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Processo n.º 628/2009
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., oponente ao concurso curricular para recrutamento de Juízes Conselheiros para o Tribunal de Contas, notificado da decisão definitiva do Júri do concurso de o excluir por não cumprimento dos requisitos constantes da alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, especificamente, por não ter provado o preenchimento do módulo temporal de, pelo menos, três anos como membro de conselhos de administração, veio impugná-la junto do Tribunal de Contas.
Na parte que releva para efeitos do presente recurso de constitucionalidade, o autor veio suscitar a questão de constitucionalidade da interpretação da alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, no sentido de que o requisito de exercício de funções como membro de conselhos de administração aí previsto não compreende o exercício do cargo de gerente de uma sucursal de banco português no estrangeiro ou de sucursal de banco estrangeiro em Portugal.
Tendo o concurso prosseguido e tendo o candidato A. sido admitido ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, veio o mesmo requerer, no âmbito do processo judicial já pendente, a ampliação do seu objecto à impugnação da lista de classificação e graduação final do concurso.
Por despacho proferido pelo Exmo. Conselheiro Relator, proferido em 21 de Fevereiro de 2008, foi admitida a requerida ampliação do objecto do pedido.
Por acórdão do Tribunal de Contas, proferido, em plenário geral de 3 de Junho de 2009, foi negado provimento ao recurso.
2. É dessa decisão que é interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Através dele pretende o recorrente a apreciação da constitucionalidade da interpretação da alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, que lhe terá sido dada no acórdão recorrido, por violação dos artigos 13.º e 47.º, n.º 2 da Constituição.
Além disso, pretende o recorrente a apreciação da constitucionalidade da interpretação do artigo 19.º, n.º 1, alíneas a) a e) e n.º 2 da Lei n.º 98/97, que entende ser igualmente violadora do artigo 13.º e 47.º, n.º 2 da Constituição.
Já com os autos neste Tribunal, foi proferido o seguinte despacho:
Para alegações, com a advertência de que o Tribunal poderá não vir a conhecer da segunda questão de constitucionalidade colocada no requerimento de interposição do recurso por não ter sido a mesma suscitada durante o processo, conforme é exigido pelos artigos 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional.
Notificado desse despacho, o recorrente veio apresentar alegações, tendo concluído do seguinte modo:
a) Como se demonstrou no n.° 4 destas alegações (para onde se remete), nos termos do n.° 4 do art. 78.° da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso tem efeito suspensivo da decisão recorrida, devendo portanto ser alterado o efeito ao recurso;
b) O Acórdão recorrido manteve a exclusão do Recorrente da sua candidatura ao abrigo da alínea e) do n.° 1 do art. 19.° da Lei n.° 98/97, considerando que o mesmo não comprovou o efectivo exercício de funções em conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização pelo período de três anos;
c) É que, considerou-se aí que, relativamente às funções invocadas pelo Recorrente para o comprovar, não haveria uma equiparação legal expressa, mas apenas o exercício de actividades ou funções afins;
d) O Acórdão recorrido, neste aspecto, fez uma interpretação e aplicação inconstitucionais do mencionado preceito, em violação do dos art. s 13.° e 47.°, n.° 2 da Constituição, como se havia invocado na petição inicial da acção e se demonstrou nos n.°s 5 a 20 destas alegações;
e) Nos termos do que já se decidiu para caso idêntico ao dos autos (cf. Acórdão do TC n.° 128/99), a aplicação em concreto da alínea e) do n.° 1 do artigo 19.º da Lei n.° 98/97 passa pela ponderação ou apreciação dos poderes jurídicos em que o interessado está investido quando invoca as funções de administração ou de gestão de uma sociedade comercial;
f) Ou seja, o que verdadeiramente está em causa aqui, na verificação do preenchimento dos pressupostos da alínea e) do n.° 1 do art. 19.º da Lei n.° 98/97, é saber se se pode concluir que, funcionalmente, a actividade em causa é idêntica ou equiparável às actividades referidas nesse preceito;
g) E é isso que sucede no caso dos autos;
h) Em primeiro lugar, e no que respeita às funções como Delegado do Governo no Conselho de Administração da B., deve dizer-se que essas funções, nos termos do Decreto-Lei n.° 40883 (de 29 de Outubro de 1956), eram funções de fiscalização que devem ser equiparadas às funções de um membro de uma comissão de fiscalização;
i) Por outro lado, a equiparação das funções de Director Geral ou primeiro responsável de sucursais de Bancos Portugueses no Estrangeiro (ou em sucursais de Bancos Estrangeiros em Portugal) às funções de membro de conselhos de administração de empresas resulta inequivocamente do disposto nos art.s 31.°, 36.°, n.° 2, 42.°, 49°, n.° 2 e 66.° do Decreto-Lei n.° 298/92 e do art. 112° do Decreto-Lei n.° 35/82/M;
j) Na verdade, as referidas leis estabelecem e impõem um amplo mandato – equivalente ao de Presidente de Conselho de Administração – aos gerentes das sucursais de bancos portugueses no estrangeiro e das sucursais de bancos estrangeiros instalados em Portugal, consubstanciado na procuração outorgada a esses gerentes, nomeadamente ao primeiro responsável dessas sucursais;
