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Processo n.º 475/2010
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
EM CONFERÊNCIA DA 1ª SECÇÃO ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. recorreu para o Tribunal Constitucional do despacho proferido pelo Vice Presidente da Relação de Lisboa que, indeferindo a reclamação que o recorrente formulara, manteve o despacho do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa que não admitira o recurso interposto do despacho de pronúncia, na parte em que foram indeferidas as nulidades arguidas em fase de instrução. O despacho do Tribunal Central de Instrução Criminal indeferira a admissão do recurso por entender que o n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal proibia tal recurso, entendimento que a Relação perfilhou, na decisão recorrida. É essa a norma que o recorrente acusa de ser inconstitucional, nos seguintes termos:
[...] 1. O presente recurso de constitucionalidade é interposto da decisão do Venerando Senhor Juiz Desembargador Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que indeferiu Reclamação ajuizada pelo ora Recorrente (art.° 70º n.º 1 al. b), n.º 2 e n.º 3 LOFPTC) contra o Despacho lavrado pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal de indeferimento do recurso apresentado contra a decisão que indeferira uma arguição de nulidade verificada em inquérito.
2. A decisão de indeferimento da arguição de nulidade, a decisão de indeferimento do recurso contra aquela primeira decisão e a decisão de indeferimento da reclamação contra a não admissão do recurso afectam direitos processuais e substantivos do ora Recorrente (art.° 72° n.º 1 al. b) LOFPTC): o Recorrente, que não se considera sequer Arguido nos presentes autos (pelo menos arguido regularmente constituído), vê-se ser sujeito a julgamento com base numa decisão única (1° e único grau de jurisdição), gravemente ilegal e inconstitucional, e que as instâncias consideram irrecorrível.
3. A decisão de que ora se recorre foi notificada ao Recorrente no dia 31 de Maio de 2010 (art.° 75° n.º 1 LOFPTC).
4. A norma cuja inconstitucionalidade é questionada é a do art.° 310º n.º 1 CPP, na parte em que estende o regime de irrecorribilidade da decisão instrutória (que pronuncie o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação pública) à decisão do Mmo. JIC que indefere as “nulidades” arguidas, findo o Inquérito, relativas à Acusação (art.° 75°-A n.º 1 LOFPTC).
5. Reputa-se de inconstitucional tal norma, por violação de várias normas e princípios constitucionais, nos termos que sumariamente se identificam (art.° 75°-A n.º 2 LOFPTC):
a. Tal norma constante do art.° 310º n.º 1 in media parte constitui norma inconstitucional por violação do disposto nos art.°s 1º, 2º, 3º nºs 2 e 3, 9º al. b), 20º e 32º n.º 1 da CRP, i.e., na medida em que estende o regime da irrecorribilidade às decisões de indeferimento das arguições de nulidades (impedindo que a decisão de um JIC de indeferimento de uma arguição de nulidade assacada à acusação seja susceptível de recurso), tornando essa decisão na única decisão judicial de indeferimento de uma arguição de nulidade tomada em primeiro grau de jurisdição que é irrecorrível no processo penal português;
b. Ou seja, é inconstitucional por violação das regras e princípios da igualdade e da justiça, do Estado de Direito Democrático baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, e do acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus Direitos.
c. Tal norma constante do art.° 310º n.º 1 in media parte constitui ainda norma inconstitucional por violação do disposto nos art.°s 1º, 2°, 20º e 32° nºs 1 e 2 da CRP, i.e, porque estabelece um obrigatório grau único de jurisdição, criando um sistema que inviabiliza e suprime total e globalmente a faculdade de recorrer relativamente a uma questão fundamental no processo como o seja a da verificação ou não de uma nulidade processual, in casu tão importante como o não existir Arguido regularmente constituído nos autos e que não interveio no inquérito de determinados autos (cfr. Jurisprudência do Tribunal constitucional citada no recurso).
d. O que gera inconstitucionalidade porque a faculdade de recorrer em processo penal constitui uma tradução da expressão do direito de defesa, correspondendo mesmo a uma imposição constitucional a consagração do recurso de actos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais (cfr. Jurisprudência do Tribunal constitucional citada no recurso), além de que erige a celeridade processual como valor superior ao da não submissão a julgamento de alguém que nem sequer é validamente Arguido nos autos (desconsiderando jurisprudência constitucional que considera ser um vexame e um incómodo ser sujeito a julgamento, o que resulta agravado se alguém o é apesar da existência de uma nulidade tão grave no processo).
