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Processo n.º 60/2010
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que são recorrentes A. e B. e é recorrida a Fazenda Pública, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 18 de Novembro de 2009.
2. O Supremo Tribunal Administrativo, pelo acórdão agora recorrido, negou provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra de 29 de Novembro de 2008, nestes termos:
«3 – A questão dos autos é a da interpretação da alínea b) do art.º 51.º do CIRS, recte, do inciso normativo “despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à alienação”.
Isto, no seguinte circunstancialismo factual, como melhor resulta do probatório:
Os recorrentes alienaram - “declararam ceder” - as quotas de que eram titulares na sociedade “C. Ltda”, sem ónus ou encargos, pelo que assumiram as dívidas respeitantes a duas contas caucionadas, garantidas pelas referidas quotas.
Pelo que se coloca a questão de saber se tal “assumpção”, com os gastos inerentes, constitui despesa enquadrada naquele normativo, a considerar para efeitos de tributação da mais-valia respectiva.
E, aí, a subordinante é, sem dúvida, “a inerência” da despesa à alienação.
No critério legal, só as despesas inerentes são necessárias, pelo que só elas são relevantes.
Ora, o qualificativo “inerente”, logo etimologicamente - in re - contém, a se, uma ideia de inseparabilidade, uma relação intrínseca - que não meramente extrínseca - com a alienação: para ser considerada relevante, a despesa há-de sê-lo pela sua posição relativamente à alienação, há-de, em suma, ser dela indissociável.
De outro modo: a despesa há-de ser integrante da própria alienação.
Não se vê, efectivamente, que outro sentido se possa atribuir à expressão “inerentes à alienação”.
A posição dos recorrentes fica-se pela necessidade da despesa, não se atribuindo então, rigorosamente, àquela expressão, qualquer sentido útil.
E, pelo contrário, há-de entender-se que ela não só traz em si um quid significante acrescentativo, como é mesmo a verdadeira subordinante do preceito.
Não basta, pois, como aliás se refere na sentença, que as despesas sejam conexas à obtenção do rendimento; é necessário que elas dele sejam indissociáveis.
Ora, não é a hipótese das despesas em causa, que apenas são conexas à alienação, não são dela inseparáveis: aquela podia perfeitamente ter lugar sem elas, ainda que por um valor diferente.
4 – Mas será que tal interpretação é patológica, no sentido de acarretar a inconstitucionalidade material e orgânica do preceito-
A nosso ver, a resposta é negativa.
Quanto à primeira, como se verá, o princípio da capacidade contributiva nada tem a ver com o caso dos autos.
Melhor se falaria, aí, do princípio da tributação pelo rendimento real mas este coloca-se a montante da alienação propriamente dita.
Os recorrentes não esclarecem a razão de ser - o motivo ou fundamento - das contas caucionadas. Da petição inicial, concluir-se-ia resquiciamente – cfr. item 14.º e seguintes, maxime 16.º e 17.º - que elas operaram a favor da sociedade: “são empréstimos concedidos às sociedades mediante garantia ou aval dos sócios”.
Se assim foi, o princípio da tributação pelo rendimento real deve colocar-se em relação à própria sociedade; não tem a ver com a operação em causa.
A razão - ora desconhecida - que está na génese de tais contas pode levar a que integrem ou constituam custos respectivos, mas não é relevante para a tributação em causa nos autos.
E o mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto à inconstitucionalidade orgânica.
Como referem os recorrentes e nos termos do art.º 6.º da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, “a lei determinará as deduções a fazer em cada uma das categorias de rendimento (…), tomando como critério os custos ou encargos necessários à sua obtenção” (n.º 1), e “ as deduções deverão corresponder aos custos ou encargos efectivos e comprováveis, sem prejuízo de algumas poderem ser fixadas com base em presunções, quando esta solução apresentar melhor segurança para o Fisco ou maior comodidade para os contribuintes, especialmente os de mais baixos rendimentos”.
