. E essas são distintas questões de constitucionalidade, que convocam padrões de valoração não coincidentes. Incidindo, na verdade, a questão de constitucionalidade sobre a primeira dimensão normativa, cumprirá ajuizar se é inadmissível qualquer limitação temporal do exercício do direito de impugnar a paternidade, o mesmo é dizer, se é constitucionalmente imposta a imprescritibilidade da correspondente acção; versando ela sobre a segunda – o que, evidentemente, pressupõe uma resposta negativa à questão anterior - estará em causa decidir se os termos em que concretamente se estabelece a caducidade da acção têm ou não um alcance excessivamente restritivo de uma posição do impugnante constitucionalmente protegida.
Em nosso entender, todavia, a dúvida, quanto à definição precisa da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos, não pode ser desfeita no primeiro sentido, pois não cremos que possa deduzir-se da decisão recorrida, com um mínimo de certeza, que é a simples existência de um prazo, qualquer que ele seja, o regime normativo nela questionado.
A referência, algo elíptica, que na decisão se faz ao conteúdo da norma desaplicada, sugere, até, de algum modo, a interpretação contrária, ao dizer-se, que “tal limitação temporal é inconstitucional, como já o era na versão anterior o limite de dois anos” [itálico nosso]. Não seria essa, convenhamos, a formulação adequada para exprimir a ideia de que a simples consagração de um regime de caducidade, independentemente do prazo fixado, não se coaduna com imperativos constitucionais.
É certo que a sentença apoia-se no decidido no acórdão do STJ, de 7.07. 2009, e neste expressamente se estabeleceu que «o prazo previsto no art. 1842.º, n.º 1, alínea a), do C. Civil, mesmo na actual redacção, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional».
Mas a invocação deste acórdão é feita a título puramente argumentativo, para reiterar a tese, nele defendida, de que, estando em causa, nas acções de impugnação de paternidade, o “direito fundamental à identidade pessoal”, o “direito fundamental à integridade pessoal” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, tal como nas acções de investigação de paternidade, valem aqui as razões que estiveram na origem do julgamento de inconstitucionalidade, emitido pelo Acórdão n.º 23/2006, sobre a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil.
Dados os termos pouco esclarecedores, quanto a este ponto, da decisão recorrida, o controlo de constitucionalidade a efectuar, em recurso, por este Tribunal, não pode dispensar-se de apreciar a conformidade constitucional do prazo estabelecido no artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, se se der por assente que a Constituição não se opõe à caducidade, em si, da acção de impugnação da paternidade.
7. Como é sabido, a matéria da determinação jurídica da filiação tem estado, nas últimas décadas, sob revisão, assumindo hoje o respeito pela verdade biológica um peso de ponderação muito superior ao que, no passado, lhe era atribuído. Esse acréscimo de valorização prescritiva foi fruto da acção conjugada de dois factores, de natureza diferenciada: por um lado, a possibilidade, que o avanço científico propiciou, da identificação segura, não só negativa como positiva, do vínculo de sangue, através de prova pericial (retirando, assim, praticamente, todo o valor ao tradicional argumento do enfraquecimento das provas com o decurso do tempo); por outro, uma forte acentuação, na ordem jurídico-constitucional e na consciência colectiva, de valores da personalidade, entre os quais avultam os ancorados nos direitos à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade.
Esta «alteração dos dados do problema, constitucionalmente relevantes (…) não deixa incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade.», como justamente se reconheceu no Acórdão n.º 486/2004.
