Imprimir acórdão
Processo n.º 615/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., Lda., inconformada com a decisão sumária proferida a 11 de Outubro de 2010, vem dela reclamar dizendo o seguinte:
“1° O objecto da presente reclamação prende-se com o entendimento firmado na douta decisão do Ex. Sr. Conselheiro Relator, proferida ao abrigo do disposto no art° 78°-A/n° 1 da LTC, de que ‘se não encontra preenchido o pressuposto essencial ao conhecimento do recurso’
2° E conclui desse modo por entender que, in casu, o objecto do recurso cuja conformação corre por conta do recorrente, não coincide com a ratio decidendi da decisão a quo.
3° Resultando essa falta de coincidência do facto de a douta sentença a quo ter considerado como não retroactiva a revogação do n.º 2 do art° 49.º da LGT, enquanto a recorrente a considera retroactiva.
Mas,
4.º Não será da própria natureza dos recursos que quem recorre tenha um entendimento oposto ao da decisão de que se recorre-
5.º Aliás, se o entendimento da recorrente nesta matéria coincidisse com o entendimento firmado na douta decisão sumária não haveria necessidade do recurso!
Por outro lado,
6° A douta decisão sumária partiu da consideração de que o objecto do recurso para o TC era constituído apenas pela questão da retroactividade da revogação do n° 2 do art° 49.º da LGT.
7.º Tal consideração baseou-se na forma como se encontrava redigido o requerimento apresentado na sequência do convite do Ex. Senhor Relator para especificar qual o sentido normativo que pretendia ver apreciado e que reputava à ratio decidendi.
8° Na verdade, na fundamentação da douta decisão sumária refere-se expressamente que a recorrente integrou no objecto do recurso a revogação do artigo 49.º, n.º 2 da LGT com eficácia retroactiva.
9.º E assim aconteceu efectivamente.
10.º Mas, a recorrente, não limitou o objecto do recurso apenas a essa questão.
11° Como se pode ver através do requerimento apresentado na sequência do convite do Ex. Senhor Relator para especificar qual o sentido normativo que pretendia ver apreciado e que reputava à ratio decidendi.
12° De facto, aí se refere também, mais propriamente no n° 5.º, o sentido normativo da simples revogação do n° 2 do art° 49° da LGT, cuja interpretação do tribunal a quo foi de que tal revogação não violava os princípios constitucionais da proporcionalidade, da segurança jurídica da protecção da confiança e do due process of law.
13° Na verdade, sempre foi intenção da recorrente levar ao objecto do recurso esta interpretação efectuada pela douta sentença a quo. Porém,
14° O inciso ‘Ou seja’, colocado no fim do texto do n° 4° daquele pode resultar um tanto equivoco, podendo levar à conclusão de que a questão da retroactividade constante desse n° 4.º e a questão da violação dos princípios constitucionais constantes do n° 5, estão intimamente ligados, como se a questão fosse uma só.
15° Mas, não era isso que a recorrente queria dizer. Expressou-se mal.
16.º Se bem que, para esse erro de expressão terá contribuído o posicionamento da douta sentença a quo, que, efectivamente, unificou todas as questões suscitada na p.i. numa só, reportada à retroactividade ou não da revogação do art° 49°,n°2 da LGT.
17° Foi esse o efeito prático desse posicionamento, adoptado na sentença a quo, que se transcreveu para o referido n° 4 do requerimento onde se diz: ‘...e se não existe efeito retroactivo não ocorrem as restantes violações da CRP alegadas pela recorrente’
18° De facto, na p.i. apresentada junto do tribunal a quo, o autor começa por suscitar a inconstitucionalidade da simples revogação do n° 2 do art. 49.º da LGT e só depois, a propósito da violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, é que se invoca a retroactividade da revogação daquela norma como fundamento.
19° Porém, o raciocínio do tribunal a quo erigiu como questão principal a questão da retroactividade embora se pronuncie, ainda que telegraficamente, sobre as demais questões para concluir pela não verificação dos demais vícios de inconstitucionalidade.
20° Por conseguinte, a dimensão normativa que o recorrente pretende imputar à douta sentença a quo e que constitui a ratio decidendi contém duas vertentes:
= Um juízo de constitucionalidade imputável à simples revogação da norma constante do n° 2 do art° 49° da LGT, enquanto violadora dos princípios constitucionais da proporcionalidade, da segurança jurídica da protecção da confiança e do due process of law.
= Um juízo de constitucionalidade imputável à revogação com carácter retroactivo do n° 2 do art° 49° da LGT, enquanto violador dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.
