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Processo n.º 728/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Tribunal da Relação do Porto, A. reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º [por lapso, o reclamante indica o n.º 3 do artigo 78.º-A, que está previsto apenas para a reclamação de decisão sumária proferida pelo Relator no Tribunal Constitucional] da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal que não admitiu o recurso, por si interposto, para o Tribunal Constitucional.
O despacho reclamado tem o seguinte teor:
Notificado do indeferimento da reclamação o arguido apresentou requerimento do seguinte teor: vem ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional interpor recurso para o digníssimo tribunal constitucional.
Liminarmente se dirá que não se mostram preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso.
Vejamos:
Art. 70° da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro [Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional]:
1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais:
(...)
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;
Não refere o recorrente, em inobservância clara do disposto no art. 75°-A n.° 2 da lei n.° 28/82, a peça processual onde teria suscitado a questão da constitucionalidade, o que poderia originar um convite do relator nos termos do art. 75º-A da LTC. Acontece que tal convite se mostra inútil uma vez que compulsados os autos se verifica que, na reclamação, não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade de qualquer norma.
Donde se conclui que o recorrente não deu tempestivamente cumprimento ao ónus, previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º e nº 2 do art.° 72 da LTC, de suscitar de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida qualquer questão de constitucionalidade.
Conclui-se assim que não se mostram preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso, pelo que o mesmo vai indeferido, art. 76 nºs 1 e 2 da LTC.
2. Na reclamação apresentada junto deste Tribunal, o reclamante veio dizer o seguinte:
A., arguido nos presentes autos, VEM, reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.° 3 do artigo 78.°-A da Lei n.° 28/82 (Lei Tribunal Constitucional), da Decisão Sumária de 25 de Junho de 2008, que decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade por ele interposto.
O Tribunal a quo entende que “O Recurso para o Tribunal Constitucional não é admissível pois se reporta à decisão que indeferiu a reclamação e não a qualquer norma em que a mesma decisão se tenha baseado.
Todavia, nesta parte, o arguido alude aos art.s 29° e 32° da CRP, por entender que a não admissão do recurso em causa configura uma violação de tais artigos.
Por outro lado, é claro que o arguido/recorrente não poderia arguir em momento anterior tal inconstitucionalidade – pela simples razão de não poder prever que a mesma se registaria em fase de Recurso!
É a interpretação que o Digno Supremo Tribunal de Justiça fez dos preceitos invocados (artigo art. 2°, n° 4 do Código Penal) que gera o vício da inconstitucionalidade que se invocou.
Se o recorrente não pudesse invocar as inconstitucionalidades resultantes da interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça) ficaria fora da alçada do Tribunal Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade que cabe a esse alto tribunal.
Como é óbvio, também nesta particular questão a arguida/recorrente não podia pressupor, intuir, que o Digno Supremo Tribunal de Justiça, agiria como agiu, e interpretaria as normas do Código Penal e da própria Constituição como interpretou e aplicou.
É com a prolação da Decisão, e só nessa altura, que se tornam patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático, pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem jurídica portuguesa:
Assim sendo, o recorrente tem o Direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional no sentido de controlar a constitucionalidade:
a) Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto no aludido art. 2°, pelo Insigne Supremo Tribunal de Justiça, ao não admitir o recurso em causa constitui uma violação dos artigos 29° e 32° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso do Tribunal da Relação do Porto, para o Supremo Tribunal de Justiça.
É, pois, um vício que se regista somente na Decisão, que se pretende seja analisado à luz das normas da Constituição.
Desta forma, tem a recorrente o direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
3. O requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade tem o seguinte teor.
A., arguido nos presentes autos, VEM, ao abrigo do disposto na alín. b) do n° 1 do art.° 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, INTERPOR RECURSO, para o Digníssimo Tribunal Constitucional, nos termos e pelos fundamentos seguintes termos:
O arguido interpôs recurso em 02.03.2009, da decisão que revogou a suspensão da pena e não procedeu ao pagamento da taxa de justiça inicial, pretendendo beneficiar do actual art.° 15° c) do Regulamento das custas judiciais, entretanto entrado em vigor, por ser uma lei mais favorável.
Tendo em conta que o processo em apreço diz respeito a factos praticados 2001 e que o novo Regulamento das custas entrou em vigor em Abril de 2009, estamos na presença do problema da aplicação da Lei no Tempo.
… «Num caso de sucessão de leis penais, havendo normas mais favoráveis num e noutro dos regimes, há que comparar as consequências concretas que da aplicação de uma e outra lei resultam e aplicar de maneira completa aquela cujos resultados sejam menos gravosos para o arguido.»
Assim, analisando ambos os regimes penais, facilmente concluímos que o anterior é mais favorável ao arguido.
Como refere Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, I, 2001, p. 281, «para se determinar se uma Lei é mais favorável ao arguido do que outra, avaliam-se as consequências no seu conjunto e no caso concreto» (ponderação concreta).
Pertinentemente, Américo Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, 2° ed, Coimbra Editora, 1997, p. 191, salienta que não é necessário proceder a uma avaliação concreta, quando é evidente, numa simples consideração abstracta, que uma das Leis é claramente mais favorável que a outra.
O que se verificou no caso em apreço.
O STJ, por Ac. de 03/11/2005, publicado no DR Série I-A, de 19/12/2005 (Ac. nº 11/2005) decidiu que «sucedendo-se no tempo Leis sobre o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional, não poderão combinar-se, na escolha do regime concretamente mais favorável, os dispositivos mais favoráveis de cada uma das Leis concorrentes».
