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Processo n.º 498/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
“I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A. e B. e recorridos C. e D., os primeiros vêm interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 20 de Maio de 2010 (fls. 55 a 60), para que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, com fundamento na alegada violação do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Cumpre apreciar.
II – Fundamentação
2. Efectivamente, a decisão recorrida aplicou efectivamente a norma extraída do n.º 1 do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 303/2007, no sentido de que o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, previsto no artigo 763º do Código de Processo Civil (CPC), não seria aplicável aos processos pendentes a 1 de Janeiro de 2008, como é o caso daquele constante dos autos recorridos. Tal interpretação normativa foi, aliás, reputada de inconstitucional pelo ora recorrente, em sede de reclamação (cfr. fls. 42).
Sucede, porém, que a decisão recorrida não se limita a aplicar aquela interpretação normativa, adoptando, ainda que a título subsidiário, uma solução alternativa à questão controvertida nos autos. Senão, veja-se:
“Por outro lado, ainda se dirá, embora de forma sumária e subsidiária que não existe qualquer tipo de contradição entre o acórdão de que se pretendia recorrer e o denominado acórdão fundamento.
No que se refere ao conceito de contrato de cessão da posição contratual, nada se diz no acórdão recorrido que contrarie o conceito que do dito contrato foi explicitado no acórdão fundamento, Ao contrário, há absoluta identidade de posições quanto a esse conceito.
(…)
Não existe, pois, qualquer contradição entre o acórdão recorrido e o dito acórdão fundamento, daí que também por esta via nunca seria de admitir o recurso.
Assim, pelas razões expostas, não se recebe o recurso, por inadmissível” (fls. 58 e 59-verso)
Daqui decorre que, mesmo que o Tribunal Constitucional viesse a julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída do n.º 1 do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, tal decisão revelar-se-ia sempre inútil para alterar o sentido da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça. Assim é, porque o Tribunal Constitucional apenas dispõe de poderes para se pronunciar sobre questões de inconstitucionalidade normativa, mas já não para se substituir aos tribunais recorridos, quanto a matérias de mera aplicação do Direito infra-constitucional.
Ora, mesmo que se admitisse (por mera especulação) que o Tribunal Constitucional viesse a julgar inconstitucional aquela interpretação normativa – passando assim o tribunal recorrido a ficar obrigado a aplicar o regime previsto pela nova redacção do artigo 763º do CPC –, a decisão por aquele já tomada permaneceria sempre desfavorável ao recorrente, já que sempre restaria a fundamentação alternativa adoptada pela decisão recorrida, segundo a qual não há contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento. Frise-se bem que o Tribunal Constitucional não dispõe de poderes para conhecer desta questão, na medida em que se trata de questão de mera aplicação do Direito infra-constitucional e o recorrente nunca suscitou qualquer questão de constitucionalidade a esse propósito.
Em suma, o conhecimento da questão de inconstitucionalidade normativa afigura-se objectivamente inútil, por não ser susceptível de alterar o sentido da decisão recorrida, pelo que o Tribunal Constitucional não deve dela conhecer.
III – Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. Inconformados com esta decisão, os recorrentes apresentaram a seguinte reclamação:
“1. Por decisão sumária adoptada em 6 de Setembro último, este Venerando Tribunal decidiu não conhecer da inconstitucionalidade normativa do art. 1º do DL nº 303/07.
2. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, e pese embora os argumentos esgrimidos, não pode este Venerando Tribunal deixar de se pronunciar sobre a questão que lhe foi colocada,
3. independentemente dos efeitos práticos que, de futuro, a decisão por ele adoptada possa vir a ter na decisão recorrida,
4. pois tal como decorre da decisão ora em crise o Tribunal apenas sobre questões de inconstitucionalidade normativa.
