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Processo n.º 296/10
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. e B. interpuseram recurso do Acórdão da Relação de Lisboa, que julgou parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogou a decisão condenatória da 1.ª Instância, na parte em que esta, condenando os arguidos, ora reclamantes, em pena de cinco anos de prisão, veio a substituir tal pena por suspensão da execução da pena de prisão, por idêntico período, com sujeição a regime de prova.
Inconformados com a revogação da pena de substituição não detentiva, os arguidos, ora reclamantes, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Tais recursos foram rejeitados, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, mediante Decisão sumária do Juiz Relator do Supremo Tribunal de Justiça, vindo tal decisão a ser confirmada por Acórdão que julgou improcedentes as reclamações apresentadas pelos arguidos, ora reclamantes.
Discordando deste Acórdão, que manteve a rejeição do recurso junto do Supremo Tribunal de Justiça, os reclamantes vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária que, havendo conhecido do recurso, não julgou inconstitucional a norma suscitada.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“5. O presente recurso centra-se na questão da inconstitucionalidade da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, conjugada com a alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do mesmo diploma, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de Acórdão da Relação, proferido em sede de recurso, que altere decisão condenatória da 1.ª Instância e de que decorra aplicação de pena de prisão igual ou inferior a cinco anos.
No presente caso, a interpretação normativa em questão determinou a inadmissibilidade de recurso de acórdão da Relação, que, revogando a pena de substituição aplicada em 1.ª Instância, determinou a condenação dos arguidos em pena efectiva, não superior a cinco anos de prisão.
Antes de mais, cumpre referir que não incumbe ao Tribunal Constitucional ajuizar do acerto de tal interpretação, no plano do direito ordinário, ou fazer qualquer apreciação sobre se o tribunal a quo deveria ter utilizado outra norma, na sua decisão, porquanto o recurso de constitucionalidade apenas se destina a sindicar a conformidade de tal interpretação normativa com os parâmetros constitucionais.
Feita a delimitação do objecto do recurso, justifica-se – à semelhança do que foi feito no Acórdão n.º 424/09 – recordar os argumentos aduzidos no Acórdão n.º 49/2003 do Tribunal Constitucional (disponível no site já aludido), que se pronunciou a propósito de questão paralela e concluiu que não desrespeita o n.º 1 do artigo 32.º da CRP a norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, quando interpretada no sentido de não admitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a decisão condenatória proferida pela Relação em recurso de decisão absolutória da 1.ª instância, por o acórdão da Relação consubstanciar a garantia do duplo grau de jurisdição, tendo em conta que perante ela o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa.”
Na fundamentação de tal aresto, refere-se:
“4. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade para salientar, por diversas vezes, que o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal.
Este direito assenta em diferentes ordens de fundamentos.
Desde logo, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com efeito, mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese de um erro de julgamento – tanto em matéria de facto como em matéria de direito – é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a detecção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.
Mais do que isso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede.
Por último, está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa. Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão possa ter em consideração a argumentação da defesa.
Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição.(…)
5. A norma impugnada pela recorrente – contida na alínea e) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal – exclui, nos casos nela previstos, a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos em recurso pela relação.
Importa ter presente, todavia, que tais acórdãos resultam justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Por outras palavras, o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso.
Dir-se-á – como faz a recorrente – que, tendo havido uma decisão absolutória na primeira instância, o direito ao recurso implicaria a possibilidade de recorrer da primeira decisão condenatória: precisamente o acórdão da relação.
Tal entendimento, não só encara o direito ao recurso desligado dos seus fundamentos substanciais (como resulta do que já se disse), mas levaria também, em bom rigor, a resultados inaceitáveis, como se passa a demonstrar.
Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará.
A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.
Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralisação, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada. (…)
Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
(…)
No mesmo sentido se decidiu pelos acórdãos n.ºs 255/2005, 487/2006 e 682/2006, in www.tribunalconstitucional.pt.”
Aplicando tal fundamentação à concreta interpretação normativa sindicada no âmbito do Acórdão n.º 424/09, refere este aresto:
“Ora, se assim é quando a decisão da Relação inverte o sentido da decisão de 1.ª instância, condenando o arguido quando a decisão de 1.ª instância era absolutória, por maioria de razão não será inconstitucional a norma quando interpretada no sentido de não admitir recurso em caso de a decisão do tribunal superior não manter a suspensão da execução da pena de prisão”.
