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Processo n.º 126/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim Sousa ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do 1.º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, em que é recorrente A., Lda., e recorrido o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, I.P., foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 7.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com a redacção introduzida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, na parte em que estabelece que as pessoas colectivas com fins lucrativos não têm direito a protecção jurídica.
2. A recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
« I- Apesar de ser pessoa colectiva com fins lucrativos, a Requerente, como outras empresas, pode não ter capacidade financeira, como não tem, para custear a demanda que não intentou.
II- As custas judiciais podem ser, em determinados processos, elevadas e não se pode exigir que as pessoas colectivas tenham maior disponibilidade financeira do que as pessoas singulares.
III- Sem o recurso ao apoio judiciário e face à situação financeira e custos judiciais, à Requerente ficaria vedado o acesso à justiça.
IV- Esse facto, viola, frontalmente, o disposto no artigo 20.º n.° 1 da CRP.
V- Apesar do fim da pessoa colectiva poder ser distinto, o que interessará para a aplicação desta norma é a situação de insuficiência económica em que cada uma delas estará em determinado momento.
VI- Se uma pessoa colectiva, apesar de ter fins lucrativos, estiver em situação de insuficiência económica ela não estará em condições diferentes, em termos de acesso à justiça, de uma outra pessoa colectiva sem fins lucrativos na mesma situação de insuficiência.
VII- Por outro lado, a norma em crise foi interpretada no sentido de indeferir o apoio judiciário em todas as suas modalidades sem sequer se curar em saber a situação de facto da sociedade requerente e o valor das custas processuais do caso em apreço.
VIII- Existem já dois acórdãos do Tribunal Constitucional a pugnar pela inconstitucionalidade desta norma, um deles tirado num caso idêntico aos dos autos em que as partes eram as mesmas:
- Processo 822/09 da 2.ª Secção
- Processo 279/09 da 2.ª Secção
IX- A recorrente entende que a norma ínsita no número 3 do artigo 7.° do DL 34/04 viola os princípios da indefesa e do processo equitativo consagrados no artigo 20.° e o do direito ao recurso previsto no artigo 32.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.
X- A aplicação da dita norma no sentido em que foi interpretada e aplicada impede a recorrente de prosseguir a sua defesa nos autos onde corre a acção principal pelo que há toda a utilidade da pronúncia em sede de recurso de constitucionalidade.
Pelo exposto a Requerente solicita a verificação e declaração de inconstitucionalidade da norma ínsita no número 3 do artigo 7.° do DL 34/04 por violação do disposto no artigo 20.° n.° 1 da CRP e o princípio da igualdade que pode, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 12.° da CRP, ser aplicado às pessoas colectivas.»
3. O recorrido não contra-alegou.
Ocorrida mudança de relator, em virtude de o primitivo relator ter cessado funções neste Tribunal Constitucional, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
4. A norma do artigo 7.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com a redacção introduzida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, reza assim:
«Artigo 7.º
Âmbito pessoal
1 — (…).
2 — (…).
3 — As pessoas colectivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a protecção jurídica.
4 — (…).
5 — (…).»
A constitucionalidade desta norma foi, entretanto, apreciada em Plenário do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 216/2010, de 01.06.2010 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 06.07.2010), no qual se decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 34/2004 de 29 de Julho, com a redacção dada pela Lei n.º 47/2007 de 28 de Agosto.»
Os fundamentos deste aresto são sumariamente os seguintes:
«I - A jurisprudência do Tribunal tem admitido que não decorre da Constituição que as entidades com fins lucrativos sejam equiparadas às pessoas singulares e às pessoas colectivas com fins não lucrativos para efeito do acesso à justiça através da concessão generalizada do patrocínio judiciário gratuito em casos de insuficiência económica, já que a existência de litígios decorrentes da própria vida comercial normal das empresas e o escopo lucrativo das empresas obriga a que os custos com os profissionais do foro sejam integrados na planificação da actividade normal da empresa e ulteriormente repercutidos no preço final dos bens e serviços fornecidos ao consumidor. Assim, a impossibilidade de suportar tais custos evidencia a inviabilidade económica da empresa e, no limite, poderá determinar a respectiva falência, favorecendo o desenvolvimento saudável da livre economia, uma vez que o Estado deve promover prioritariamente o acesso à justiça das pessoas singulares e entidades sem fins lucrativos, em detrimento da opção de financiamento público dos custos inerentes à actividade normal e lucrativa das empresas.
II - O regime de acesso ao direito e aos tribunais foi profundamente alterado com a entrada em vigor da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, já que a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário passou a ser efectuada pelos serviços da segurança social e que o Código das Custas Judiciais - com as alterações de 2001, 2002, 2003 e 2004 -, não tendo alterado a solução quanto a pessoas colectivas com fins lucrativos, retirou a isenção subjectiva de custas ao Estado, incluindo os seus serviços e organismos, e ainda às instituições de segurança social e às instituições de previdência social de inscrição obrigatória.
III - Encontrando-se o acesso universal à justiça genericamente garantido pelo instituto do apoio judiciário - que assegura que nenhum cidadão seja privado do acesso ao direito e aos tribunais nomeadamente por razões de ordem financeira, nomeadamente na área socialmente mais premente da justiça criminal - nas demais situações, designadamente naquelas em que se discutam interesses patrimoniais e de natureza económica, entendeu-se dever ser aceite que uma parte dos custos da justiça seja suportada por quem a ela recorre e dela retira benefícios, e não pela generalidade dos cidadãos, reconhecendo-se que o sistema não acautelava este objectivo, antes beneficiava quem recorre indiscriminadamente e de forma imponderada aos tribunais e quem dá causa à acção, impondo ao Estado (e à comunidade) o ónus de suportarem grande parte dos custos da justiça.
