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Processo n.º 587/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional
A. interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença proferida no processo n.º 3417/04.8TJLSB, do 4.º Juízo Cível – 1.ª Secção, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, que julgou procedente a acção de despejo contra si instaurada e, em consequência, declarou resolvido o contrato de arrendamento relativo a uma fracção autónoma de um prédio sito em Lisboa, decretou o despejo do locado e condenou a Ré a entregá-lo aos autores, livre de pessoas e bens.
Este recurso foi julgado improcedente por acórdão proferido em 22 de Abril de 2010, tendo sido posteriormente recusado o pedido da sua reforma, por acórdão proferido em 17 de Junho de 2010.
Foi então interposto recurso para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“I. A inconstitucionalidade da interpretação normativa perfilhada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relativamente às normas do art. 342º, nº 1 do Código Civil (CC) e do art. 516º do Código de Processo Civil, por ofensa ao direito constitucional a um processo equitativo, consagrado no art. 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP)
1. No art. 73º e na conclusão 10ª das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a Recorrente suscitou a seguinte questão:
«73. A utilização de presunções, incluindo as próprias presunções iuris et de jure que o legislador estabelece, enquanto desvios à regra da prova directa dos factos, só é comportável, por um sistema constitucional como o nosso, que consagra o direito a um processo equitativo - art. 20º, nº 4 da CRP -, «desde que as mesmas visem atingir um fim legítimo e não se revelem desproporcionadas» (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 570/2008, de 26/11, Proc. nº 217/08, da 3ª Secção, Rel. Vítor Gomes, acessível através de www.tribunalconstitucional.pt)»
2. Da leitura das págs. 5 e 6 do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa resulta que foram decisivos, para manter as respostas dadas na primeira instância à matéria de facto, «os consumos reduzidos de água (fls. 182), os consumos praticamente inexistentes de gás (fls. 183/4) e também os consumos insignificantes de electricidade (fls. 194)», que o Tribunal da relação considerou «claramente, incompatíveis com a utilização habitacional mínima do andar por um casal»;
3. O Tribunal classificou de insuficiente a prova testemunhal produzida, descredibilizando muitos dos depoimentos e decidiu, sobretudo, com base nos mencionados «documentos», relativos aos consumos de água, gás e electricidade;
4. Relativamente à norma do art. 516º do CPC, que é a consequência da consagração, no direito civil, da norma do nº 1 do art. 342º do CC, o Acórdão adicionou-lhe o seguinte critério normativo: «Só a dúvida persistente, após a ponderação de todos os meios de prova apresentados, justifica a aplicação do princípio consagrado no art. 516º do CPC»;
5. As normas mencionadas, do art. 342º, nº 1 do CC e do art. 516º do CPC, não foram tomadas com o sentido genérico e objectivo que normalmente lhes é atribuído, uma vez que é jurisprudência corrente que os consumos domésticos são um indicador que «só por si, nada prova, no sentido de daí não se poder extrair qualquer presunção juridicamente relevante» (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03/12/1991, Proc. nº 0048141, Rel. Adelino Gonçalves, acessível através de www.dgsi.pt) e, ainda, que «os consumos de água e luz debitados apenas provam um facto: o consumo. Não provam como ele se fez» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/12/1991, Proc. nº 914088, Rel. Gonçalves Vilar, acessível através do mesmo endereço);
6. Diferentemente, a interpretação normativa perfilhada pelo Acórdão dos autos - imprevisível perante a citada jurisprudência - foi a de aceitar os consumos domésticos como base da presunção de outras realidades, estabelecendo um critério normativo de decisão que é susceptível de ser aplicado, em termos genéricos, no futuro;
7. Não é o acto de julgamento que se questiona, quanto à adequação e correcção do juízo de valoração da prova e da fixação da matéria de facto, mas sim o critério normativo ínsito no Acórdão, cuja desadequação à garantia constitucional do processo equitativo, o Tribunal Constitucional, em termos estritamente normativos, é apto para avaliar;
8. O legislador ordinário não podia instituir um regime que atribuísse valor de presunção aos consumos domésticos e, tanto assim é, que não o fez no Dec.-Lei nº 159/2006, de 8 de Agosto, relativo ao agravamento do imposto municipal sobre os imóveis para os prédios devolutos, considerando, nesse diploma, como mero indício de desocupação a inexistência de facturação relativa a consumos de água, gás, electricidade e telecomunicações (respectivo art. 2º, nº 2 b));
9. Com o devido respeito, o Tribunal socorreu-se, no caso dos autos, de uma ferramenta traiçoeira - consumos domésticos de valor reduzido -, arvorando-a em critério de decisão. A criação, por via jurisprudencial, de uma nova categoria de provas com eficácia reforçada, sem base legal para o efeito, constitui uma tendência perigosa para a salvaguarda dos direitos dos cidadãos;
10. O resultado interpretativo do Acórdão colide com a Constituição, porque é desproporcionado e, nessa medida, contrário ao direito constitucional a um processo equitativo, consagrado no art. 20º, nº 4 da CRP, atribuir o valor de presunção a um dado tão falível como é o de os consumos domésticos serem baixos.