Esta linha evolutiva teve repercussões claras na jurisprudência deste Tribunal, quanto à apreciação dos prazos de caducidade para as acções de investigação de paternidade. De facto, contrariando sucessivas pronúncias no sentido de que eles não violavam qualquer parâmetro constitucional – cfr. os Acórdãos n.ºs 99/88, 413/89, 451/89, 311/95, 506/99 e 525/2003 – o Acórdão n.º 456/2003 julgou inconstitucional o artigo 1817.º, n.º 2, na medida em que estabelecia um prazo para o filho intentar a acção de investigação assente em factos puramente objectivos. Posteriormente, o Acórdão n.º 486/2004 julgou inconstitucional o regime geral do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil. Este juízo foi confirmado, em Plenário, pelo Acórdão n.º 11/2005. O Acórdão n.º 23/2006 proferiu declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1873.º, conquanto nela se estabelecia a extinção, por caducidade, do direito de investigar a paternidade em regra a partir dos 20 anos de idade do filho.
Mais recentemente, os Acórdãos n.º 626/2009 e 65/2010 julgaram inconstitucionais a norma do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, o primeiro, e a do n.º 4 do mesmo artigo, o segundo, por se ter entendido que os prazos especiais nelas previstos – respectivamente, de seis meses posteriores à cognoscibilidade de escrito em que o pretenso pai reconheça a paternidade, e de um ano a contar da cessação do tratamento como filho – eram desproporcionadamente exíguos.
Também no plano legislativo se processaram alterações significativas do regime, através da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, com considerável alargamento de todos os prazos de propositura das acções de investigação (e de impugnação) de paternidade.
Deve salientar-se, todavia, que este movimento de reforço da tutela do interesse do filho em conhecer as suas origens genéticas e sociais, se consolidou o princípio de verdade biológica como “estruturante de todo o regime legal”, de forma alguma lhe atribuiu autónoma dignidade constitucional (cfr. Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de direito de família, II, tomo I, Coimbra, pág. 52). A verdade biológica “não pode fundamentar, por si só, um juízo de inconstitucionalidade”, como salientou, relativamente à norma que fixa um prazo de propositura da acção de impugnação da paternidade, o Acórdão n.º 589/2007. Muito menos foi alguma vez aceite que esse princípio seja dotado de valor absoluto, que o leve a sobrepor-se a todos os demais. A verdade biológica impõe-se na medida em que tal seja exigido por outros princípios e não contrariado por princípios contrapostos eventualmente prevalecentes.
Digno de nota é também o facto de o Tribunal nunca ter assumido que a imprescritibilidade é o único regime constitucionalmente conforme. As decisões de inconstitucionalidade foram sempre tomadas por razões atinentes à exiguidade do prazo estabelecido ou/e ao seu termo inicial.
8. Feita esta breve rememoração de enquadramento – para mais desenvolvimentos, quanto aos parâmetros de valoração dos prazos de caducidade da acção de investigação de paternidade, cfr., sobretudo, o Acórdão n.º 486/2004 -, há que volver a atenção para a acção de impugnação de paternidade por parte do marido da mãe, onde especificamente se situa a questão de constitucionalidade a decidir.
Deparamos aqui com três arestos, todos no sentido da não inconstitucionalidade.
Pronunciando-se ainda na vigência do regime anterior à Lei n.º 14/2009, que alargou o prazo fixado na norma impugnada de dois para três anos, o Acórdão n.º 589/2007 decidiu “não julgar inconstitucional, por violação do direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil”.
Sobre a impossibilidade de impugnação da paternidade a todo o tempo, e em recurso de uma recusa de aplicação da norma já na sua actual redacção, se pronunciou a Decisão Sumária n.º 240/2009, confirmada, em conferência, nesta 2.ª Secção, pelo Acórdão n.º 593/2009. Naquela decisão, e por reporte ao Acórdão n.º 589/2007, concluiu-se do seguinte modo:
«Assim, não havendo aqui que cuidar especificamente do limite legal concretamente imposto, subscreve o relator a maiori ad minus o juízo anteriormente efectuado por este Tribunal, na medida em daí enunciativamennte resulta não ser constitucionalmente imposto a ausência de limitação temporal, por prazo de caducidade, no que concerne à impugnação da paternidade pelo presumido progenitor.
