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Processo n.º 168/10
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de tal Tribunal, que indeferiu a arguição de nulidade da decisão proferida pela 2.ª Instância, julgando, em consequência, improcedente o recurso interposto pela ora reclamante.
O recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
A recorrente, convidada a aperfeiçoar o seu requerimento de interposição de recurso, fixou-lhe o seguinte objecto:
« (…) apreciação da inconstitucionalidade da norma resultante do n.º 3, do artigo 744.º, do Código de Processo Civil, com a interpretação do acórdão sob recurso, ao abrigo da qual o Tribunal a quo confirmou a decisão do Tribunal de Relação do Porto quanto à remessa dos interessados para os meios comuns, decidida, de forma oposta, pelo despacho recorrido e de reparação do agravo, em primeira instância, e ainda, proferiu decisão de mérito sobre as reclamações apresentadas contra a relação de bens.”
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“3. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos do recurso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC), a aplicação da norma como ratio decidendi da decisão recorrida, a suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa, e que esta seja suscitada de modo processualmente adequado e tempestivo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
4. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o poder de sindicância do Tribunal Constitucional respeita apenas à inconstitucionalidade normativa, como resulta do n.º 1 do art. 280.° da CRP. O objecto do controlo de constitucionalidade deverá ser um critério normativo, dotado de generalidade e abstracção, que seja susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas. Isto é, permite-se o recurso para o Tribunal Constitucional de decisão judicial, mas apenas se esta aplicou norma arguida de inconstitucional durante o processo, ou se não a aplicou, com fundamento em inconstitucionalidade. O Tribunal Constitucional julgará da desconformidade da norma com a Constituição, mas não da eventual desconformidade da decisão judicial em si com a Lei Fundamental.
Para que se esteja perante uma norma ou interpretação normativa, deve ser possível identificar na decisão recorrida a adopção de um critério normativo, com carácter de generalidade, que possa ser aplicado a outras situações, critério a que se subsumiu o caso concreto. Este critério deverá surgir apartado das particularidades da situação concreta. Pelo contrário, não estará em causa uma norma ou interpretação normativa quando o que vem impugnado for a aplicação, às singularidades do caso concreto, dos critérios normativos tidos por relevantes.
Para uma interpretação normativa poder ser objecto do recurso de constitucionalidade será «necessário que se identifique essa mesma interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários dela e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com um tal sentido» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 106/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
5. Sucede, no caso em apreciação, que a recorrente não logrou identificar, em momento algum, uma dimensão ou interpretação normativa relativa ao artigo 744.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, considerada contrária à Constituição, limitando-se a imputar a violação do n.º 4 do artigo 20.º da CRP à «interpretação do acórdão sob recurso». E embora tivesse referido que essa foi a interpretação «ao abrigo da qual o Tribunal a quo confirmou a decisão do Tribunal de Relação do Porto quanto à remessa dos interessados para os meios comuns, decidida, de forma oposta, pelo despacho recorrido e de reparação do agravo, em primeira instância, e ainda, proferiu decisão de mérito sobre as reclamações apresentadas contra a relação de bens», isto mesmo confirma que a recorrente não identificou um critério normativo dotado de generalidade e abstracção susceptível de ser aplicado a outras situações, nem, por isso, recortou, com precisão e clareza uma interpretação normativa susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Não se encontra, assim, preenchido o requisito da suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa perante o Tribunal Constitucional, que teria de ser invocada de modo processualmente adequado (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC), o que não aconteceu.