II. A inconstitucionalidade da interpretação normativa perfilhada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relativamente à norma do art. 64º, nº 1, alínea i) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), por ofensa ao direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26º, nº 1 da CRP) e ao direito à habitação, também na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar (art. 65º, nº 1 da CRP)
11. No art. 78º e na conclusão 13ª das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a Recorrente suscitou a seguinte questão:
«78. A interpretação perfilhada pela Sentença recorrida da norma da alínea i) do nº 1 do art. 64º do RAU, ao abrigo da qual foi decretado o despejo, é claramente violadora (...) do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26º, nº 1 da CRP) e do direito à habitação, também na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar (art. 65º, nº 1 da CRP)»;
12. O douto Acórdão afirma que a Sentença se limitou a aplicar a mencionada norma legal à matéria de facto provada «sem qualquer tipo de interpretação», para logo concluir que «se mostra completamente injustificável a alegação de que a sua interpretação violou o direito à reserva da vida privada e familiar e o direito à habitação, na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar» (pág. 8);
13. Salvo o devido respeito, a interpretação, pelo julgador, é sempre necessária, existe sempre, não apenas nos casos de maior complexidade, ao contrário do que pretende o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que para chegar a tal conclusão teve também certamente de realizar um trabalho de interpretação;
14. Ainda que, em abstracto, se possam distinguir, porque pode haver interpretação sem aplicação do direito, as duas figuras formam um binómio e a aplicação pressupõe a interpretação;
15. No caso dos autos, a aplicação não consistiu numa automática subsunção dos factos à norma, pois esta é composta por conceitos jurídicos indeterminados, que obrigam o intérprete-aplicador do direito a realizar algumas valorações - «falta de residência permanente» (art. 64º, nº 1 i) do RAU);
16. A questão de inconstitucionalidade não respeita apenas à norma legal em causa, em si mesma considerada, mas sim à interpretação que dela foi feita, muito concretamente à norma que, por via interpretativa, se extrai do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa;
17. Este Acórdão criou um padrão regulador de comportamentos: para ter residência permanente no local arrendado, o inquilino - no futuro, qualquer inquilino, independentemente dos seus rendimentos e das demais circunstâncias da sua vida pessoal - não pode ter consumos mínimos de água, electricidade e gás;
18. O preenchimento dos mencionados conceitos jurídicos indeterminados deu, portanto, lugar à formação de uma norma, sindicável pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, porque está em causa o direito das pessoas à conformação das suas próprias vidas, segundo as suas possibilidades e carências;
19. Numa acção de despejo não se tem de discutir se o inquilino tem fogão eléctrico ou a gás, se tem, ou não, microondas, se o esquentador é também eléctrico ou a gás, ou se tem caldeira, se usa aquecimentos eléctricos ou outros, se cozinha em casa ou se compra comida feita ou se vai comer fora ou a casa de um familiar, tudo factos que relevam da reserva da vida privada de cada um;
20. O resultado interpretativo do Acórdão, relativamente à norma do art. 64º, nº 1, alínea i) do RAU), colide com o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar - art. 26º, nº 1 da CRP - e com o direito à habitação, também na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar - art. 65º, nº 1 da CRP.”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Vejamos agora as questões suscitadas pela recorrente, à luz dos referidos requisitos.
1. Da questão da inconstitucionalidade da interpretação das normas do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil e do artigo 516.º, do Código de Processo Civil.
A recorrente pretende que seja fiscalizada a constitucionalidade material da «interpretação normativa perfilhada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relativamente às normas do artigo 342º, n.º 1, do Código Civil (CC), e do artigo 516.º, do Código de Processo Civil (CPC), por ofensa ao direito constitucional a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
Segundo a Recorrente, foram decisivos, para que o Tribunal da Relação de Lisboa mantivesse as respostas dadas na primeira instância à matéria de facto, os consumos reduzidos de água, os consumos praticamente inexistentes de gás e também os consumos insignificantes de electricidade, os quais foram considerados claramente incompatíveis com a utilização habitacional mínima do andar por um casal e, relativamente à norma do artigo 516.º do CPC, o Acórdão sindicado adicionou-lhe o seguinte critério normativo: «Só a dúvida persistente, após a ponderação de todos os meios de prova apresentados, justifica a aplicação do princípio consagrado no art. 516º do CPC».