Anote-se, no entanto, que a pronúncia de não inconstitucionalidade que agora se emite é, apenas, a de que não é inconstitucional uma norma que não admite a impugnação a todo o tempo, não conhecendo o Tribunal da questão de saber se é constitucionalmente inadmissível que o presumido progenitor não possa impugnar a paternidade no prazo ajustado ao decurso do tempo verificado na concreta situação ou que esse prazo não deva ser computado a partir do conhecimento dos factos evidenciados através de meio seguro de prova.»
Decidiu-se, em conformidade, não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842.º, n,º 1, alínea a), do Código Civil, “na medida em que limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade”.
Por último, o Acórdão n.º 179/2010 decidiu não julgar inconstitucional a referida norma, “quando, ao fixar um prazo de 2 anos, limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade”.
9. Verifica-se que o Tribunal, decidindo sobre prazos de caducidade que, na redacção anterior à Lei n.º 14/2009 eram, quanto à duração, exactamente iguais, tomou posições diferenciadas, pronunciando-se pela inconstitucionalidade do constante do artigo 1817.º n.º 1, do Código Civil, e proferindo decisão inversa, no que respeita ao fixado na alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º, n.º 1.
Em face deste dado, e perante a tese defendida na decisão recorrida de que as mesmas razões que estiveram na origem do juízo de inconstitucionalidade emitido, no Acórdão n.º 23/2006, sobre aquela primeira norma justificam idêntica decisão quanto ao prazo de caducidade da acção de impugnação de paternidade, cumpre reiterar a posição já anteriormente tomada, designadamente nos Acórdãos n.ºs 589/2007 e 179/2010, de que está vedada a transposição automática, de um para outro sector normativo, dos fundamentos da decisão, tendo em conta a não coincidência perfeita das coordenadas valorativas a ponderar e do grau da sua incidência, em cada uma das situações.
Não se nega, com a chamada de atenção para esta diferença específica, que ambas as soluções levantam uma questão de constitucionalidade a apreciar e a decidir no mesmo terreno normativo da eventual violação dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade.
Quanto ao primeiro, é hoje firme o entendimento de que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do direito fundamental à identidade pessoal, tendo esse parâmetro sido decisivo para fundamentar, nos acórdãos acima referidos, a inconstitucionalidade dos n.ºs 1, 3 e 4 do artigo 1817.º do Código Civil. Mas deve admitir-se que o direito à identidade pessoal engloba também, na sua esfera de protecção, o interesse em não manter um vínculo não correspondente à verdade biológica. Ele não actua só em sentido positivo, como direito de cada um a conhecer e a ver juridicamente reconhecido aquilo que é, mas também em sentido negativo, como direito de cada indivíduo de excluir, como factor conformador da identidade própria, aquilo que não é. Nessa medida, o marido da mãe também pode invocar, em abono da sua pretensão negatória da paternidade, o direito à identidade pessoal – no sentido de que tanto o direito à identidade pessoal com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade podem ser invocados para “impugnar os laços jurídicos que sejam contrários à verdade biológica”, cfr. Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ibidem.
Simplesmente, quando invocado para excluir a paternidade, este direito não se apresenta, por um lado, dotado de exactamente a mesma carga valorativa do que quando accionado pelo filho com vista à investigação de paternidade e confronta-se, por outro, com valores e interesses contrários, para além dos invocados para legitimar a consagração de prazos de caducidade do direito de investigar.
No que diz respeito ao primeiro aspecto, não sofre dúvida de que o conhecimento, por cada um, da sua ascendência é uma componente essencial do direito à identidade pessoal, na sua dimensão de direito à historicidade pessoal. A acção de reconhecimento judicial da paternidade visa a constituição de um vínculo sem o qual resulta nuclearmente afectado o conteúdo identitário da individualidade do investigante, por falta de um elemento basilar da sua conformação. Já com a acção de impugnação de paternidade pretende-se a destruição de um vínculo estabelecido, formado por presunção legal, assente num juízo de probabilidade. A preclusão, pelo decurso do prazo, do direito de intentar a acção não tem, neste caso, o mesmo significado para a esfera pessoal do interessado, a mesma projecção radicalmente empobrecedora da personalidade.