Tal problemática, no caso concreto, pode colocar-se quanto à sociedade, nos preditos termos, mas falece quanto à alienação em causa.
Pois, em rigor, aí, “os custos ou encargos necessários à sua obtenção” só podem ser, como se crê ter demonstrado, os “inerentes”, isto é, os que lhe são indissociáveis, não os que lhe não dizem directamente respeito, por colocados a montante da operação».
3. Foi então interposto o presente recurso, para apreciação da “constitucionalidade material e orgânica da norma do artigo 51.º, alínea b) do CIRS”, por violação do princípio da capacidade contributiva, o qual “constitui uma decorrência do princípio do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito material, resultando da conjugação de preceitos relativos aos direitos fundamentais, ao sistema fiscal e ao Estado social, entre os quais (…) os artigos 2.º, 13.º, 18.º, 101.º 103.º e 104.º da CRP”; e do princípio da reserva de lei parlamentar em matéria fiscal (artigos 165.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, e 103.º, n.º 2, da CRP).
4. Notificados os recorrentes e a recorrida, os primeiros apresentaram alegações que concluíram da forma seguinte:
«1. A norma do artigo 51.º, al. b), do CIRS, apenas admite que sejam valoradas como componente negativa do rendimento líquido em sede de mais-valias, as despesas inerentes à alienação geradora de mais-valias.
2. Daí resulta a exclusão das deduções/encargos efectivos e comprovados que sejam considerados necessários à obtenção do rendimento sujeito a imposto, na sua concreta expressão quantitativa.
3. Este entendimento, importa uma injustificada violação do princípio da capacidade contributiva na acepção de tributação do rendimento líquido, sendo que o “princípio do rendimento líquido – ou “princípio do rendimento líquido objectivo” – nos termos do qual apenas o montante líquido constitui (verdadeiro) rendimento para o pagamento dos impostos, constitui, pois decorrência do princípio da capacidade contributiva na modelação do imposto sobre o rendimento. E, em princípio, tal justifica que ao rendimento total auferido devam ser deduzidas despesas específicas com a sua obtenção, pois tais gastos constituem uma expressão negativa da capacidade contributiva e, como tal, devem ser excluídos desse conceito se se revelarem indispensáveis à produção ou obtenção do rendimento”.
4. Igual princípio consta do artigo 6.º da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, do qual consta que “a lei determinará as deduções a fazer em cada uma das categorias de rendimento (...), tomando como critério os custos ou encargos necessários à sua obtenção” (artigo 6.º, n.º 1) e que “as deduções deverão corresponder aos custos ou encargos efectivos e comprováveis, sem prejuízo de algumas poderem ser fixadas com base em presunções, quando esta solução apresentar maior segurança para o fisco ou maior comodidade para os contribuintes, especialmente os de mais baixos rendimentos”
5. Daí resulta que o legislador parlamentar foi absolutamente fiel ao princípio da tributação pelo rendimento líquido exigindo a dedução efectiva dos encargos necessários à obtenção do rendimento, donde se conclui que nessa matéria o critério de determinação das deduções não pode ser outro que não o da relevância dos custos ou encargos necessários à sua obtenção.
6. Por outro lado, daí resulta também que o legislador apenas pode modelar o modus – não o critério – de valoração desses encargos, admitindo que os mesmos sejam fixados presuntivamente.
7. Contudo, mesmo neste caso, o legislador parlamentar, sublinhe-se, não atribuiu um “cheque em branco” que pudesse ser preenchido em termos de delimitar genericamente as deduções por via presuntiva, antes exigindo que essa fixação apenas pudesse realizar-se quando fosse determinada por uma solução de maior segurança para o fisco ou de maior comodidade para os contribuintes.
8. Para as mais-valias, o legislador não estabeleceu qualquer presunção de custos, nem procedeu à sua estipulação forfettaria, mas antes um regime analítico-personalizado de valoração das “despesas necessárias” para a alienação de onde emerge o rendimento sujeito a imposto.