Nestes termos e concluindo, Deverá, em conferência, decidir-se pelo conhecimento do recurso, cujo objecto abrange o duplo sentido normativo acima explicitado.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“5. Entende-se ser de proferir decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, por não se encontrar preenchido pressuposto essencial ao conhecimento do recurso. Como é sabido, os recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, versam as normas ou dimensões normativas que, integrando a ratio decidendi da decisão recorrida, tenham visto a sua inconstitucionalidade suscitada – pelo futuro recorrente constitucional – durante o processo. Atenta a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional apenas se pode pronunciar sobre o objecto do recurso quando tal pronúncia reveste – ainda que em termos meramente virtuais – utilidade nos autos em que se insere. Significa isto que sempre que o objecto do recurso, cuja conformação corre por conta do recorrente, não coincida com a ratio decidendi da decisão a quo, está o mesmo votado ao não conhecimento.
6. A Recorrente integra no objecto do recurso a revogação do artigo 49.º, n.º 2 da LGT com eficácia retroactiva. Ora, a decisão recorrida entende que não há qualquer retroactividade pois o prazo se encontrava ainda em curso. De facto, só se pode falar em retroactividade se o prazo tivesse já decorrido. O tribunal a quo considerou, no entanto, que esse prazo se encontrava ainda em curso à data da entrada em vigor da alteração legislativa – e este é um elemento processual que não compete ao Tribunal Constitucional, nesta sede, controlar. A invocação da retroactividade pressupõe a atribuição de efeitos novos a uma situação passada, cujos efeitos se encontravam já devidamente consolidados. Se o prazo previsto na redacção anterior do artigo 49.º, n.º 2, da LGT, se encontrava ainda a decorrer, então o efeito pretendido pela Recorrente (interrupção da prescrição) não se havia ainda produzido. O que significa que a revogação desse preceito, e a aplicação imediata de tal revogação aos prazos em curso, nos termos do artigo 91.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, não reveste um carácter retroactivo. Este foi o entendimento do tribunal a quo. Mas esta não é, no entanto, a dimensão questionada pela Recorrente que qualifica a revogação do artigo 49.º, n.º 2 da LGT como retroactiva.”
3. A Fazenda Pública, notificada da reclamação, não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Adiante-se já que a reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento. Como se sabe, o conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, como sucede nos autos, depende da prévia verificação de vários requisitos, nomeadamente a suscitação, pelo recorrente, de inconstitucionalidade de uma norma durante o processo, constituindo essa norma fundamento (ratio decidendi) da decisão recorrida, bem como o prévio esgotamento dos recursos ordinários. Para além disso, é imprescindível a utilidade de qualquer juízo que o Tribunal Constitucional venha a proferir.
5. A Reclamante começa por sustentar que é da “natureza dos recursos” discordar-se da decisão recorrida. É verdade. Mas o que está em causa nos presentes autos e a Reclamante parece olvidar é que o recurso de constitucionalidade não é um meio qualquer de impugnação das decisão judiciais, limitando o respectivo objecto às questões de constitucionalidade normativa que tenham emergido no decorrer da lide e que constituam o fundamento – isto é, a razão de decidir – da pronúncia judicial de que o mesmo é interposto. A mera discordância com a decisão não tem lugar quando se trata de avaliar a admissibilidade de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade. Tal admissibilidade depende da integração no objecto do recurso de uma questão de inconstitucionalidade normativa que, tendo sido devidamente suscitada durante o processo, encontre correspondência no fundamento da decisão recorrida, sob pena de total inutilidade da pronúncia do Tribunal Constitucional.
Quando a Reclamante questiona o preceito (melhor, a sua interpretação) que atribui à revogação do artigo 49.º, n.º 2, da LGT eficácia retroactiva, fazendo total tábua rasa da interpretação que foi efectivamente efectuada e acolhida pelo tribunal a quo, condena irremediavelmente o recurso de constitucionalidade ao não conhecimento na medida em que este não foi o entendimento adoptado na decisão.
6. Adianta ainda a Reclamante que questionou também a constitucionalidade da simples revogação do artigo 49.º, n.º 2 da LGT. Isso não é verdade como se pode aferir do teor do requerimento de interposição do recurso, complementado com as especificações constantes da resposta ao despacho-convite formulado pelo Relator. De facto, competia à Reclamante especificar, nessa peça processual, de modo claro e sem margem para dúvidas, a interpretação ou interpretações do preceito legal em causa cuja constitucionalidade visava ver apreciada e que correspondia(m) à ratio decidendi do acórdão recorrido. Não se questionou a constitucionalidade da simples revogação do artigo 49.º, n.º 2 da LGT, e, se tal era a intenção da Reclamante, o certo é que não logrou espelhá-la no conteúdo então articulado. Esta omissão, imputável à Reclamante, só pode redundar, do mesmo modo, na impossibilidade de conhecimento do recurso.
III – Decisão7. Face ao exposto, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.