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Processo n.º 369/2010
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
EM CONFERÊNCIA DA 1ª SECÇÃO ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. e B. apresentaram na Relação de Coimbra o seguinte requerimento:
[...] notificados que foram, por via postal registada, por ofício de 26 de Março de 2010, do despacho proferido na mesma data, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no processo supra referido, vêm, sempre com o mui douto respeito, recorrer do mesmo para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º, legitimado para o efeito nos termos ao artigo 72.º n.º 2, e verificado que está o disposto no artigo 70.º, n.º 2, todos da Lei do Tribunal Constitucional, pelos seguintes juízos, cujas ilegalidade e inconstitucionalidade foram suscitadas no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra da Sentença de 8 de Maio de 2009, e ainda no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, que o Tribunal da Relação de Coimbra não admitiu, por ter existido confirmação da decisão da primeira instância, patentes e mantidas no Acórdão ora recorrido:
1) É inconstitucional a interpretação feita quanto à apreciação da prova carreada para os autos, pois que existiram factos que não foram ponderados ou sequer mencionados, mas, que foram essenciais para o encerramento da empresa condenada consequentemente dos seus legais representantes.
2) Ainda que não se encontre expressamente, mencionado na Sentença não pode deixar de referir-se que a interpretação e aplicação constantes do artigo 127º do Código de Processo Penal, estão aí presentes, admitindo-se que o Julgador possa, de forma patente nos acórdãos condenatórios proceder a uma valoração puramente subjectiva da prova para suprir e possa contrariar ou desatender na sua decisão factos objectivos cientificamente testados, sendo por isso inconstitucionais, por violação do artigo 32º, no 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1 e 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tal como o artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
3) Assim, a apreciação efectiva da prova produzida, foi restringida apenas a alguns factos, pois que outros que deveriam ter sido considerados relevantes e, que foram carreados pelos arguidos não foram ponderados, violando-se o disposto no artigo 410.º, nº 1, do Código de Processo Penal, violação essa confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra que se omitiu quanto à apreciação da matéria de facto carreada para o recurso, violando-se assim o disposto nos artigos 20.º nºs 1 e 4, e 2º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, nº 1 e 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8.º e 11.º º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
4) Nesse entendimento a pena aplicada resulta numa condicionante que procede no pagamento da divida fiscal, como condição suspensiva para a não aplicação da pena de prisão, o que se entende ser inconstitucional, por consubstanciar um desvirtuamento dos meios penais e uma instrumentalização do sistema punitivo pela recuperação de dívidas fiscais, violando-se os princípios da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade, por violação dos artigos 13º e 18.º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, tal como o artigo 6º, nº 1 e 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 7º e 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
5) A falta de ponderação de todas as provas carreadas para os autos e aí produzidas, resulta na violação do artigo 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, tal como do artigo 6º, no 1 e 2 da Declaração Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 10.º e 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
6) A aplicação da sentença proferida pelo 3º Juízo Criminal de Coimbra e confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, viola o princípio constitucional do direito à vida em sociedade, limitando os arguidos quer no exercício de uma actividade profissional quer a poderem ser cidadão de plenos direitos, e assim com direito a terem contas bancárias, salários ou quaisquer outros bens.
2. O recurso foi admitido na Relação de Coimbra e subiu ao Tribunal Constitucional onde o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do seu objecto, com os seguintes fundamentos:
[...] Importa verificar se se verificam os requisitos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), que constituem as disposições invocadas como fundamento do presente recurso.
Os recorrentes enumeram, no seu requerimento, 6 questões («juízos») que pretendem ver tratadas: é inconstitucional a interpretação feita quanto à apreciação da prova carreada para os autos; é inconstitucional a interpretação e aplicação do artigo 127º do Código de Processo Penal ao admitir que o julgador possa proceder a uma valoração puramente subjectiva da prova; a apreciação efectiva da prova produzida, foi restringida apenas a alguns factos, pois que outros que deveriam ter sido considerados relevantes, violando-se o disposto no artigo 410.º, nº 1, do Código de Processo Penal; a pena aplicada resulta numa condicionante que procede no pagamento da divida fiscal, como condição suspensiva para a não aplicação da pena de prisão, o que é inconstitucional; a falta de ponderação de todas as provas carreadas para os autos e aí produzidas, resulta na violação do artigo 32º, nº 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa; a aplicação da sentença proferida pelo 3º Juízo Criminal de Coimbra e confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, viola o princípio constitucional do direito à vida em sociedade.