9. Apesar das mais-valias constituírem acréscimos patrimoniais não decorrentes da actividade produtiva, é incontornável que o “ganho obtido” (artigo 10.º, n.º 1, do CIRS) pode decorrer da assumpção de toda uma série de despesas/encargos/custos, sem os quais aquele não existiria ou não assumiria a expressão quantitativa que tais encargos possibilitam.
10. Nessas hipóteses, em que essa expressão quantitativa do “ganho” tenha subjacente a realização de despesas que contribuem necessária e decisivamente para a sua epifania, haverá que as tomar em linha de conta na medida em que só atribuindo-lhes relevância se atingirá a real capacidade contributiva do sujeito, tributando-o, em conformidade, pelo “ganho” líquido, não podendo deixar de se estabelecer uma relação de mútua interferência causal entre despesas que sejam conditio da existência da mais-valia, ou da sua dimensão quantitativa, e os ganhos que sem elas não existiriam, ao menos no valor que aquelas propiciam.
11. Nessa óptica, os encargos suportados pelo sujeito passivo que se traduzem na valorização do bem correspondem à realização de uma despesa que se há-de considerar materialmente necessária à concreta alienação pelo valor estipulado, inerente qua tale à realização da própria mais-valia.
12. Ou seja sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, haverá que relevar a esse título toda a despesa que se assuma como conditio sine qua non – indissociável, portanto – do rendimento concretamente obtido, porque traduzida numa despesa necessária para a existência do próprio rendimento sujeito a imposto na expressão quantitativa que aquela lhe faz acrescer, e não apenas como despesa inerente ao acto de alienação, independentemente, qua tale, dos custos que determinam a existência da própria mais-valia.
13. O que vale por dizer que a lei não pode relevar apenas as despesas necessárias/inerentes à alienação, aquelas sem as quais não pode existir a própria alienação, deixando de fora aquelas que determinam o valor da Mais-Valia ou a sua própria verificação.
14. O artigo 51.º, alínea b), do Código do IRS, é, pois, inconstitucional por violação do princípio da capacidade contributiva.
15. E viola esse princípio quando não admite a dedução dos encargos efectiva e comprovadamente suportados para a obtenção do rendimento quando os mesmos sejam considerados necessários e/ou determinantes da sua expressão quantitativa.
16. O artigo 51.º, alínea b), do Código do IRS, é também organicamente inconstitucional, por violação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea 1), e 103.º, n.º 2, da CRP, na redacção em vigor, na medida em que o Governo, ao legislar sobre a matéria, excedeu o mandato injuntivo que resultava da lei de autorização parlamentar, afastando-se do critério aí estabelecido ao não admitir que as deduções correspondam aos custos ou encargos efectivos e comprováveis que sejam necessários à obtenção do rendimento, excluindo, os encargos e custos com a valorização dos bens e que se têm como necessários e determinantes do rendimento concretamente obtido».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Resulta dos presentes autos o seguinte:
a) Em 2001, por escritura pública de cessão de quotas, os recorrentes cederam à D. Limitada, sem quaisquer ónus ou encargos, duas “Quota-C. .Lda.” pelo valor de € 411.508,26, valor constante da declaração de IRS (imposto sobre o rendimento das pessoas singulares);
b) Os recorrentes tinham adquirido as quotas, em 1995, por € 112.229,53;
c) Os recorrentes declararam para efeitos fiscais o valor de € 149.639,37 a título de despesas ou encargos, o que incluía o valor de amortização de duas contas caucionadas garantidas pelas quotas objecto de cessão;
d) Por aplicação da alínea b) do artigo 51.º do CIRS, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu que o valor da amortização das contas caucionadas garantidas pelas quotas que foram objecto de alienação não acrescia ao valor de aquisição das participações sociais em causa para determinação das mais-valias sujeitas a imposto.