Veja-se o que foi efectivamente decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na parte respeitante à questão ora em apreciação:
«[ ... ]
Assim, entrando na questão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, esta pode ser alterada, nos casos previstos no n.º 1 do art. 712.º do CPC, o que, sendo um desses casos, importa proceder à reapreciação da prova, nos termos do n.º 2 do art. 712.º do CPC.
Estão em causa, desde logo, os factos descritos nas alíneas e) a j), correspondentes às alíneas e) a k), especificadas pela Apelante.
No despacho que decidiu a matéria de facto, refere-se como determinante, naquele âmbito, o depoimento da testemunha B. e as respostas das entidades fornecedoras de água, gás e electricidade à fracção, das quais decorre que, entre 2002 e 2007, o consumo de água foi reduzido, o de electricidade pouco significativo e o de gás quase inexistente (fIs. 284 a 287).
Ao contrário do que alega a Apelante, a testemunha B., que habitou no prédio entre 2001 e 2007, foi clara no sentido de que 'ninguém habitava nesse andar' (4.º andar direito), nunca tendo encontrado ninguém a ir para o mesmo, e tendo referido que os residentes se conheciam, por se verem bastante. Apesar de ser genro do Apelado, nada foi alegado de que tivesse deposto com falta de isenção e imparcialidade, nem do seu depoimento se pode retirar essa falta.
Por sua vez, a testemunha C., residente no 5.º andar esquerdo do prédio, embora tivesse afirmado que a Interveniente morava no andar e que, com regularidade, a via a ela e ao marido, também declarou não poder dizer se sempre lá morou, como se dormiam e faziam as refeições ou, mesmo, se lá viviam. Destas declarações ressalta um depoimento eivado de profunda contradição, que, por isso, não serve para fundamentar uma resposta contrária à que foi dada.
Igualmente contraditório é o depoimento da testemunha D., quando, referindo-se à regularidade nos últimos anos com que a Interveniente passava no seu estabelecimento comercial, sito próximo do prédio em causa nos autos, tanto declarou serem 'cinco, seis anos', como 'talvez de quinze em quinze dias, mês a mês depende'. Neste contexto, a afirmação da testemunha de que a Interveniente vive no andar dos autos não pode merecer crédito suficiente de modo a conferir uma resposta diferente.
O depoimento da testemunha E., que declarou fazer, desde 2000, a limpeza do andar uma vez por semana, ao sábado, apresenta-se pouco convincente, visto que, embora dando a ideia do andar ser habitado, as suas declarações não são peremptórias, designadamente quanto ao período em que a doença mais terá afectado o Réu e em que a presença deste no andar não podia ser tão certa, para além de que, pelas declarações da mesma, raramente o terá visto. Acresce que, ao afirmar que o 'senhor ia lá, que estava lá, de vez em quando', acaba por transmitir uma ideia contrária à que antes afirmara. Por isso, também este depoimento não possibilita uma resposta diversa.
Por seu turno, o depoimento da testemunha F., sogro da filha do Réu e da Interveniente, revela-se pouco esclarecedor, na medida em que foi muito vago quanto às declaradas visitas que terá feito ao R., no andar dos autos, quando também referiu que aquele terá vivido no Estoril 'talvez os últimos cinco anos de vida ', constando dos autos o seu falecimento em Junho de 2008 (fls. 219). Deste modo, este depoimento é também insuficiente para se modificar a resposta oferecida nos autos.
Já o depoimento da testemunha G., genro do Réu e da Interveniente, também indicado pela Apelante, não adianta, porquanto o mesmo foi chamado a depor apenas sobre a doença do R.
Por outro lado, nos anos anteriores à propositura da acção, os consumos reduzidos de água (fls. 182), os consumos praticamente inexistentes de gás (fls. 183/4) e também os consumos insignificantes de electricidade (fls. 194) são, claramente, incompatíveis com a utilização habitacional mínima do andar por um casal, documentos que não podem deixar de ser considerados, não de forma isolada mas em conjugação com a prova testemunhal, como foram, aliás, na decisão impugnada, invalidando totalmente as razões invocadas contra a sua utilização, sendo certo ainda que não se surpreende a violação de qualquer princípio de ordem constitucional.
Daí, porém, não resultou qualquer violação do disposto no art. 516.º do CPC, porquanto o julgador, depois de considerar também esse último meio de prova, não teve dúvida sobre a realidade do respectivo facto. Só a dúvida persistente, após a ponderação de todos os meios de prova apresentados, justifica a aplicação do princípio consagrado no art. 516.º do CPC, resolvendo-se a mesma contra a parte a quem o facto aproveita.