Por isso, ainda que não seja constitucionalmente imposta uma diferenciação de tratamento jurídico, ela não é liminarmente rejeitada, do ponto de vista da tutela do direito à identidade pessoal, desde logo porque não é de atribuir idêntico peso, como factor de ponderação, a cada uma das dimensões da identidade. Assim se compreende que sistemas jurídicos que não estabelecem qualquer limite temporal para as acções de investigação de paternidade, em tutela maximizada ao direito de identidade pessoal, quando em veste de direito ao conhecimento das origens, imponham, em contrapartida, prazos de caducidade do direito de impugnação.
É também esta diferença de grau de intensidade valorativa que justifica o tratamento à parte que merece a previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 1842.º De facto, quando é o filho o interessado na impugnação, a acção representará o primeiro passo necessário para o estabelecimento, num segundo momento, de um vínculo de filiação correspondente à verdade biológica. Nesta situação, a impugnação da paternidade presumida apresenta-se «[…] como um mecanismo essencial no iter processual que o impugnante-investigante tem de percorrer de forma a alcançar a definição e estabelecimento da verdade biológica da sua ascendência. Com efeito, existindo uma paternidade estabelecida e devidamente registada, a fixação de outra depende impreterivelmente do afastamento daquela.», como se escreveu no Acórdão n.º 609/2007. A impugnação de iniciativa do filho posiciona-se como “um nível básico de tutela do direito a conhecer as origens biológicas” (Rafael Vale e Reis, O direito ao conhecimento das origens genéticas, Coimbra, 2008, 234), pelo que o prazo de caducidade para ela fixado merece uma ponderação muito semelhante à adequada para os prazos de caducidade das acções de investigação.
Mas, também por isso mesmo, o juízo de inconstitucionalidade que recaiu, nos Acórdãos n.ºs 609/2007 e 279/2008, sobre o prazo de caducidade fixado na alínea c) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil (na redacção anterior à Lei n.º 14/2009), não é extensível, sem mais, à previsão de prazo constante da alínea a) do mesmo artigo, objecto (na actual redacção) da questão de constitucionalidade levantada nos presentes autos.
10. Para além de a dimensão do direito à identidade pessoal do marido da mãe, afectada com a extinção do direito de impugnar, não ser valorativamente equiparável à que está em causa, numa acção de investigação de paternidade, podem invocar-se razões específicas a ponderar, como justificativas da consagração de um prazo de caducidade para o exercício daquele direito. Elas foram apontadas no Acórdão n.º 589/2007, nos seguintes termos:
«Sabe-se que as razões que justificam a fixação de um prazo de caducidade para a acção de impugnação de paternidade não são inteiramente coincidentes com as que tinham determinado a perempção da acção de investigação de paternidade, pois que para além das considerações de natureza pragmática que se prendem com a certeza e a segurança jurídica e a eficácia das provas, releva ainda com particular acuidade, naquele primeiro caso, a protecção da família conjugal. É esse interesse que explica que um terceiro (pretenso progenitor) não tenha legitimidade ex novo para afastar a presunção de paternidade do marido da mãe e obter o reconhecimento da sua paternidade, e só possa intervir processualmente através do Ministério Público (mediante requerimento que lhe deverá ser apresentado em prazo muito curto) e depois de previamente reconhecida a viabilidade do pedido (artigo 1841.º do Código Civil). O direito de impugnação da paternidade está, assim, apenas, na disponibilidade directa dos membros da família, no sentido de que só o marido, a mãe e o filho é que se encontram autonomamente legitimados a intentar a acção. E não está, por isso, excluído que a situação ode discrepância entre a paternidade presumida e a realidade biológica se mantenha sempre que não haja interesse concreto por parte dos interessados na destruição da paternidade presumida».