E ao argumento de que não poderia considerar-se garantido, em concreto, um grau de recurso, quando a aplicação da pena de prisão efectiva só tenha ocorrido na Relação, responde o mesmo aresto:
“(…) esta circunstância não justifica a revisão da jurisprudência do Tribunal. Tal condenação resulta justamente da reapreciação por um tribunal superior (o Tribunal da Relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Face a uma mesma imputação penal e à pretensão de aplicação de uma pena privativa de liberdade arguido tem a oportunidade de defender perante dois tribunais, o tribunal de 1.ª instância e o tribunal superior, o seu direito à liberdade. Perante o tribunal superior pode fazer rever tanto a decisão que o condenou, como contrariar a pretensão de que essa condenação seja agravada, designadamente que se converta em pena privativa de liberdade.”
Os argumentos aduzidos são transponíveis para a presente situação.
Na verdade, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do Código de Processo Penal, conjugada com a alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do mesmo diploma, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de Acórdão da Relação, proferido em sede de recurso, que altere decisão condenatória da 1.ª Instância e de que decorra aplicação de pena de prisão igual ou inferior a cinco anos, não comporta desrespeito das garantias de defesa em processo criminal, nomeadamente do direito ao recurso, não sendo, pois, materialmente inconstitucional, por não violar os artigos 18.º e 32.º, n.º 1, da CRP.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Fundamentando a sua discordância relativamente à decisão reclamada, referem os reclamantes, B. e A., que a mesma assenta no entendimento de que a alínea f) do artigo 400.º do Código de processo Penal tem de ser interpretada no enquadramento conferido pela alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do mesmo diploma, na linha da tese defendida pelo Tribunal a quo, concluindo assim que apenas as condenações em pena de prisão superior a cinco anos são susceptíveis de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Reiterando a incorrecção de tal interpretação, os reclamantes renovam, mutatis mutandis, a argumentação já aduzida aquando da reclamação para a conferência, que apresentaram junto do Supremo Tribunal de Justiça.
4. O Magistrado do Ministério Público respondeu às reclamações, concluindo que as razões apresentadas pelos reclamantes não abalam os fundamentos da decisão reclamada, pelo que devem ser julgadas improcedentes.
II – Fundamentos
5. Como resulta do teor das reclamações apresentadas e do seu confronto com os fundamentos exarados na decisão sumária reclamada, os reclamantes não aduziram argumentos que infirmassem a correcção do juízo efectuado.
Na verdade, os reclamantes parecem incorrer no equívoco de considerar que a decisão sumária reclamada optou por uma interpretação dos preceitos a sindicar, aderindo à tese defendida pelo tribunal a quo, pronunciando-se pela sua correcção, no âmbito do direito ordinário.
Porém, tal não corresponde ao conteúdo e sentido da decisão posta em crise.
Aliás, na mesma decisão, é manifesta a preocupação de delimitar a competência do Tribunal Constitucional e, consequentemente, o âmbito de pronúncia em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade. Nesse sentido, esclarece-se expressamente o seguinte:
“Antes de mais, cumpre referir que não incumbe ao Tribunal Constitucional ajuizar do acerto de tal interpretação, no plano do direito ordinário, ou fazer qualquer apreciação sobre se o tribunal a quo deveria ter utilizado outra norma, na sua decisão, porquanto o recurso de constitucionalidade apenas se destina a sindicar a conformidade de tal interpretação normativa com os parâmetros constitucionais.”
Com base nesse pressuposto, a decisão reclamada limita-se a ajuizar da constitucionalidade da interpretação normativa, utilizada como ratio decidendi pelo tribunal a quo, nos termos transcritos supra, que se reiteram.
Sendo a fundamentação aduzida, na decisão reclamada, clara e suficiente, sustentada na jurisprudência firmada neste Tribunal Constitucional, cuja argumentação a mesma reproduz, verificando-se que os reclamantes não invocam argumentos substancialmente diferentes dos que já foram tidos em consideração - porque invocados antes da prolação da decisão reclamada - apenas resta reafirmar toda a fundamentação constante da decisão reclamada e, em consequência, concluir pelo indeferimento das reclamações apresentadas.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir as reclamações apresentadas e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada proferida no dia 7 de Setembro de 2010.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.