Os fundamentos referidos que serviram de prova à matéria mencionada justificam, igualmente, a resposta negativa à matéria de que 'os RR. continuam a residir no local arrendado, onde dormem, tomam refeições, contactam com os vizinhos e recebem pessoas', matéria identificada pela Apelante sob a alínea i), assim como a manutenção da primeira parte da matéria referida em p), e identificada pela Apelante sob a alínea r).
[ ... ]».
Apesar de alguma dificuldade resultante da pouca precisão e clareza na indicação das questões normativas cuja constitucionalidade pretende sindicar, depreende-se que a Recorrente sustenta que o Tribunal da Relação de Lisboa aplicou uma interpretação normativa extraída dos artigos 516.º, do CPC, e 342.º, n.º 1, do CC, no sentido de 'aceitar os consumos domésticos como base da presunção de outras realidades (a falta de residência permanente), estabelecendo um critério normativo de decisão que é susceptível de ser aplicado, em termos genéricos, no futuro'.
Contudo, resulta do trecho da decisão recorrida acabado de transcrever que o Tribunal da Relação de Lisboa, ao contrário do que sustenta a Recorrente, não adoptou a interpretação normativa por esta referida.
Com efeito, o que resulta do referido acórdão, na parte que ora releva, é que o Tribunal recorrido apreciou os documentos relativos aos consumos de água, de gás e de electricidade relativos ao locado, não de forma isolada, mas em conjugação com a prova testemunhal, sem que tenha usado na concreta valoração dos referidos elementos de prova um critério normativo nos termos apontados pela recorrente.
Ou seja, o que o Tribunal a quo fez foi valorar a aludida prova documental, em conjugação com a prova testemunhal e, tendo concluído que a mesma era bastante para considerar provados determinados factos, afastou a aplicação do disposto no artigo 516.º do CPC, por entender que, face à referida prova, não se estava perante a situação de dúvida a que se refere tal disposição legal.
Em nenhuma parte do seu discurso formulou um raciocínio segundo o qual, da pouca expressão dos consumos de água, gás e electricidade, por presunção, se podia retirar a conclusão que o arrendatário não residia permanentemente no arrendado, pelo que a interpretação normativa que a Recorrente argui de inconstitucional não integrou a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Não se mostrando satisfeito este requisito essencial do recurso de constitucionalidade sob apreciação, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso nesta parte, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
2. Da questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 64.º, n.º 1, alínea i) do Regime do Arrendamento Urbano.
A recorrente pretende também que seja fiscalizada a constitucionalidade material «da interpretação normativa perfilhada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relativamente à norma do art. 64º, nº 1, alínea i) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), por ofensa ao direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26º, nº 1 da CRP) e ao direito à habitação, também na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar (art. 65º, nº 1 da CRP)».
De acordo com a Recorrente, a questão de inconstitucionalidade não respeita à norma legal em causa, em si mesma considerada, mas sim à interpretação que dela foi feita, muito concretamente à norma que, por via interpretativa, se extrai do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, segundo o qual, para ter residência permanente no local arrendado, o inquilino – no futuro, qualquer inquilino, independentemente dos seus rendimentos e das demais circunstâncias da sua vida pessoal – não pode ter consumos mínimos de água, electricidade e gás.
Mais refere a Recorrente que a aplicação do direito efectuada pela decisão recorrida não consistiu numa automática subsunção dos factos à norma, pois esta é composta por conceitos jurídicos indeterminados («falta de residência permanente»), que obrigam o intérprete-aplicador do direito a realizar algumas valorações.
Sustenta, assim, que o preenchimento dos conceitos jurídicos indeterminados constantes da referida disposição legal deu lugar à formação de uma norma, sindicável pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, porque está em causa o direito das pessoas à conformação das suas próprias vidas, segundo as suas possibilidades e carências.
Porém, a interpretação normativa enunciada pela Recorrente não foi adoptada pelo tribunal a quo e, consequentemente, não chegou a ser efectivamente aplicada como fundamento da decisão recorrida (ratio decidendi).
Para ilustrar esta afirmação, passa-se a transcrever a decisão recorrida na parte que ora releva:
«[...]
A aplicação do direito, de um modo diferente do que se procedeu na sentença recorrida, tinha como pressuposto a alteração da decisão sobre a matéria de facto, que não se verificou, estando também afastada qualquer violação das regras da distribuição do ónus da prova, com consagração no art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Estando materializada a falta de residência permanente, com o sentido acolhido pela jurisprudência, tornando despropositada a invocação do disposto no n.º 2 do art. 2.º do DL n.º 159/2006, de 8 de Agosto, justifica-se a resolução do contrato de arrendamento, para habitação, nos termos alínea i) do n.º 1 do art. 64.º do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, ainda aplicável, como bem se fundamentou na sentença recorrida.