Nesta situação, releva, como factor de ponderação, a protecção da família constituída, ou, como se destaca no mencionado Acórdão, «o interesse geral da estabilidade das relações sociais e familiares e ao sentimento de confiança em que deve basear-se a relação paternal, quando se trate de filhos nascidos na vigência do matrimónio». A relação paterno-filial seria necessariamente posta em crise, se colocada numa situação de permanente precariedade e incerteza, por sujeita a ser abolida por acção, exercitável a todo o tempo, sem qualquer preclusão, do pai presumido.
11. Mas não são apenas interesses gerais ou valores de organização social, em torno da instituição familiar, que podem justificar a consolidação definitiva, na ordem jurídica, a partir de determinado limite temporal, de uma paternidade não correspondente à realidade biológica.
Também quanto às posições subjectivas em jogo, na acção de impugnação de paternidade se detecta uma relevante diferença em relação às que se confrontam numa acção de investigação de paternidade. Nesta, o eventual interesse do investigado em não assumir um vínculo de paternidade correspondente à realidade biológica não é merecedor de tutela, pelo menos do ponto de vista do direito à identidade pessoal e à auto-conformação da personalidade, não devendo se reconhecida “uma faculdade de o pai biológico se eximir à responsabilidade jurídica correspondente” (Guilherme de Oliveira, “Caducidade das acções de investigação”. Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito de Família, 2004, págs. 7 s., 11).
Já o eventual interesse daquele que é tido como filho em manter esse estatuto não pode ser inteiramente desconsiderado (como seria com um regime de imprescritibilidade). Sobretudo quando o vínculo jurídico tem tradução consistente no “mundo da vida” familiar e social, gerando, como é normal, laços afectivos, a destruição retrospectiva desse vínculo acarreta (ou agrava) a perda de sentido de uma componente nuclear da memória e da historicidade pessoais, da auto-representação de si, por parte de quem é filho. Valores também situados na esfera da identidade pessoal podem ser invocados em tutela do interesse do outro sujeito da relação paterno-filial em ver como definitivamente adquirido o estatuto de que goza, após o decurso de um certo prazo em que o pai teve efectiva oportunidade de o impugnar judicialmente. Outros factores de identidade pessoal podem sobrepor-se, na óptica do filho, aos de ordem genética, não podendo ser dado por seguro que o seu interesse, mesmo excluindo dimensões patrimoniais, corresponda sempre à coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico. Esse interesse, quando exista, é, aliás, susceptível de ser autonomamente exercitado, pois ao filho é reconhecida legitimidade própria para impugnar (alínea c) do n.º 1 do artigo 1842.º).
12. Acresce um outro elemento diferenciador, respeitante ao termo inicial do prazo de caducidade, também ele contribuindo para evidenciar que não há paridade entre a previsão do n.º 1 do artigo 1817.º e a da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º, por um lado, e fornecendo, por outro, uma razão adicional justificativa desta última norma.
Temos em mente o segmento, já constante da versão anterior e mantido, nos mesmos termos, na redacção da Lei n.º 14/2009, segundo o qual o prazo se começa a contar desde que o marido “teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade”. Resulta daqui que o início de contagem não se dá por referência ao momento de verificação de um evento externo (o nascimento do filho, por exemplo, como noutras legislações), mas só se produz com a cognição, na esfera subjectiva do marido da mãe, de factos indiciadores da sua não paternidade. E note-se que se exige o efectivo conhecimento desses factos, não se contentando a lei com a sua cognoscibilidade. Só quanto ao alcance negatório do vínculo biológico que seja de conferir a esses factos está o intérprete habilitado a formar um juízo objectivo (quanto à possibilidade de, a partir deles, se concluir pela não paternidade).