Aliás, tal Venerando Tribunal, na motivação do Assento publicado em 17/03/1989, ao defender uma ponderação global e aplicação de uma das Leis em bloco, considerou que «não é lícito construir regimes particulares pela conjugação de elementos de uma e outra Lei, com prejuízo da quebra de coerência e a obtenção de um resultado aberrante, ainda que concretamente vantajoso para o agente».
Assim, deve aplicar-se o novo Regulamento das Custas Judiciais ao caso em apreço, por ser mais favorável para o arguido, em obediência ao disposto no art. 2°, n° 4 do CP.]”
Assim não entendeu o Digno Tribunal da Relação do Porto, que rejeitou o recurso.
Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto no novo Regulamento das custas processuais e no n.° 4 art.° 2° do CP, pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto, constitui uma violação do seu direito à igualdade e consequentemente também do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso do Tribunal Criminal Porto para o Tribunal da Relação do Porto.
Com efeito, o arguido caso não recorresse, ía preso, e a não admissão do referido recurso, conforme consta no douto despacho recorrido, implica a prisão do recorrente, violando o seu direito à igualdade, uma vez que vai ser prejudicado pela sua situação económica, e em violação também do art.° 32° da CRP.
Violou assim também o douto acórdão recorrido o princípio da Igualdade.
Pretende assim o recorrente a apreciação da constitucionalidade das normas jurídicas em causa, por ambiguidade e falta de clareza dessas mesmas normas jurídicas, por colidirem em função dessas debilidades com uma norma constitucional.
4. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal veio dizer o seguinte.
1. Na reclamação para o Senhor Presidente da Relação do Porto do despacho que não lhe admitiu o recurso, o reclamante sustenta que lhe deve ser aplicado o regime constante do novo Regulamento das Custas Judiciais “por ser mais favorável para o arguido, em obediência ao disposto no artigo 2°, nº 4 do C.P.”
2. Ora, sendo este o momento processual próprio para suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa que, de alguma forma, estivesse relacionada com aplicação no tempo, do novo regime, o reclamante não o fez, não se vendo, sequer, qualquer referência à Constituição.
3. O Senhor Presidente da Relação indeferiu a reclamação, acolhendo a interpretação feita no despacho proferido na primeira instância, ou seja, que o novo regime não era aplicável, apenas se acrescentando que não tinha sentido chamar à colação o artigo 2°, n° 4, do Código Penal, porque as normas relativas às custas eram normas adjectivas.
4. No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional, o reclamante, embora agora fazendo referência a normas constitucionais, continua a sustentar que lhe devia ser aplicado o novo regime, não enunciando qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, que pudesse constituir objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
6. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. O despacho reclamado indeferiu o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade com fundamento na falta de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Na sua reclamação, o reclamante sustenta que não podia ter suscitado a questão de constitucionalidade em momento anterior, pela simples razão de não poder prever que a mesma se registaria em fase de recurso.
Entende o reclamante que não se lhe seria de exigir que antecipasse que o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, viesse interpretar as normas do Código Penal e da própria Constituição como interpretou e aplicou.
Não tem razão o reclamante.
6. Na verdade, é totalmente improcedente o argumento do recorrente, ora reclamante.
Notificado da decisão do tribunal de primeira instância que revogou a suspensão da execução da pena de prisão em que tinha sido condenado, o recorrente interpôs recurso, o qual não foi admitido com fundamento na falta de pagamento da taxa de justiça inicial.
A questão da aplicabilidade ao caso dos autos do novo Regulamento das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, havia sido equacionada no parecer do Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do tribunal da primeira instância (fls. 548), a que o recorrente veio responder sustentando a aplicação da lei nova ao caso dos autos por ser mais favorável ao arguido, em obediência ao disposto no artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal, preceito que, aliás, menciona expressamente (fls. 556-558).
Com efeito, nessa mesma peça processual, o recorrente afirma o seguinte:
[…]
Assim, deve aplicar-se o novo Regulamento de Custas Judiciais ao caso em apreço, por ser mais favorável para o arguido, em obediência ao disposto no art. 2º, nº 4 do CP, sob pena de inconstitucionalidade.
Com efeito, esta solução que propomos ao abrigo dos dispositivos constitucionais citados, é também a que resulta do artigo 5º, nº 2, alínea a), que, interpretado devidamente, com o auxílio das regras interpretativas previstas no artigo 9º do Código Civil, permite o respeito dos princípios constitucionais que vimos referindo, e tutela, como a Constituição exige, os mais elementares direitos do arguido/recorrente.
Acresce que a aplicação da Lei nova, impõe-se ainda para total cumprimento ao princípio da igualdade, entre nós, consagrado no artigo 13.º, n.º1 da C.R.P. Dispõe o preceito constitucional que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
O entendimento sustentado na Douta Promoção, salvo melhor opinião, vem colidir também com este princípio constitucional.
Nestes termos deveria o Recurso em questão ser admitido.
Também na reclamação dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto o reclamante problematiza a aplicação no tempo do Regulamento das Custas Judiciais, tendo aí sustentado dever ser-lhe aplicado o regime anterior por lhe ser mais favorável, em obediência ao disposto no artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal, preceito que, aliás, menciona expressamente.
Assim sendo, é manifestamente improcedente a alegação de que o recorrente jamais poderia contar com a interpretação acolhida quanto à questão da aplicação no tempo do novo Regulamento das Custas Judiciais, em que se concluiu pela exclusão da sua aplicação ao caso dos autos.
Não só era tal interpretação antecipável, como, aliás, o própria recorrente, de facto, antecipou-a. Fê-lo, como vimos, tanto na resposta que deu ao parecer do Exmo. Magistrado do Ministério Público no tribunal da primeira instância como na reclamação dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto.
Tanto basta para que se não possa conhecer do recurso de constitucionalidade.
III – Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando o despacho reclamado que não admitiu o recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de Novembro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.