Esta limitou-se a aplicar a norma legal à materialidade provada, sem qualquer tipo de interpretação, pelo que se mostra completamente injustificável a alegação de que a sua interpretação violou o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar e o direito à habitação, na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar.
[...]».
É manifesto, da simples leitura da decisão recorrida, que não se adoptou o critério normativo apontado pela Recorrente como inconstitucional.
Na verdade, não se constata que aí se sustente que qualquer inquilino, independentemente dos seus rendimentos e das demais circunstâncias da sua vida pessoal, para ter residência permanente no local arrendado, não pode ter consumos mínimos de água, electricidade e gás.
O que na decisão recorrida se entendeu é que o inquilino – o concreto inquilino em causa nos autos –, face aos factos que foram considerados provados, não tinha residência permanente no locado. Esta ponderação individualizada traduz-se numa operação de subsunção que o Tribunal Constitucional não tem competência para fiscalizar, como acima já se explicou.
Assim, não se mostrando que esta segunda interpretação normativa enunciada pelo Recorrente tenha integrado a ratio decidendi da decisão recorrida, o Tribunal Constitucional também não pode conhecer do presente recurso nesta parte, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
A recorrente reclamou para a conferência desta decisão nos seguintes termos:
“I. Reclamação para a conferência
1. O primeiro dos dois fundamentos da decisão sumária nº 389/2010
A douta decisão sumária nº 389/2010 não conheceu da questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa perfilhada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Abril de 2010, relativamente às normas do art. 342º, nº 1 do Código Civil (CC) e do art. 516º do Código de Processo Civil, por ofensa ao direito constitucional a um processo equitativo, consagrado no art. 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), pelas razões que se transcrevem:
«Contudo, resulta do trecho da decisão recorrida acabado de transcrever que o Tribunal da Relação de Lisboa, ao contrário do que sustenta a Recorrente, não adoptou a interpretação normativa por esta referida.
Com efeito, o que resulta do referido acórdão, na parte que ora releva, é que o Tribunal recorrido apreciou os documentos relativos aos consumos de água, de gás e de electricidade relativos ao locado, não de forma isolada, mas em conjugação com a prova testemunhal, sem que tenha usado na concreta valoração dos referidos elementos de prova um critério normativo nos termos apontados pela recorrente.
Ou seja, o que o Tribunal a quo fez foi valorar a aludida prova documental, em conjugação com a prova testemunhal e, tendo concluído que a mesma era bastante para considerar provados determinados factos, afastou a aplicação do disposto no artigo 516º do CPC, por entender que, face à referida prova, não se estava perante a situação de dúvida a que se refere tal disposição legal.
Em nenhuma parte do seu discurso formulou um raciocínio segundo o qual, da pouca expressão dos consumos de água, gás e electricidade, por presunção, se podia retirar a conclusão de que o arrendatário não residia permanentemente no arrendado, pelo que a interpretação normativa que a recorrente argui de inconstitucional não integrou a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Não se mostrando satisfeito este requisito essencial do recurso de constitucionalidade sob apreciação, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso nesta parte, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.».
2. As respostas dadas à matéria de facto e a respectiva fundamentação
Para cabal esclarecimento da questão, começa por se reproduzir a «motivação da decisão de facto», na parte relevante:
«No confronto dos vários depoimentos e por os mesmos não serem seguros nem completos e serem contraditórios entre si, suscita-se algumas dificuldades por parte do tribunal em entender o que efectivamente acontecia nos cinco anos que precederam a presente acção, ou seja, de 1999 a 2004. Essa dificuldade pode, no entanto, ser ultrapassada com recurso a elementos de prova com carácter mais objectivo, ou seja, as informações prestadas pelas entidades fornecedoras de água, electricidade e gás.
No que concerne ao período de 1999 a 2004 (sendo certo que foram pedidas informações relativas aos anos de 2000 a 2007), verifica-se que de 1996 a 2002 (cerca de 6 anos) foram consumidos 786, de 2002 a Maio de 2003 (cerca de 1 ano e meio) foram consumidos 896, e quatro meses de 2003 273, até Junho de 2004 672 de electricidade. No que diz respeito ao consumo de gás, os dados são mais expressivos, pois resulta que de Janeiro de 2002 a Junho de 2004 foram apenas consumidos 70, o que significa que durante aquele período raras vezes eram aquecidas águas e raras vezes era utilizado o fogão. Quanto à água, de Dezembro de 2001 a Junho de 2004 foram consumidos apenas 22 m3 em dois anos e meio, o que demonstra que a fracção em causa era raramente utilizada.