6. As questões de constitucionalidade que constituem objecto do presente recurso foram suscitadas pelo ora Recorrente (art.° 75°-A n.º 2 LOFPTC)
a. No requerimento de arguição de nulidade, oferecido ao JIC logo após a acusação (posto que o ora Recorrente NÃO requereu a abertura de instrução).
b. No recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa contra a decisão do Mmo. MC de indeferimento dessa arguição de nulidade (despacho que antecede a decisão instrutória hoc sensu);
c. Na reclamação para o Tribunal da Relação de Lisboa, contra o despacho do Mmo. JIC que indeferiu a interposição de recurso.
7. As concretas questões de constitucionalidade que constituem objecto do presente recurso não foram decidas pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente nos Acórdãos nºs 265/94, 610/96, 266/98, 299/98, 216/99, 300/98, 463/2002, 387/2008 e 95/2009 (referidos na decisão do Mmo. JIC de indeferimento do recurso que motivou a reclamação para a Relação de Lisboa, conforme demonstrado no recurso indeferido e cuja reclamação foi agora indeferida pela Relação de Lisboa, de onde emerge o presente recurso de constitucionalidade). [...] »
2. Por decisão sumária proferida pelo relator ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso foi julgado sumariamente improcedente por se haver entendido que a matéria já fora apreciada no Tribunal Constitucional «em abundante jurisprudência», de cuja reafirmação (que se impunha «por nada haver que indique dever alterar-se a posição do Tribunal» sobre o assunto) decorreria tal solução.
Diz a decisão sumária:
«[...] Em causa está a norma do artigo 310º n.º 1 Código de Processo Penal, na parte em que estende o regime de irrecorribilidade da decisão instrutória, que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação pública, à decisão do juiz de instrução que indefere as nulidades arguidas, findo o inquérito, relativas à acusação.
3. O Tribunal Constitucional tem abundante jurisprudência sobre este assunto, designadamente sobre a norma em causa, que aqui se reafirma por nada haver que indique dever alterar-se a posição do Tribunal.
Em primeiro lugar, cumprirá recordar o entendimento do Tribunal quanto à natureza do recurso em processo penal. Conforme se afirmou recentemente no Acórdão 235/10:
«[...] 8. A Constituição garante a todos “o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos” (artigo 20.º, n.º 1) afirmando, em matéria penal, que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo, o recurso' (artigo 32.º, n.º 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o recurso quanto a todas as decisões proferidas em processo penal. A garantia do recurso é inequívoca quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
[...]
A faculdade de recorrer em processo penal constitui expressão das garantias constitucionais de defesa que impõem o recurso de sentenças condenatórias ou de actos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais. Todavia, sempre se aceitou que a Constituição não impõe a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal. Não o impunha antes, nem depois, da revisão de 1997, onde o segmento aditado ao artigo 32.º, n.º 1, explicita, afinal, o que a jurisprudência do Tribunal Constitucional já entendia estar compreendido nas 'garantias de defesa em processo penal' (Acórdão n.º 300/98).
Em suma, o 'direito de recurso', como imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a entender-se no quadro das 'garantias de defesa' – só e quando estas garantias o exijam – o que, pelas apontadas razões, não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia (veja-se também neste sentido o já citado Acórdão n.º 30/2001).[...]»
Nesta linha, o Tribunal entendeu que a referida norma, no sentido agora questionado, não é inconstitucional. Fê-lo, designadamente, no Acórdão 95/09, ao afirmar:
«[...] o artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal aponta, de facto, no sentido de a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público não constituir decisão final, também na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais. Neste preceito sobre o saneamento do processo na fase de julgamento permite-se, sem qualquer limitação, que o presidente do tribunal se pronuncie sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Já no artigo 338º, nº 1, em audiência de julgamento, o tribunal só pode conhecer e decidir das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar; e no artigo 368º, nº 1, no momento de elaborar a da sentença, o tribunal só pode começar por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão. Numa palavra: os poderes de cognição do tribunal de julgamento em matéria de questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa estão limitados apenas quando a lei o determine expressamente.
Por último, note-se, ainda, que, quando a doutrina e a jurisprudência abordaram a questão de saber se, face à redacção anterior do artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal, era ou não recorrível a parte da decisão instrutória relativa a nulidades e outras questões prévias ou incidentais, era pacífico que a “decisão, na parte que respeita aos elementos saneadores do processo, não constitui caso julgado formal” (cf. Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 6/2000, de 19 de Janeiro, Diário da República, I Série, de 7 de Março de 2000, aresto que fixou jurisprudência, revelando posições doutrinais e jurisprudenciais distintas sobre a questão).
