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Processo n.º 530/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:I – Relatório1. A., inconformado com a decisão sumária proferida a 16 de Setembro de 2010, vem dela reclamar, concluindo nos seguintes termos:
“ i. No caso sub judice, a qualificação do processo como pendente ou findo, em virtude da renovação da instância operada pelo incidente de liquidação de sentença, prende-se necessariamente com a questão da constitucionalidade das interpretações que se impugnaram.
ii. O Recorrente não pode aceitar, sequer, que estejamos perante uma mera questão instrumental para o caso sub judice, uma vez que a questão normativo-constitucional em causa se encontra, ao invés, dentro do núcleo da razão de decidir.
iii. As dimensões normativas impugnadas não se limitam, com faz crer o despacho reclamado, à dicotomia óbvia e lógica entre processos pendentes e processos findos, assim como à respectiva diferença em termos de regime à luz do Decreto- Lei n.° 303/2007, de 24 de Agosto.
iv. O que está em causa nos autos é a aplicação do novo regime dos recursos cíveis, não a processos findos, o que é óbvio e resulta imediatamente da letra da lei, mas a sua aplicação a processos iniciados à luz do regime recursório anterior, nos quais se verificou a renovação da instância em virtude de incidente de liquidação de sentença, não obstante o facto de a renovação ter tido lugar após a vigência do novo regime recursório.
v. A interpretação normativa questionada consiste em concluir da expressão «processos pendentes» utilizada no artigo 11.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007, que o novo regime dos recursos em processo civil é aplicável ao recurso da sentença de liquidação porque, mau grado a instância principal ser anterior, o incidente de liquidação foi requerido depois da entrada em vigor daquele regime.
vi. O que está verdadeiramente em causa nos autos e que efectivamente se encontra na razão de decidir do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa é, a montante, a interpretação do conceito de renovação da instância e, a jusante, a interpretação do artigo 11.º n.° 1 do Decreto-Lei n.° 303/2007, de 24 de Agosto, e do artigo 291.°, n.° 2 do Código de Processo Civil (CPC), na redacção do Decreto-Lei n.° 303/2007 — interpretações que o Recorrente considera materialmente inconstitucionais.
vii. Por outras palavras, o objecto do recurso de fiscalização concreta reside no erro no qual incorreu o acórdão recorrido ao concluir da expressão «processos pendentes» utilizada no artigo 11.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 303/2007, que o novo regime dos recursos em processo civil é aplicável ao recurso da sentença de liquidação, porque, mau grado a instância principal ser anterior, o incidente de liquidação foi requerido depois da entrada em vigor daquele regime.
viii. O novo regime dos recursos cíveis não é aplicável aos recursos de apelação interpostos, porquanto a renovação da instância tem por efeito ficcionar a pendência do processo declarativo, e, acto contínuo, os critérios do início da instância principal e da «unidade orgânica» impõem, sob pena de inconstitucionalidade material, que se erija como factor decisivo, na determinação do regime dos recursos temporalmente aplicável, a data de início da instância principal — in casu, 1987.
ix. E, sobretudo, impõe-se concluir que estão preenchidos todos os pressupostos para o Tribunal Constitucional apreciar o mérito do recurso de fiscalização concreta interposto pelo Recorrente.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“5. Profere-se decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, pelo facto de não se encontrarem preenchidos os pressupostos necessários ao conhecimento do mesmo. Versando o recurso preceitos ou dimensões normativas cuja inconstitucionalidade haja sido arguida durante o processo, impõe-se que o conteúdo normativo suscitado pelo recorrente constitucional corresponda à que foi a ratio decidendi do acórdão recorrido. A fiscalização concreta da constitucionalidade tem uma relevância instrumental na causa em que a questão se discute: o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da controvérsia jusconstitucional se e na medida em que a resolução da mesma possui a capacidade, ainda que virtual, de produzir um reflexo útil nos autos. Isso implica, nomeadamente, que o objecto do recurso, tal como surge delimitado pelo recorrente no seu requerimento de interposição do recurso, coincida com a razão de decidir da pronúncia judicial de que se interpõe recurso. Significa isto que, sempre que o objecto do recurso, cuja conformação corre por conta do recorrente, não coincida com a ratio decidendi da decisão a quo, está o mesmo votado ao não conhecimento. É o que sucede nos presentes autos.
6. A primeira questão suscitada pelo Recorrente prende-se com o artigo 11.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 303/2007 ‘na interpretação segundo a qual o regime dos recursos aprovado pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, é aplicável ao recurso de uma sentença proferida num incidente de liquidação de uma sentença de condenação genérica proferida num processo instaurado antes da entrada em vigor daquele regime.’ Ora, este preceito não foi aplicado com este sentido e sim com o sentido de que os processos pendentes à data de entrada em vigor não abrangem os processos findos, considerando-se findo o processo em que foi proferida decisão de condenação genérica devidamente transitada em julgado antes da entrada em vigor do novo regime, tendo o incidente de liquidação daquela sentença sido deduzido e admitido após a entrada em vigor do novo regime. O que relevou, portanto, para o tribunal a quo não foi o facto de o processo que deu origem à sentença de condenação genérica ter sido instaurado antes de 1 de Janeiro de 2008 e sim o facto de a decisão final proferida no âmbito do mesmo ter transitado em julgado antes daquela data.