Considerando que os RR são pessoas de idade, não nos parece plausível que os mesmos não façam uso do gás para aquecer a sua casa e para fazer as suas refeições. Para além do mais, não se compreende - mesmo que os fins-de-semana sejam passados fora de casa - que os consumos de água e de electricidade registem níveis tão baixos. A única explicação lógica para este facto, que é objectivo, é a dos réus efectivamente e durante um largo período de tempo não terem ali vivido, podendo eventualmente ali se terem deslocado periodicamente para se certificarem que tudo estava em ordem e para tratarem das suas coisas.
O tribunal optou por dar como provado que os RR na fracção em causa não habitam desde 2001, por os dados a partir desse ano serem mais precisos e com base no depoimento da primeira testemunha dos AA.» (negritos da Reclamante).
3. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Abril de 2010
Na pág. 5 do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Abril de 2010, pode ler-se que:
«No despacho que decidiu a matéria de facto, refere-se como determinante. naquele âmbito, o depoimento da testemunha B. e as respostas dadas pelas entidades fornecedoras de água, gás e electricidade à fracção, das quais decorre que, entre 2002 e 2007, o consumo de água foi reduzido, o de electricidade pouco significativo e o de gás quase inexistente (fls. 284 a 287).».
Também na pág. 6 do mesmo Acórdão se refere que foram decisivos, para manter as respostas dadas na primeira instância à matéria de facto, «os consumos reduzidos de água (fls. 182), os consumos praticamente inexistentes de gás (fls. 183/4) e também os consumos insignificantes de electricidade (fls. 194)», que o Tribunal da Relação considerou «claramente, incompatíveis com a utilização habitacional mínima do andar por um casal».
Ou seja, as instâncias consideraram insuficiente a prova testemunhal produzida. descredibilizando muitos dos depoimentos e decidiram com base, sobretudo, nos consumos de água, gás e electricidade.
4. Conclusões relativamente ao primeiro fundamento da decisão sumária nº 389/2010
Já diziam os antigos que unus testis, nuilus testis.
Das sete testemunhas que prestaram depoimento em audiência de discussão e julgamento, o Tribunal só deu credibilidade a uma delas, por sinal genro do senhorio e A..
Não há dúvida, portanto, que decisivos para formar a convicção do Tribunal foram os consumos de electricidade, gás e água.
O Tribunal foi, aliás, ao ponto de dizer que, na dúvida, «optou» pelos dados em seu entender mais objectivos.
Que os documentos relativos aos consumos relevam da reserva da intimidade da vida privada resulta claro do facto de o próprio tribunal só a eles ter acesso com o consentimento do respectivo titular.
Ora é precisamente em relação a este tipo de documentos que o julgador, dado que não conhece os costumes das pessoas em causa, mais facilmente pode cometer erros de interpretação e julgamento e, por isso, mais necessidade tem de os contextualizar, com recurso a outros elementos do processo e à prova testemunhal - idade e posses, apoio familiar, estado de saúde, etc. (cfr. JORDI NIEVA FENOLL, La valoración de la prueba, Madrid/Barcelona/Buenos Aires: Marcial Pons, 2010. pág. 326).
Por outro lado, atenta a importância, na prática, da prova testemunhal e o facto de o tribunal não poder prescindir da prova, a hipótese - aventada pela decisão sumária de que se reclama - de uma decisão tomada exclusivamente com base em prova documental não se coloca, de tão inverosímil que é.
Assim, temos que relativamente à norma do art. 516º do CPC, o Acórdão do Tribunal da Relação adicionou-lhe o seguinte critério normativo: «Só a dúvida persistente, após a ponderação de todos os meios de prova apresentados, justifica a aplicação do princípio consagrado no art. 516º do CPC.» (pág. 8 desse Acórdão).
A interpretação normativa perfilhada foi, deste modo, a de aceitar os consumos domésticos como base da presunção de outras realidades, estabelecendo um critério normativo de decisão que é susceptível de ser aplicado, em termos genéricos, no futuro, e que contraria a garantia constitucional do processo equitativo (art. 20º, nº 4 da Constituição).
A utilização de presunções, incluindo as próprias presunções iuris et de iure que o legislador estabelece, enquanto desvios à regra da prova directa dos factos, só é comportável, por um sistema constitucional como o nosso, que consagra o direito a um processo equitativo, «desde que as mesmas visem atingir um fim legítimo e não se revelem desproporcionadas» (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 570/2008, de 26/11, Proc. nº 217/08, da 3ª Secção, Rel. Vítor Gomes, acessível através de www.tribunalconstitucional.pt)».