5. Com efeito, a questão que ora se coloca perante este Venerando Tribunal é a de saber se o entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça de que o recurso previsto no art. 763° do CPC com a redacção introduzida pelo DL nº 303/07 de 23.10, que visa sanar, de forma global, situações de diversidade jurisprudencial apenas é aplicável aos processos iniciados a partir de 01.01.2008 viola ou não a norma do art. 13° da CRP na dimensão de princípio da igualdade da aplicação do direito aos cidadãos através dos tribunais, cuja “manifestação mais relevante são a da aplicação de igual direito a casos idênticos e a utilização de um critério de igualdade na utilização do juiz dos seus «poderes discricionários»”( In J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3° ed. rev., Coimbra Editora, pág. 130).
6. Não podemos perder de vista que um dos objectivos da reforma dos recursos do processo civil foi precisamente o de acentuar as funções de orientação e uniformização da jurisprudência,
7. um objectivo que não pode lograr alcançar-se se não se permitir que o novo de um regime de um recurso extraordinário possa aplicar-se a todos os processos pendentes em juízo.
8. Aliás, salvo o devido respeito por melhor opinião, a não admitir-se a possibilidade de aplicação do regime dos recursos extraordinários aos processos anteriores a 1.1.2008, está igualmente a violar-se o art. 6° da CEDH, que consagra o direito a uma justiça equitativa,
9. e a frustrar-se os objectivos propostos pela Recomendação no R(95)5 de 7.02.95 do Conselho de Ministros do Conselho da Europa de que os recursos devem contribuir “para o desenvolvimento do direito e uniformização da interpretação da lei”.
Termos em que,
Deve este Venerando Tribunal conhecer do recurso interposto pelos Recorrentes seguindo-se os ulteriores termos até final.” (fls. 81 a 83)
3. Tendo sido devidamente notificados para o efeito, os recorridos deixaram esgotar o prazo legal, sem que viessem aos autos apresentar qualquer resposta.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A única objecção levantada pelos reclamantes à decisão proferida diz respeito à eventual autonomia do juízo de (in)constitucionalidade face à utilidade que o mesmo reveste para a acção principal no qual foi suscitado o incidente de fiscalização da constitucionalidade. Dito de outro modo, entendem os reclamantes que o Tribunal Constitucional deveria conhecer de qualquer recurso de constitucionalidade, independentemente da utilidade processual que aquele viesse a obter nos autos recorridos, na medida em que caberia ao tribunal recorrido decidir da aplicação do Direito infra-constitucional.
Sucede que, independentemente de o Tribunal Constitucional apenas curar de questões de inconstitucionalidade normativa, certo é que este não dispõe de poderes para delas conhecer autonomamente, ou seja, fora de um litígio concreto que esteja pendente nos demais tribunais. Ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, o Tribunal Constitucional português não dispõe de mecanismos como o “recurso de amparo”, nem tão pouco pode abstrair-se da interpretação normativa que haja sido efectivamente aplicada pelo tribunal recorrido.
Deste modo, em sede de fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional não pode deixar de ponderar qual a interpretação normativa já aplicada pela decisão recorrida proferida pelo tribunal “a quo”, de modo a verificar se a sua decisão de (in)constitucionalidade revela aptidão para influenciar o sentido da mesma. Ora, conforme demonstrado pela decisão reclamada, afigura-se incontroverso que a questão da alegada inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, não constituiu a única razão que conduziu a que os reclamantes vissem as suas posições vencidas, perante o tribunal recorrido. Assim sendo, mesmo que o Tribunal Constitucional lhes viesse a dar razão, certo seria que a decisão do tribunal “a quo” manteria o seu sentido final intocado, na medida em que persistiria sempre um argumento adicional no sentido do indeferimento da pretensão dos reclamantes.
Consequentemente, mais não resta a esta conferência do que confirmar a decisão reclamada ora em apreço, reiterando-se assim a recusa de conhecimento do objecto do presente recurso, conforme legalmente imposto.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 25 de Novembro de 2010.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.