7. A segunda questão suscitada pelo Recorrente abrange o artigo 291.º, n.º 2 do CPC, na redacção do referido Decreto-Lei n.º 303/2007, ‘na interpretação segundo a qual é lícito não conhecer do objecto de um recurso ordinário de uma decisão proferida num processo declarativo que, por força da renovação da instância, remonta a 1987, julgando o recurso deserto, apenas porque as alegações, que foram elaboradas e constam dos autos, não foram feitas no requerimento de interposição do recurso.’ Uma vez mais, este não foi o sentido atribuído a este preceito, e a outros convocados pelo tribunal a quo, para fundamentar a decisão de julgar deserto o recurso. Com efeito, e como se depreende do que ficou já dito, o que foi determinante para o tribunal recorrido na interpretação da norma de direito transitório e consequente determinação do regime processual aplicável ao recurso de apelação interposto pelo Recorrente, foi o facto de a decisão de condenação genérica ter transitado em julgado antes de 1 de Janeiro de 2008, tendo então considerado tal processo como findo, e não como pendente. O tribunal não entendeu que, por força da renovação da instância, o processo remonta a 1987, como invoca o Recorrente. O tribunal entendeu, sim, que esse processo se encontrava findo em momento anterior à entrada em vigor do novo regime, tendo o incidente de liquidação apenas o efeito de determinar a renovação da instância para esses estritos efeitos, daí não decorrendo a anterior pendência da acção declarativa já finda.
Impõe-se, deste modo, o não conhecimento do recurso.”
3. A Reclamada A., Lda., notificada para se pronunciar, não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Adiante-se já que a reclamação deduzida carece de fundamento.
A decisão sumária impugnada determinou o não conhecimento do objecto do recurso pelo facto de que o mesmo integrava questões que não correspondiam à razão de decidir do tribunal a quo, atenta a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade. O Reclamante vem agora, sumariamente, sustentar que tal não correspondência é irrelevante para efeitos de não preenchimento do pressuposto em causa, na medida em que a qualificação jurídica (do processo como findo ou pendente) é essencial para a determinação da questão de constitucionalidade. Não lhe assiste razão. Desde logo, saliente-se que a interpretação do direito ordinário é matéria que escapa ao controlo do Tribunal Constitucional – este assume, como um dado, a qualificação que é feita pelo tribunal recorrido, controlando, então, a respectiva conformidade com a Constituição.
5. O Reclamante sustenta que, neste caso concreto, tal qualificação assume relevância decisiva para a determinação da questão de constitucionalidade, socorrendo-se do Acórdão n.º 457/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Nesse aresto, disse-se então que “(…) se (…) a decisão da questão de constitucionalidade depende – como pode depender – de uma determinada qualificação da relação em causa, à luz dos parâmetros constitucionalmente relevantes, nada obsta a que o Tribunal Constitucional, para decisão de tal questão de constitucionalidade, se pronuncie sobre a qualificação relevante para este efeito.”
O Reclamante acrescenta que “o que está em causa nos autos é a aplicação do novo regime dos recursos cíveis, não a processos findos, o que é óbvio e resulta imediatamente da letra da lei, mas a sua aplicação a processos iniciados à luz do regime recursório anterior, nos quais se verificou a renovação da instância em virtude de incidente de liquidação de sentença, não obstante o facto de a renovação ter tido lugar após a vigência do novo regime recursório.” O Reclamante apela ainda ao conceito de unidade orgânica do processo, remetendo para jurisprudência que, a propósito de meios cautelares, tem considerado que a data relevante para determinação do regime recursório seria a data da propositura da providência cautelar.
6. Não se cura nos autos de qualquer processo cautelar e sim de um incidente de liquidação da instância pelo que a analogia seria sempre desprovida de sentido. Mas o que releva é que a argumentação agora expendida pelo Reclamante não procede. O que foi sendo sempre sublinhado pelo recorrente foi o facto de que se determinou a aplicação do novo regime recursório a um processo que, por força da renovação da instância, remontava a 1987. Ou seja, a delimitação da questão surgiu sempre forçada pela interpretação que o recorrente reputa de correcta, focando-se no facto de a acção ter dado entrada em 1987, e de ter sido renovada pela dedução da liquidação.
Mesmo que se aceitasse que, em certos casos, a qualificação da relação jurídica em causa é determinante para a resolução da questão de constitucionalidade, tal não sucederia no presente caso. Com efeito, bastava o reclamante ter questionado a conformidade com a Constituição da interpretação efectuada (segundo a qual se considera findo o processo em que foi proferida decisão de condenação genérica devidamente transitada em julgado antes da entrada em vigor do novo regime, tendo o incidente de liquidação daquela sentença sido deduzido e admitido após a entrada em vigor do novo regime), sem necessidade de se embrenhar na interpretação que tinha por correcta, para que pudesse então prescindir da qualificação da causa para efeitos de determinação da questão de constitucionalidade. O que sucede é que o Reclamante não se limitou a ficar aquém da razão de decidir ou a incorporar a qualificação da relação na questão de constitucionalidade. O Reclamante simplesmente olvidou em absoluto a interpretação que foi sendo feita, persistindo na que seria, para si, a correcta interpretação e subsunção do caso ao quadro normativo aplicável, sem lograr suscitar e especificar a inconstitucionalidade da interpretação que, em concreto, vinha sendo efectuada pelo tribunal. Situação que é totalmente oposta à que se verificou no Acórdão n.º 457/2004 que o Reclamante tenta convocar em seu conforto – em tal aresto reconheceu-se, em sede de reclamação, que, efectivamente, a qualificação do dissídio não foi integrada pelo recorrente na dimensão ou interpretação normativa a apreciar.
Reitera-se pois, o já decidido na decisão sumária.
III – Decisão7. Assim, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.