As normas do art. 342º, nº 1 do CC e do art. 516º do CPC não foram tomadas com o sentido genérico e objectivo que normalmente lhes é atribuído, uma vez que é jurisprudência corrente que os consumos domésticos são um indicador que «só por si, nada prova, no sentido de daí não se poder extrair qualquer presunção juridicamente relevante» (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03/12/1991, Proc. nº 0048141, Rel. Adelino Gonçalves, acessível através de www.dgsi.pt) e, ainda, que «os consumos de água e luz debitados apenas provam um facto: o consumo. Não provam como ele se fez» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/12/1991, Proc. nº 914088, Rel. Gonçalves Vilar, acessível através do mesmo endereço).
Ainda que a prova seja livre, não o é a sua valoração.
O Tribunal Constitucional pode e deve conhecer do presente caso.
Uma decisão judicial não fica encerrada no processo, ela é até hoje disponibilizada a todos os interessados através da internet. Tem, por isso, de convencer as partes e a comunidade. Sobretudo no que se refere à coerência narrativa da prova.
Nos autos, temos um critério normativo de decisão que não é susceptível de ser aceite pelo ordenamento jurídico, que não o pode passar a integrar (cfr. RAFAEL DE ASÍS, El Juez y la motivación en el Derecho, Madrid: Dykinson, 2005, pág. 78), porque contraria, por exemplo, o regime do Dec.-Lei nº 159/2006, de 8 de Agosto, relativo ao agravamento do imposto municipal sobre os imóveis para os prédios devolutos, no qual se prescreve que a inexistência de facturação relativa a consumos de água, gás, electricidade e telecomunicações constitui um mero indício de desocupação (respectivo art. 2º, nº 2 b)).
Se o legislador ordinário não pode instituir um regime que atribua valor de presunção aos consumos domésticos, muito menos os tribunais poderão adoptar esse critério de decisão.
5. O segundo dos fundamentos da decisão sumária nº 389/2010
A decisão sumária nº 389/2010 não conheceu da questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa perfilhada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relativamente à norma do art. 64º, nº 1, alínea i) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), por ofensa ao direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26º, nº 1 da CRP) e ao direito à habitação, também na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar (art. 65º, nº 1 da CRP) pelas razões que se transcrevem:
«É manifesto, da simples leitura da decisão recorrida, que não se adoptou o critério normativo apontado pela Recorrente como inconstitucional.
Na verdade, não se constata que aí se sustente que qualquer inquilino, independentemente dos seus rendimentos e das demais circunstâncias da sua vida pessoal, para ter residência permanente no local arrendado, não pode ter consumos mínimos de água, electricidade e gás.
O que na decisão recorrida se entendeu é que o inquilino - o concreto inquilino em causa nos autos -, face aos factos que foram considerados provados, não tinha residência permanente no locado. Esta ponderação individualizada traduz-se numa operação de subsunção que o Tribunal Constitucional não tem competência para fiscalizar, como acima já se explicou.
Assim, não se mostrando que esta segunda interpretação normativa enunciada pela Recorrente tenha integrado a ratio decidendi da decisão recorrida, o Tribunal Constitucional também não pode conhecer do presente recurso nesta parte, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.».
6. Apreciação crítica do segundo fundamento da decisão sumária nº 389/2010
A Reclamante não pode ser prejudicada pelo facto de o Tribunal da Relação de Lisboa ter entendido que o direito foi aplicado «sem qualquer tipo de interpretação», afirmação infeliz que, com o devido respeito, não se esperava ver reproduzida sem uma apreciação crítica pelo Tribunal Constitucional.
A actividade de interpretação, pelo julgador, é sempre necessária, existe sempre, não apenas nos casos de maior complexidade, ao contrário do que refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que para chegar a tal conclusão teve também certamente de realizar um trabalho de interpretação.
Ainda que, em abstracto, se possam distinguir - porque pode haver interpretação sem aplicação do direito - as duas figuras formam um binómio e a aplicação pressupõe a interpretação.
No caso dos autos, a aplicação do direito não consistiu numa automática subsunção dos factos à norma, uma vez que esta é composta por conceitos jurídicos indeterminados, que obrigam o intérprete-aplicador do direito a realizar algumas valorações - «falta de residência permanente» (art. 64º, nº 1 i) do RAU).
Embora, porventura, não o afirme expressamente, o Acórdão do Tribunal da criou um padrão regulador de comportamentos: para ter residência permanente no local arrendado, o inquilino - no futuro, qualquer inquilino, independentemente dos seus rendimentos e das demais circunstâncias da sua vida pessoal - não pode ter consumos mínimos de água, electricidade e gás.