Em suma, o despacho recorrido não constitui uma decisão final para o efeito de poder ser interposto recurso de inconstitucionalidade, pelo que há que indeferir a presente reclamação.[...]»
4. São estas as razões que, em síntese, fundamentam a decisão do Tribunal em julgar sumariamente improcedente o presente recurso, nos termos do citado n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional. [...]
3. Inconformado, o recorrente reclama para a conferência pondo em causa o acerto da decisão sumária reclamada. Sustenta, em primeiro lugar, que, ao contrário do que se afirma, o Tribunal nunca apreciou a questão, tal como ela é suscitada no presente recurso; e, depois, questiona a doutrina que lhe está subjacente nos seguintes termos:
[...] 7. B – Em segundo lugar, afirma-se na Decisão Sumária ora colocada em crise, que a decisão originariamente recorrida (o Despacho do Mmo. JIC de encerramento da instrução), “não constitui uma decisão final para o efeito de poder ser interposto recurso de constitucionalidade”, pelo que bem teria andado a decisão recorrida agora perante o TC (o Despacho do Presidente do Venerando Tribunal da Relação) de indeferimento da reclamação pela rejeição do recurso.
8. Ora, é curioso (não fora trágico, por redundar a final numa denegação de justiça) que o Tribunal Constitucional continue a afirmar que a decisão de encerramento da Instrução não faz caso julgado sobre as questões de nulidade de que conhece, com o fundamento de que o Juiz de Julgamento pode delas conhecer posteriormente.
9. E tal como se lê na Decisão Sumária em apreço, a tese do Tribunal Constitucional (apenas desde o, s.d.r., infeliz Acórdão n.º 95/09, que aliás cita), é a de que as questões de nulidade indeferidas pelo Mmo. JIC podem / devem ser conhecidas pelo Tribunal de Julgamento aquando da prolação do Despacho previsto no art.º 311° CPP, do mesmo passo afirmando que apenas nesse momento tal pode acontecer, mas já não ao abrigo do previsto nos art.°s 338° n.º 1 e 368° n.º 1 CPP, porque aí o legislador claramente afastou a possibilidade de o Tribunal de Julgamento conhecer de tais nulidades.
10 Porém, estranhamente, apenas o Tribunal Constitucional (e o MP, o JIC e o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, nestes autos), assim entende, porquanto não só outra jurisprudência dos Tribunais superiores expressamente o nega, como também tal foi negado, nestes autos, pelo próprio Tribunal de Julgamento.
Vejamos:
11. B.1 – Nestes próprios autos, que se encontram a ser tramitados em fase de Julgamento na 4ª Vara Criminal de Lisboa, o Tribunal, a 01/07/2010 (i.e., na pendência deste Recurso), vem afirmar ipsis verbis: “Sem prejuízo do respeito que é devido por quem sufraga diferente entendimento, consideramos que com a prolação de tal despacho pelo Exmo. JIC, em sede de decisão instrutória, como se viu, ficou vedado ao juiz de julgamento, aquando da prolação do despacho a que alude o art.º 311º n.º 1 do CPP, voltar a apreciar tal questão, qual seja a da nulidade da acusação, invocada pelo arguido A. a fls. 9660 e segs”... cfr. Documento n.º 1 que se junta e dá por integralmente reproduzido para demonstrar ao Tribunal Constitucional que aquilo que o próprio afirma não é aceite pelos Tribunais a quem supostamente caberia o poder de conhecer da questão em sede de 311° CPP!
12. Apetece perguntar: em que ficamos-
13. O MP, o JIC, o Presidente do Tribunal da Relação e este Tribunal Constitucional entendem que o Despacho do art.º 310° n.º 1 não faz caso julgado, mas outros Tribunais, nomeadamente o Tribunal que era o único que podia nestes autos dessa questão conhecer afirma que o Despacho do art.º 310° n.º 1 faz caso julgado!
14. Por tudo isto também resulta demonstrado que o Tribunal Constitucional tem de conhecer do recurso interposto, e tem de reflectir sobre o sentido e bondade da jurisprudência formada pela 1ª vez no Acórdão n.º 95/09, que obviamente não tem qualquer colagem com a realidade conforme o Recorrente demonstrou no Recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa e que só poderá ser conhecido se este Recurso para o Tribunal Constitucional merecer provimento!