IV - Por outro lado, o legislador pretendeu consagrar o princípio de que, salvo ponderosas excepções, todos os sujeitos processuais, independentemente da sua natureza ou qualificação jurídica, deviam estar sujeitos ao pagamento de custas, desde que tenham capacidade económica e financeira, sendo as excepções equacionadas em sede de apoio judiciário. Tal medida visou ainda concretizar plenamente o direito de acesso ao direito e aos tribunais, sob a garantia da efectiva igualdade processual entre a administração e os cidadãos, constituindo factor de responsabilização acrescida do Estado e demais entidades públicas pelas consequências derivadas das suas actuações e do seu comportamento processual, moralizando e racionalizando o recurso aos tribunais.
V - Sendo certo que não pode analisar-se a norma cuja inconstitucionalidade está em causa, sem que se considere globalmente o sistema de custas, haverá que efectuar uma visão sistémica da questão. A disposição do artigo 7º, n.º 3, da Lei n.º 34/2004 (na redacção da Lei n.º 47/2007), agora em causa, é mais restritiva que a lei anterior, no ponto em que exclui, sem qualquer ressalva, a possibilidade de concessão de apoio judiciário a pessoas colectivas com fins lucrativos. Todavia, a restrição não viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado pelo artigo 20º da Constituição, nem o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º da Constituição.
VI - Como o Tribunal já afirmou, não decorre da Constituição que as entidades com fins lucrativos sejam equiparadas às pessoas singulares e pessoas colectivas de fim não lucrativo para efeitos de promoção pelo Estado de acesso à justiça, atenta a ressalva quanto às pessoas colectivas em geral prevista no artigo 12.º, n.º 2 da Constituição. Não sendo comparáveis as situações, a promoção das condições positivas de acesso aos tribunais nos casos de insuficiência económica não tem o mesmo significado quanto a pessoas singulares e quanto a pessoas colectivas com fim lucrativo, que devem, por imposição legal, integrar na sua actividade económica os custos com a litigância judiciária que desenvolvem, assim assegurando a protecção dos interesses patrimoniais da universalidade dos credores e do próprio interesse geral no desenvolvimento saudável da economia. Já quanto ao cidadão comum, bem se deve reconhecer que tais custos representam, em regra, uma despesa excepcional e episódica.
VII - Para além do mais, a norma em causa não inviabiliza totalmente o direito de acesso à justiça, já que as pessoas colectivas que se encontram em situação verdadeiramente deficitária beneficiam de isenção de custas em qualquer processo, não carecendo, por isso, de qualquer apoio. Acresce que é permitido que os custos derivados de contencioso sejam deduzidos aos rendimentos das pessoas colectivas pelo que, apesar de serem suportados inicialmente, acabam por ser abatidos para efeitos de determinação da matéria colectável, ou mesmo quando a acção é alheia à actividade económica da empresa; os seguros deverão ser efectuados para prevenir situações de responsabilidade civil, sendo certo que são também considerados custos, dedutíveis à matéria colectável.
VIII - Por outro lado, não pode de modo algum esquecer-se que a protecção jurídica de pessoas colectivas com fim lucrativo corresponderia a uma opção de proteger a litigância de sociedades comerciais sem condições de assegurar a sua actividade económica, o que se mostra desconforme com a injunção constitucional prevista no artigo 81.º, alínea f) de assegurar o funcionamento dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, e a sua competitividade, o que implica aceitar que aquelas que se mostram incapazes de suportar os custos normais da sua actividade económica, tornando-se inviáveis, não devem prosseguir a sua actividade. Não faz sentido, com efeito, que a existência das pessoas colectivas com fins lucrativos implique a absorção de proveitos económicos gerados globalmente pela comunidade. Caso contrário, o legislador coloca a cargo dos contribuintes uma parte dos custos da actividade das pessoas jurídicas que têm como fim obter lucros, o que dificilmente é sustentável.
IX - Por último, a norma em apreciação não constitui uma restrição desproporcional e injustificada do direito à efectivação do acesso à Justiça. A diferenciação é justificada pela diversidade de condições referidas e está sustentada por razões de interesse público, não sendo arbitrária a opção legislativa. E não deve esquecer-se que, tal como o Tribunal tem sempre aceitado, o legislador goza de uma certa margem de liberdade conformadora na concretização prática do conceito de insuficiência económica para efeito do apoio judiciário, realidade com contornos imprecisos que inevitavelmente se liga não só aos encargos concretos da lide a cargo do interessado, mas, essencialmente, à situação económica deste. Ora, a relatividade do conceito de insuficiência económica autoriza, para este efeito, que a necessidade de protecção jurídica seja aferida em face de uma situação de disponibilidade económica que a ordem jurídica impõe tipicamente à pessoa colectiva que prossegue fins lucrativos.»
O Acórdão n.º 216/2010 foi votado pela maioria do Plenário do Tribunal Constitucional. Não suscitando o presente caso questão nova que pudesse levar à reponderação do sentido da decisão, cumpre fazer aplicação desta jurisprudência ao presente caso.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Não julgar inconstitucional a norma do artigo 7.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com a redacção introduzida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, na parte em que estabelece que as pessoas colectivas com fins lucrativos não têm direito a protecção jurídica
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Novembro de 2010.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.