O preenchimento dos mencionados conceitos jurídicos indeterminados deu, portanto, lugar à formação de uma norma, sindicável pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, porque está em causa o direito das pessoas à conformação das suas próprias vidas, segundo as suas possibilidades e carências.
Não se trata de consumos inexistentes, mas sim de consumos reduzidos ou mínimos.
Ora numa acção de despejo não se tem de discutir e provar se o inquilino tem fogão eléctrico ou a gás, se tem, ou não, microondas, se o esquentador é também eléctrico ou a gás, ou se tem caldeira, se usa aquecimentos eléctricos ou outros, se cozinha em casa ou se compra comida feita ou se vai comer fora ou a casa de um familiar, tudo factos que relevam da reserva da vida privada de cada um
Também por estas razões o Tribunal Constitucional pode e deve conhecer do presente caso.
A interpretação perfilhada pelas instâncias da norma da alínea i) do nº 1 do art. 64º do RAU, ao abrigo da qual foi decretado o despejo, é claramente violadora do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26º, nº 1 da CRP) e do direito à habitação, também na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar (art. 65º, nº 1 da CRP).
A questão de inconstitucionalidade não respeita apenas à norma legal em causa, em si mesma considerada, mas sim à interpretação que dela foi feita, muito concretamente à norma que, por via interpretativa, se extrai do citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Como já se referiu, o resultado interpretativo do mesmo Acórdão, relativamente à norma do art. 64º, nº 1, alínea i) do RAU), colide com o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar - art. 26º, nº 1 da CRP - e com o direito à habitação, também na vertente da preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar - art. 65º, nº 1 da CRP.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá a presente reclamação ser julgada procedente, com legais consequências, nomeadamente o conhecimento do objecto do recurso, que assim deverá prosseguir, notificando-se a Recorrente para apresentar alegações.
…
III. Requerimento relativo a custas
A Reclamante tem 80 anos e vive de uma pequena pensão de sobrevivência, bem como do apoio da Família mais próxima, concretamente da sua única Filha e do seu Genro, só por isso não tendo requerido o apoio judiciário.
Com esse fundamento, associado à relevância que para si assumem os presentes autos, onde está em jogo ficar sem o andar que mantém arrendado desde 1956 e no qual, com as vicissitudes constantes dos autos, sempre manteve a sua residência, requer a fixação das custas pelo mínimo legal.”
Fundamentação
A Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize a constitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
- a extraída dos artigos 516.º, do CPC, e 342.º, n.º 1, do CC, no sentido de 'aceitar os consumos domésticos como base da presunção da falta de residência permanente”.
- a extraída do artigo 64.º, n.º 1, alínea i) do Regime do Arrendamento Urbano, no sentido que “qualquer inquilino, independentemente dos seus rendimentos e das demais circunstâncias da sua vida pessoal, para ter residência permanente no local arrendado, não pode ter consumos mínimos de água, electricidade e gás”.
Se é verdade que tais critérios têm um cunho normativo, pois, são gerais e abstractos, conforme evidenciou a decisão reclamada, eles não foram de modo algum assumidos pela decisão recorrida, que se limitou a relevar tais consumos para, conjuntamente com outros elementos de prova, concluir que naquele caso concreto a Recorrente não vivia permanentemente no arrendado.
E não integrando a ratio decidendi do acórdão recorrido, não revela qualquer utilidade a apreciação da sua constitucionalidade, uma vez que esse juízo não teria qualquer repercussão na decisão da causa.
Por isso, concorda-se com a decisão sumária de não conhecer o mérito do recurso, devendo ser indeferida nesta parte a reclamação apresentada.
A Recorrente também manifestou a sua discordância, relativamente à taxa de justiça fixada na decisão sumária reclamada.
O artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro, prevê que nestes casos a taxa de justiça seja fixada entre 2 e 10 unidades de conta.
Dispõe o artigo 9.º, n.º 1, do mesmo diploma, que a taxa de justiça é fixada tendo em atenção a complexidade e a natureza do processo, a relevância dos interesses em causa e a actividade contumaz do vencido.
Não é feita qualquer referência à situação económica do devedor das custas, à qual também não se encontra comprovada nos autos.
Ora, atendendo aos critérios impostos pelo referido preceito, revela-se adequado o valor fixado, o qual está de acordo com os padrões do valor das custas habitualmente fixadas neste tribunal em casos idênticos.
Por estas razões também deve ser indeferida a reclamação apresentada pela Recorrente, nesta parte.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária proferida em 23 de Setembro de 2010 nestes autos.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.