15. Estamos perante situação em que o Tribunal Constitucional diz “uma coisa”, mas em que os Tribunais que concretamente têm de aplicar a Lei entendem exactamente o contrário, deixando totalmente sem tutela (prática, efectiva), os direitos dos Arguidos em processo penal!
16. E tais Tribunais de primeira instância dizem o oposto, e bem!
17. Pois que obviamente a mundividência (diga-se assim!) prefigurada pelo Acórdão TC n.º 95/09 peca desde logo por ser uma interpretação normativa do art.º 310º n.º 1 totalmente deslocada do contexto normativo formado por essa norma em conjugação com os art.°s 311°, 338° e 368° do CPP, bem como com as normas que prevêem as intervenções processuais dos Arguidos.
18. É que nem sequer existe mecanismo que permita ao Arguido solicitar ao Tribunal que conheça de nulidades da Acusação no Despacho do art.º 311º CPP, mas isso foi totalmente olvidado pelo Ac. TC n.º 95/09, que não se preocupou em conferir a solução que “criou” com a efectiva tutela dos Direitos e com o modo como a marcha do processo está conformada positivamente no código de processo penal.
19. B.2 Por outro lado, Jurisprudência de pelo menos dois Tribunais da Relação afirma exactamente o oposto daquilo que é sustentado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 95/09.
20. Com feito, defendem o Tribunal da Relação de Coimbra e o Tribunal da Relação de Évora que o art.º 311º n.º 1 CPP nada refere em abono da interpretação do 310º n.º 1 CPP no sentido de que “as nulidades suscitadas após o proferir de despacho final pelo MP, (...) não são decididas de forma definitiva pela decisão instrutória”, nem, muito menos, que “a decisão instrutória de pronúncia não forma caso julgado formal no que se refere à decisão sobre os elementos saneadores do processo”.
21. Bem ao invés, afirmam exactamente o oposto disto que na decisão sumária é afirmado!
22. Com efeito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/04/2010 (mais actual seria impossível!), que reitera jurisprudência do Tribunal da Relação de Évora no Acórdão proferido no Processo-n°-996061, afirma:
[...]
27. Com o que se conclui – com a autoridade do Ac. do TRC e do Ac. do TRE citados – que, ao invés do afirmado na decisão sumária e no Acórdão TC n.º 95/09, o facto de o art.º 311º do CPP permitir ao juiz de julgamento conhecer de nulidades do processo, tal “poder” deve ser restritivamente interpretado no sentido de apenas se permitir que o Juiz se imiscua na Acusação nos casos taxativos e graves ali previstos, e não para conhecer de toda e qualquer nulidade que vicie o processo nas fases anteriores do processo.
28. Por outras palavras: a jurisprudência recente citada das Relações de Coimbra e de Évora entende que a decisão instrutória forma caso julgado formal quanto às nulidades de conheça.
29. E correlativamente se conclui que o art.º 311º não permite, no caso vertente, ao juiz de julgamento conhecer da arguição de nulidade deduzida pelo ora Recorrente contra a Acusação, termos em que a decisão do Juiz de Instrução é definitiva quanto a tais nulidades, pelo que terá de ser recorrível, sob pena de inconstitucionalidade da solução legal.
30. Pelo que também por esta razão resulta demonstrado que o Tribunal Constitucional tem de conhecer do recurso interposto, devendo ser infirmada a Decisão Sumária 98/2010.[...]
4. O representante do Ministério Público, notificado da reclamação, respondeu o seguinte:
1º – Segundo a Decisão Sumária de fls. 1321 a 1324 “em causa está a norma do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na parte em que estende o regime de irrecorribilidade da decisão instrutória, que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação pública, à decisão do juiz de instrução que indefere as nulidades arguidas, findo o inquérito, relativas à acusação”.
2º – Na reclamação agora apresentada não se questiona verdadeiramente esta delimitação do objecto do recurso.
3.º – Embora já anteriormente se extraísse do princípio geral das garantias de defesa, desde a revisão constitucional de 1997 que o direito ao recurso em processo penal ficou expressamente consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.
4.º – No que respeita à recorribilidade, ou não, da decisão instrutória, na parte em que incide sobre questões prévias ou incidentais – ou seja, o que não tem a ver com os factos e a suficiência, ou não, de indícios –, na sequência de divergência na jurisprudência, foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça o “Assento” n.º 6/2000 que acolheu a interpretação segundo a qual essa decisão era irrecorrível.