Este regime autoriza a atribuir valor significante à inércia do pai presumido, em sentido abdicativo do direito a impugnar, ou, no mínimo, a dirigir-lhe uma imputação de auto-responsabilidade. Com a fixação de um termo inicial subjectivo (logo, acolhedor das variáveis casuísticas) e a não consagração de um prazo máximo objectivo fica garantido o que, pelo menos neste âmbito, é essencial: a concessão de uma oportunidade real ao pretenso pai de averiguar, pelos trâmites processuais adequados, se o vínculo corresponde à realidade biológica, e de se libertar dele, em caso negativo. Se lhe chegam ao conhecimento (em qualquer momento) dados que lhe permitiriam duvidar seriamente da existência de um vínculo natural e ele nada faz, em prazo legal que só decorre a partir desse momento e possa ser tido de duração suficientemente adequada, sibi imputet, extinguindo-se, por força desse comportamento conscientemente omissivo (não pelo decurso de um prazo objectivo), o direito de impugnar a presunção de paternidade.
São aqui inteiramente válidas as considerações expendidas no Acórdão n.º 626/2009, a propósito do prazo, também subjectivo, do n.º 3 do artigo 1817.º, no sentido de que «tendo o titular deste direito conhecimento dos factos que lhe permitem exercê-lo é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a propositura da respectiva acção, após esse conhecimento, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada daquele». Em matéria que contende com o estado civil de um outro, estando em causa um vínculo estabelecido, constitutivo da personalidade, não só do impugnante, como também do filho, não é injustificado nem excessivo fazer recair sobre o pai um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação (para o que hoje existem meios peremptoriamente concludentes), não fazendo prolongar, através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de incerteza indesejável.
Essa tem sido também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, no caso Rasmussen contra Dinamarca, em sentença de 28 de Novembro de 1984, decidiu que, em acções de impugnação, “a fixação de prazos de caducidade tem uma justificação objectiva e razoável”. Essa posição foi mantida, mais recentemente, na sentença de 12 de Janeiro de 2006 (Mizzi contra Malta).
13. Apurado que um regime de caducidade da acção de impugnação de paternidade, com prazo a contar desde o conhecimento, pelo marido da mãe, “de circunstâncias de que possa concluir-se a não paternidade” não enferma, em si mesmo, de qualquer inconstitucionalidade, resta ajuizar da conformidade constitucional da duração concretamente estabelecida.
Foi neste ponto que incidiu a alteração introduzida, na norma em causa, pela Lei n.º 14/2009: foi aumentado para três o prazo de dois anos anteriormente vigente.
Nunca o Tribunal se pronunciou, até à data, sobre o novo regime de duração do prazo de caducidade. Mas, o Acórdão n.º 589/2007 e, na sua esteira, o Acórdão n.º 179/2010 debruçaram-se sobre o prazo de dois anos, tendo o primeiro concluído, sobre a questão, em posição a que o segundo aderiu:
«Este parece ser um prazo razoável e adequado à ponderação do interesses acerca do exercício do direito de impugnar e que permitirá avaliar todos os factores que podem condicionar a decisão».
É de manter este juízo, cuja validade sai reforçada com o alongamento do prazo. Ainda que a decisão de avançar com um processo de impugnação exija um período de maturação e de reflexão que não se coaduna com a pressão de um prazo excessivamente curto, pela natureza dos interesses envolvidos e pelas implicações, qualquer que seja o resultado, que advêm de uma tal decisão, cremos que o prazo de três anos é suficiente para garantir a viabilidade prática do exercício do direito de impugnar a paternidade, não o impedindo ou dificultando gravemente.
Conclui-se, pois, que também quanto à duração do prazo de caducidade estabelecido, a norma do artigo 1842.º, n.º1, do Código Civil não padece de inconstitucionalidade.
14. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar não inconstitucional a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade;
Consequentemente, ordenar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 23 de Novembro de 2010.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.