No caso em apreço, também não pode considerar-se atempadamente cumprido o ónus de suscitação (prévia) da questão de constitucionalidade. Sendo possível recorrer para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais «Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo» (artigo 280.º, n.º 1, al. b), da CRP), a questão de constitucionalidade deve ser suscitada num momento em que ainda possa ser conhecida, e em termos de sobre ela o tribunal a quo se vir a pronunciar. Ora nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), contrariamente ao que invoca a recorrente no requerimento de interposição de recurso junto do Tribunal Constitucional, também não foi identificada uma interpretação ou dimensão normativa do artigo 744.º, n.º 3, do CPP, em moldes tais que pudesse esta ser objecto de fiscalização da constitucionalidade pelo STJ. Sustenta-se apenas que «A decisão sob recurso envolveu grave omissão dum anterior grau de sindicância com que as partes contavam, e grave ofensa dos direitos e garantias da recorrente no decurso do processo e da justa composição do litígio a ajuizar. Interpretar o artigo 744.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, permitindo a decisão ora posta em causa, e que decide de mérito sem audição das partes e sem apreciação em primeira instância, implica inconstitucionalidade material dessa norma e do respectivo núcleo, que desde já se invoca para os legais efeitos» (fls. 1491 e conclusão 5.ª). Nem, tão pouco, a recorrente indica nas alegações de recurso para o STJ a norma constitucional que considera violada, o que também seria condição para o juiz do tribunal a quo se pronunciar sobre uma questão de constitucionalidade normativa que lhe tivesse sido adequadamente apresentada (cfr. fls. 1540, embora a norma da Constituição que considera violada venha posteriormente a ser indicada no requerimento dirigido ao Tribunal Constitucional).
Pelo que a recorrente não suscita de modo processualmente adequado e tempestivo uma questão de constitucionalidade normativa, por não a haver suscitado perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Razões pelas quais se decide não conhecer do objecto do recurso.”
É desta Decisão sumária que a recorrente reclama.
3. Fundamentando a sua discordância relativamente à decisão reclamada, refere a reclamante que é sua convicção ter cumprido escrupulosamente o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, tendo igualmente identificado a interpretação normativa relativa ao n.º 3 do artigo 744.º do Código de Processo Civil, que considera contrária à Lei Fundamental.
Refere, além do mais, que, oportunamente, indicou que pretendia que fosse apreciada a constitucionalidade do referido n.º 3 do artigo 744.º “na interpretação segundo a qual se admite que, em recurso de agravo e após prolação de despacho de reparação, seja possível que, para além da decisão da controvérsia entre o despacho reparado e o despacho reparador, seja proferida decisão de mérito”, elaborando assim uma norma susceptível de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
Acrescenta que problematizou a questão de constitucionalidade nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, evidenciando a violação dos direitos da reclamante no decurso do processo, nomeadamente o direito a uma justa composição do litígio, assente em garantias gerais de procedimento e de processo, como a garantia a um processo equitativo e a observância do princípio da igualdade das partes.
4. As recorridas, notificadas da presente reclamação, vêm pugnar pelo indeferimento da mesma, expressando a sua concordância com os fundamentos da decisão reclamada.
Alegam ainda que a reclamante, apenas na reclamação, enuncia a dimensão normativa que reputa violadora da Constituição.
II – Fundamentos
5. Como resulta do teor da reclamação e do seu confronto com os fundamentos exarados na decisão sumária reclamada, a reclamante não aduziu qualquer argumento que abalasse a correcção do juízo efectuado.
Na verdade, em nenhum momento anterior à prolação da decisão sumária reclamada, a reclamante identificou uma verdadeira dimensão ou interpretação normativa, relativa ao n.º 3 do artigo 744.º do Código de Processo Civil, susceptível de constituir objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
Ainda que tivesse logrado fazê-lo, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, não poderia deixar de considerar-se precludida a possibilidade de admissão do recurso, porquanto a questão de constitucionalidade normativa deve ser suscitada durante o processo, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tal como define o n.º 2 do artigo 72.º da LTC e amplamente se explica na decisão reclamada.
Acresce que o cumprimento do requisito de suscitação prévia, que agora se analisa, não se basta com a mera identificação da norma ou interpretação normativa, alegadamente inconstitucional, implicando ainda que a suscitação prévia junto do tribunal a quo contenha uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido. Apenas cumprido que esteja tal requisito de identificação e substanciação argumentativa, é exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 708/06 e 630/08, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, no presente caso, a reclamante não indicou sequer, perante o tribunal a quo, a norma constitucional que considerava violada, vindo a fazê-lo apenas perante este Tribunal Constitucional.
Em face do exposto, reafirmando e dando por reproduzida toda a fundamentação constante da decisão reclamada, resta apenas concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do recurso e, em consequência, pelo indeferimento da reclamação da decisão sumária, proferida nestes autos a 7 de Setembro de 2010.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.