5º – No entanto, a interpretação contrária, a da irrecorribilidade, foi sindicada pelo Tribunal Constitucional que a não julgou inconstitucional (Acórdãos n.ºs 216/99 e 387/99).
6º – Após a alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, essa irrecorribilidade ficou expressamente consagrada (artigo 310.º, n.º 6), mas também foi reforçado o carácter “provisório” da decisão, com a redacção dada ao n.º 2 do artigo 310.º.
7º – É evidente que tendo este entendimento do Tribunal Constitucional, confirmado pelos Acórdãos n.ºs 235/10 e 95/09, referidos na Decisão Sumária, a questão da constitucionalidade em causa, é uma questão simples, daí o ter-se decidido, e bem, proferir Decisão Sumária a negar provimento ao recurso.
8º – Quanto à eventual violação dos outros preceitos constitucionais, como os artigos 1.º, 2.º, 20.º da Constituição, a questão não tem qualquer pertinência.
9º – Na verdade, existindo uma norma constitucional que consagra o direito ao recurso, – o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição – como já anteriormente dissemos (3º), é ela que tem de constituir o parâmetro para aferição da constitucionalidade, não fazendo muito sentido invocar os artigos 1.º e 2.º da Constituição, recorrendo, assim, à ideia geral de dignidade da pessoa humana e de estado de direito.
10.º – De qualquer forma sempre se dirá que em relação à eventual violação do artigo 20.º da Constituição, se pronunciaram entre outros, os Acórdãos n.ºs 263/2009 e 235/2010, este, referido na Decisão Sumária.
11.º – Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.
5. Cumpre agora decidir.
No seu requerimento, o reclamante sustenta que o Tribunal tem de conhecer do recurso interposto, devendo ser infirmada a Decisão Sumária. Na verdade, porém, o Tribunal conheceu do recurso interposto; e, mais do que isso, conheceu do seu mérito, que todavia denegou, face à anterior jurisprudência adoptada pelo próprio Tribunal. A reclamação deve, por isso, ser entendida como um pedido que visa obter uma decisão de sinal contrário, decisão que, a final, obviamente só poderá ser o julgamento de inconstitucionalidade da norma que constitui o objecto do presente recurso, o artigo 310º n.º 1 do Código de Processo Penal na parte em que estende o regime de irrecorribilidade da decisão instrutória, que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação pública, à decisão do juiz de instrução que indefere as nulidades arguidas, findo o inquérito, relativas à acusação.
Ora, é justamente esse julgamento que o Tribunal não deve manifestamente adoptar, face à jurisprudência editada sobre o tema da (ir) recorribilidade das decisões judiciais proferidas no âmbito do processo penal, que é, efectivamente, muito abundante. E, particularmente sobre a questão agora em análise, já se recordou na decisão sumária em reclamação a posição que o Tribunal subscreve quanto não considerar inconstitucional a norma que proíbe o recurso das decisões do juiz de instrução a indeferir as nulidades arguidas, findo o inquérito, relativas à acusação. E é, na verdade, indiferente à solução do problema a pretensa novidade do bloco normativo da Constituição alegadamente ofendido pela norma impugnada, pois, como bem responde o Ministério Público, existindo uma norma constitucional que expressamente consagra o direito ao recurso, – o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição –, é ela que tem de constituir o parâmetro para aferição da pretensa inconstitucionalidade, assumindo relevância verdadeiramente subsidiária a invocação dos artigos 1°, 2°, 3º n.ºs 2 e 3, 9° alínea b), e 20º da Constituição, e a «violação das regras e princípios da igualdade e da justiça, do Estado de Direito Democrático baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, e do acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus Direitos», que são precisamente os princípios que a dita norma n.º 1 do artigo 32.º da Constituição alberga.
E, nesta óptica, menos sentido ainda faz a invocação de jurisprudência das doutas relações de Coimbra e de Évora para contrariar o julgamento de não inconstitucionalidade da norma em causa, assim confundindo – de forma, aliás, inesperada –, os planos em que se desenvolvem a jurisprudência do Tribunal Constitucional na fiscalização concreta da inconstitucionalidade normativa, e a jurisprudência dos tribunais comuns na sua típica tarefa de aplicação do direito aos factos processualmente adquiridos.
Tal é o bastante para afastar as críticas tecidas à solução adoptada na decisão sumária em reclamação.
6. Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação, mantendo a decisão sumária que julgou improcedente o recurso. Custas pelo reclamante, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.