2. O presente recurso tem como objecto a norma do artigo 51.º, alínea b), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro.
A disposição legal em causa tem a seguinte redacção:
«Despesas e encargos
Para a determinação das mais-valias sujeitas a imposto, ao valor de aquisição acrescem:
(…)
As despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à alienação, nas situações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 10.º».
Por seu turno, o artigo 10.º, n.º 1, alínea b) estatui que:
«Mais-valias
1 – Constituem mais-valias os ganhos obtidos que não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
a) (…)
b) Alienação onerosa de partes sociais, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, e de outros valores mobiliários;
c) (…)».
Os recorrentes alegam que a norma do artigo 51.º, alínea b), do CIRS viola o princípio da capacidade contributiva, princípio que “constitui uma decorrência do princípio do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito material, resultando da conjugação de preceitos relativos aos direitos fundamentais, ao sistema fiscal e ao Estado social, entre os quais (…) os artigos 2.º, 13.º, 18.º, 101.º 103.º e 104.º da CRP”, bem como o princípio da reserva de lei parlamentar em matéria fiscal (artigos 165.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, e 103.º, nº 2, da CRP).
3. Os recorrentes concluem que a alínea b) do artigo 51.º do CIRS enferma de vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação dos artigos 165.º, n.ºs 1, alínea i), e 2, e 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na medida em que o Governo “excedeu o mandato injuntivo que resultava da lei de autorização parlamentar”. Concretamente do artigo 6.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 106/88, que autorizou o Governo a aprovar o diploma regulador do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, nos termos do qual:
«IRS – Deduções
1 – A lei determinará as deduções a fazer em cada um das categorias de rendimentos mencionados no artigo 4.º, tomando como critério os custos ou encargos necessários à sua obtenção.
2 – As deduções deverão corresponder aos custos ou encargos efectivos e comprováveis, sem prejuízo da possibilidade de algumas poderem ser fixadas com base em presunções, quando esta solução apresentar maior segurança para o fisco ou maior comodidade para os contribuintes, especialmente os de mais baixos rendimentos».
4. Resulta dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre criação de impostos, salvo autorização ao Governo.
O Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro. Na redacção primitiva do CIRS ao artigo 51.º correspondia o artigo 48.º, resultando a numeração actual do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, o diploma que, no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 17.º da Lei n.º 30.º-G/2000, de 29 de Dezembro, procedeu à revisão do Código.
Quando o CIRS foi revisto por aquele diploma de 2001, a redacção do então artigo 48.º era, não a primitiva, mas a que, entretanto, lhe tinha sido dada pela Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, o que afasta o vício de natureza orgânica que os recorrentes apontam à norma que é objecto do presente recurso. Ao alterar a redacção do corpo do artigo, ao acrescentar na alínea a) as despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à aquisição, e ao manter a redacção da alínea b), a Assembleia da República fez suas as normas contidas naquele preceito legal.
Em conclusão: a alínea b) do artigo 51.º do CIRS não é organicamente inconstitucional.
5. Os recorrentes alegam, ainda, no sentido da inconstitucionalidade material do artigo 51.º, alínea b), do CIRS, por violação do princípio da capacidade contributiva, na medida em que a norma exclui as “deduções/encargos efectivos e comprovados que sejam considerados necessários à obtenção do rendimento sujeito a imposto, na sua concreta expressão quantitativa”. No caso dos autos, não são, por isso, abrangidos “os encargos suportados pelo sujeito passivo que se traduzem na valorização do bem” (o valor da amortização das contas caucionadas garantidas pelas quotas que foram objecto de alienação), encargos que “correspondem à realização de uma despesa que se há-de considerar materialmente necessária à concreta alienação pelo valor estipulado, inerente qua-tale à realização da própria mais-valia”.
Com efeito, para a determinação das mais-valias sujeitas a imposto, o legislador especifica apenas as despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à alienação, enquanto despesas que acrescem ao valor da aquisição de partes sociais (e de outros valores mobiliários).