Todas estas questões têm a ver, directamente, com o acerto da decisão recorrida, designadamente a que se fundamenta no artigo 127º do Código de Processo Penal, pois visa sindicar a actividade do «julgador» quando procede «a uma valoração puramente subjectiva da prova».
Acontece que o recurso previsto na referida alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC tem carácter normativo, pelo que o seu objecto se deve circunscrever a uma dada norma jurídica aplicada na decisão recorrida como sua ratio decidendi, não podendo estender-se à sindicância da própria decisão proferida pelo tribunal recorrido.
Aliás, o recurso depende da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido e o certo é que os recorrentes nunca suscitaram adequadamente qualquer questão dessa natureza perante a Relação de Coimbra.
Não pode, em consequência, admitir-se o recurso.[...]
3. Inconformados, os recorrentes reclamam contra esta decisão, afirmando o seguinte:
Desde o primeiro requerimento de interposição de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que os recorrentes vêm reclamando a reavaliação da matéria de facto.
Porém, jamais a mesma foi reavaliada, como é bem visível pela leitura do acórdão da Relação de Coimbra, o qual confirma sem mais sentença proferida pela Primeira Instância.
Jamais a Relação de Coimbra se pronunciou pela reavaliação da matéria de facto.
Foram devidamente identificadas as parcelas sobre as quais se requereu a reavaliação da prova, não só pelas transcrições aí feitas, como pela identificação dos trechos, com referências a minutos, horas, etc..
Jamais a Relação se pronunciou sobre tais questões.
Ora, a ser assim, existe uma violação do direito à defesa dos recorrentes/reclamantes, com a consequente violação do direito constitucional, salvaguardado pelos artigos 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Só após o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, e porque este não procedeu à reavaliação da matéria de facto como lhe foi solicitado, só então os recorrentes/reclamantes se encontram em condições para junto deste douto Tribunal arguir a inconstitucionalidade da falta de reapreciação da matéria de facto.
Salvo o devido respeito, antes dos factos acontecerem não podemos pronunciar-nos sobre os mesmos.
Porém, aquando do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, de imediato foi reclamada a inconstitucionalidade do disposto no artigo 14°, nº 1, do RGIT, por condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento dos valores em divida.
Situação que apenas se verifica com as dividas ao Estado, e apenas a este. Existindo assim, prisão por dividas quando o credor é o Estado, e só com ele.
E foi com este entendimento, e porque a medida da pena aplicada não atendeu à prova produzida que agora pretendem os recorrentes que seja declarada inconstitucional a decisão proferida pela Relação de Coimbra, por não contemplar a reavaliação da matéria de facto produzida em audiência de discussão e julgamento.
É certo que o tribunal de Primeira Instância pode ter incorrido em ilegalidade ou em inconstitucionalidade ao ter fundamentado a sentença numa prova que não expressa o que resulta das gravações da audiência de discussão e julgamento.
Foi desvirtuada toda a prova produzida.
Daí a insistência na referência a tal situação aquando da arguição da inconstitucionalidade para este Tribunal.
Só com a referência a todo esse circunstancialismo se pode fazer um enquadramento correcto e legítimo de tudo o demais.
Pelo que a violação surge, aquando do acórdão da Relação que ao não reavaliar a matéria de facto, e consequentemente a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, gerou a inconstitucionalidade agora invocada.
Logo a inconstitucionalidade, na perspectiva dos recorrentes/reclamantes surge aí, pelo que não podia ter sido arguida antes, ou seja, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Salvo o devido respeito, e no modesto entendimento dos recorrentes/reclamantes, quem exclui estes da sua condigna e plena defesa é o Tribunal da Relação de Coimbra, por confirmar sem mais a sentença da Primeira Instância.
Em parte alguma do recurso então interposto, o Tribunal da Relação de Coimbra se refere que não tem, não pode, por razões de direito ou de facto pronunciar-se sobre tal matéria – reavaliação da matéria de facto, da prova produzida.
Ao ter agido como agiu, o Tribunal da Relação de Coimbra impossibilitou qualquer defesa.
Porém, o Tribunal da Relação de Coimbra limita-se a confirmar a sentença da Primeira Instância, sem sequer alegar ou apresentar grande argumentação.
O pedido dos recorrentes/reclamantes é bem preciso e concreto, e para tal bastam as alegações apresentadas no recurso para a Relação.
Desta feita, apenas com a confirmação da sentença se vem arguir a inconstitucionalidade.
Como poderiam os recorrentes antes desta fase processual arguir a inconstitucionalidade da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra e consequentemente do seu acórdão-
Foi a falta de reavaliação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que vem tornar efectiva a presente arguição de inconstitucionalidade.
Salvo o devido respeito, a Relação de Coimbra ao confirmar a decisão da Primeira Instância, sem que alguma vez se tenha pronunciado pela reapreciação da matéria de facto carreada para os autos e, repetimos, que foi devidamente identificada aquando das alegações apresentadas, incorreu em inconstitucionalidade, violando o disposto nos artigos 2°, 13°, 18°, 20° e 32°, todos da Constituição da República Portuguesa, artigos 6°, nº 1 e 2, 7° e 8°, todos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda os artigos 7°, 8°, 10º e 11° da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Como já então referimos, ao agir como agiu o Tribunal da Relação de Coimbra violou direito constitucionalmente consagrado, ou seja, o direito à vida em sociedade, impedindo os recorrentes/reclamantes de poderem ter uma actividade profissional e serem cidadãos de plenos direitos, impedindo-os ainda de ter acesso a contas bancárias, salários, cartões de crédito ou quaisquer bens essenciais à sobrevivência humana e mesmo à sua existência.
É nesta duplicidade da aplicação do direito, em que por um lado se condiciona a execução da pena ao pagamento ao Estado dos valores em causa, e, por outro lado, a não reapreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que se requer, só agora, a inconstitucionalidade do acórdão pela interpretação e aplicação do artigo 127° do Código de Processo Penal, pois que o acórdão faz uma reafirmação puramente subjectiva da prova.
Aceitamos que tal referência expressa não foi feita aquando do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, mas porque como supra referimos, se pretendeu que a matéria de facto fosse objecto de reapreciação, e ao não o ter sido, só agora se entende estar reunidas as condições para arguir a inconstitucionalidade do Acórdão da Relação de Coimbra, por ter confirmado a sentença da Primeira Instância sem reavaliação da prova.
Pelo que mais uma vez referimos que por assim ter agido é o Tribunal da Relação de Coimbra quem incorre na inconstitucionalidade dos artigos 127°, 410° do CPP, 14°, nº 1 do RGTT e ainda dos artigos 2°, 13°, 18°, 20°, 32° da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 7°, 8°, 10º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem
Nestes termos, requer-se a V. Exa. seja admitido o recuso interposto do acórdão da Relação de Coimbra.
4. Foi ouvido o representante do Ministério Público neste Tribunal que se pronunciou pelo indeferimento da reclamação.
5. A decisão sumária agora em causa decidiu não conhecer do objecto do recurso por duas razões: os recorrentes não teriam suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido e, para além disto, a matéria sobre que pretendem a pronúncia do Tribunal versa directamente sobre a própria decisão do tribunal recorrido, em vez de se cingir a normas que nela tenham sido aplicadas.
E a verdade é que o recurso previsto na referida alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC apenas cabe das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo e só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72º n.º 2 LTC). O Tribunal tem pacificamente entendido, em aplicação destes preceitos, que o recurso reveste natureza normativa, devendo objectivar-se na norma ou normas que o tribunal comum aplicou como razão de decidir, apesar da acusação de inconstitucionalidade previamente formulada pelo recorrente, não cabendo no seu objecto a própria decisão recorrida, isto é, os juízos jurisdicionais típicos que se concretizam na selecção dos factos e na aplicação do direito ao caso concreto mediante uma determinação jurídica vinculativa.
Os reclamantes, que efectivamente não suscitaram qualquer questão de inconstitucionalidade normativa perante a Relação, sustentam, todavia, que «só agora se entende estarem reunidas as condições para arguir a inconstitucionalidade do acórdão da Relação de Coimbra, por ter confirmado a sentença da 1ª Instância sem reavaliação da prova». Mas esta afirmação revela que não tiveram em conta o carácter normativo do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, pois insistem no pedido de sindicância da própria decisão recorrida que acusam de ter incorrido em «inconstitucionalidade», assim descobrindo a outra razão pela qual o Tribunal não pode conhecer do seu recurso.
Daqui se conclui que as questões que pretendem colocar ao Tribunal não se harmonizam com as exigências do recurso previsto na aludida alínea b) e são inidóneas para preencherem o objecto desse recurso.
Cumpre, por isso, confirmar a decisão sumaria reclamada, indeferindo-se a reclamação formulada. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.