6. Lê-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 84/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) que o princípio da capacidade contributiva “exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de ‘uniformidade’ – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação”. Critério este “em que a incidência e a repartição dos impostos – dos ‘impostos fiscais’ mais precisamente – se deverá fazer segundo a capacidade económica ou ‘capacidade de gastar’ (…) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício)”.
Apesar de não ter consagração expressa no texto da Constituição, o Tribunal Constitucional tem feito do princípio da capacidade contributiva parâmetro de aferição da constitucionalidade de normas de natureza fiscal (assim, entre outros, Acórdãos n.ºs 84/2003, 211/2003, 452/2003 e 601/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. Sobre isto, Xavier de Basto, “A Constituição e o sistema fiscal”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2009, p. 168 e ss.). Sem deixar de assinalar que:
“de todo o modo, deve reconhecer-se não ser fácil retirar consequências jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contributiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal.
Assim, desde logo se imporá a maior contenção, reserva e dúvida, quanto à possibilidade de se chegar a um tal juízo sobre o regime legal em apreço, a partir do seu confronto com o mesmo princípio. E isto mesmo quando se aceite que tal princípio é um parâmetro constitucional susceptível de efectivamente assumir relevo no caso” (Acórdão n.º 84/2003).
Por outro lado, perante a norma que estatui que “a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o rendimento real” – essa, sim, expressamente consagrada no artigo 104.º, n.º 2, da CRP –, o Tribunal Constitucional tem entendido que “não só não é constitucionalmente imperioso que o rendimento tributável consista sempre e apenas no rendimento real, tal como aparentemente resulta da contabilidade empresarial, mas também tal rendimento não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, antes sendo um conceito normativamente modelado” (Acórdãos n.ºs 85/2010 e 162/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
7. Relativamente à norma que é objecto do presente recurso não se vê como possa ser considerada constitucionalmente inadmissível.
Partindo do conceito de mais-valias legalmente estabelecido, nos termos do qual constituem mais-valias os ganhos obtidos que resultem de alienação ou cessão onerosas de certos direitos, valores ou bens (artigo 10.º, n.º 1, do CIRS), o artigo 51.º, alínea b), do CIRS prevê a dedução de despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à alienação, em cumprimento de “um princípio geral da tributação do rendimento, que impõe que só devam ser sujeitos a imposto os rendimentos líquidos” (Xavier de Basto, IRS. Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos, Coimbra Editora, 2007, p. 460).
Ou seja, são sujeitos a imposto os ganhos obtidos (os ganhos líquidos) com a alienação onerosa de direitos, valores ou bens anteriormente adquiridos. Não sendo constitucionalmente exigível um critério normativo que permita a dedução de uma despesa que seja de “considerar materialmente necessária à concreta alienação pelo valor estipulado”. Por exemplo, o valor da amortização de conta caucionada garantida por partes sociais objecto da alienação.
É até de concluir, como bem conclui o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (fl. 39 dos presentes autos) que “o legislador foi aqui particularmente restritivo porque a admissibilidade de dedução de despesas cujas obrigações resultam de negociações bilaterais mais ou menos complexas, seria de difícil fiscalização, tratando-se de rendimentos desta categoria [categoria G], e abriria as portas a conluios que favoreceriam a fraude fiscal. Conluios que poderiam passar, por exemplo, pela emissão de declarações que elegeriam determinada despesa como necessária por razões estritamente fiscais”. Reiterando o já dito no Acórdão deste Tribunal n.º 162/2004, é de assinalar que “um sistema que não permita o controlo dos rendimentos e da evasão fiscal, na medida aproximada à realidade existente, conduz em linha recta à distorção, na prática, do princípio da capacidade contributiva e da tributação segundo o rendimento real”.
Concluindo, a alínea b) do artigo 51.º do CIRS não é materialmente inconstitucional.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se, negar provimento ao recurso interposto.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 24 de Novembro de 2010.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.