k) Um Director Geral de uma Sucursal Bancária no estrangeiro, para poder exercer essas funções, tem de provar ter uma procuração idêntica em poderes aos do próprio Presidente do Conselho de Administração da Sede ou de um Administrador Delegado;
l) Está, assim, inequivocamente provado – pelo próprio conteúdo, legalmente definido – que as funções desempenhadas pelo Recorrente enquanto primeiro responsável e Director Geral de Sucursal de Bancos Portugueses no Estrangeiro e primeiro responsável e Director Geral de Sucursal de Banco Estrangeiro em Portugal são idênticas às funções de membro de conselho de administração de empresas, nomeadamente para efeitos do estabelecido na alínea e) do n.° 1 do art. 19.º da Lei n.° 98/97;
m) Sendo, aliás, por essa razão que o regime geral das instituições de crédito contido no Decreto-Lei n.° 298/92 determina que os gerentes das sucursais estão sujeitos a todos os requisitos (nomeadamente de idoneidade, de capacidade e experiência profissional) exigidos aos membros do órgão de administração dessas mesmas instituições de crédito (cf. art. 36°, n.° 2);
n) Do exposto resulta que, atendendo ao conteúdo funcional legalmente fixado – da mesma forma que se considerou, relativamente às funções de gerente de uma sociedade por quotas, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 128/99 –, as funções exercidas pelo Recorrente enquanto Director Geral de Sucursais de instituições de crédito deviam ter sido consideradas para efeito do preenchimento do módulo temporal de 3 anos no exercício de cargos de administração de empresas, previsto no art. 19°/1/e da Lei n.° 98/97;
o) Ao não entender assim, o Acórdão recorrido, por todas as razões expostas, fez interpretação e aplicação inconstitucionais da mencionada alínea e) do n.° 1 do art. 19° da Lei n.° 98/97, por violação dos art.s 13° e 47°/2 da Constituição da República Portuguesa;
p) No Acórdão recorrido entendeu-se ainda (pela primeira vez nos autos) que, para a avaliação dos candidatos ao abrigo de cada uma das alíneas do n.° 1 do art. 19.° da Lei n.° 98/97, apenas é relevante a respectiva actividade profissional – por exemplo, para aqueles que se candidatem ao abrigo da alínea a) só é relevante a actividade como magistrado, como para os que se candidatem ao abrigo da alínea e) apenas releva a sua actividade no sector privado (cf. páginas 36 a 39 do Acórdão recorrido);
q) Pelo que, no factor D1, ignorou-se a experiência profissional do Recorrente no sector privado;
r) Também neste aspecto foi feita uma interpretação e aplicação inconstitucionais do art. 19.º, n.°s 1 e 2 da Lei n.° 98/97, em violação do disposto nos art.s 13.° e 47.°, n.° 2, da Constituição;
s) Esta interpretação e aplicação inconstitucionais, feita pela primeira vez no Acórdão recorrido (tirado em 1.ª instância, note-se), não podia ter sido invocada antes pelo ora Recorrente – e, precisamente por não haver no caso duplo grau de jurisdição, foi directamente invocada perante este Alto Tribunal no requerimento de recurso, entendendo o Recorrente (como alegado no n.° 3) que deve ser salvaguardado o direito de recurso para este Alto Tribunal nesta parte;
t) No critério da alínea D1, como se demonstrou no n.° 26 destas alegações, contava toda a experiência profissional dos privados, quer no sector público quer no sector privado. É que, de facto, a experiência profissional dos candidatos, nos termos dos critérios de apreciação fixados e do disposto nos n.° s 1 e 2 do artigo 19.° da Lei n.° 98/97, deveria sempre ser considerada na globalidade;
u) Ora, a interpretação acolhida neste Acórdão – que implicou a desconsideração de toda a experiência obtida pelo Recorrente “fora” da respectiva alínea de candidatura, (ainda que inserida na experiência das restantes alíneas, e portanto, fazendo parte da experiência potencialmente relevante), sem que para tanto concorra (ou tenha concorrido) qualquer razão preponderante –, para além de não ter correspondência na norma do n.° 1 do art.° 19.° da Lei do Tribunal de Contas, constitui um entorse à igualdade de condições de acesso de todos os candidatos à função pública, direito este que constitui uma das dimensões do direito de acesso à função pública consagrado no art.° 47º, n.° 2 da CRP;
v) Não há, na verdade, nenhum valor ou interesse constitucional – nem um ou outro são ali invocados – que justifiquem a desconsideração de toda a experiência relevante adquirida fora duma alínea de candidatura – mas prevista e, aí relevante, nas outras alíneas de candidaturas,
w) Pelo contrário. Entende o ora Recorrente, sob pena de indiscriminação injustificada (e injustificável), que todos os requisitos de experiência tidos por relevantes nas várias alíneas devem assim, nos termos do art.° 47.º, n.° 2, da CRP, ser obrigatoriamente considerados, sob pena de, não o sendo, tal poder ter por efeito – como até sucedeu no caso dos presentes autos – a “passagem à frente” de candidatos mais experientes por candidatos menos experientes, apenas porque se mantiveram sempre na mesma actividade – quando são várias as actividades relevantes;
x) Ao não entender assim, considerando que não era de contabilizar nas candidaturas feitas ao abrigo da alínea c) do n.° 1 do artigo 19.° da Lei n.° 98/97 a experiência no sector privado, o Acórdão recorrido fez uma interpretação e aplicação inconstitucionais dessa norma (e das restantes normas desse preceito), em clara violação do disposto nos art. s 13.° e 47.°, n.° 2, da Constituição.
Da parte dos recorridos, apenas contra-alegou o Júri do Concurso Curricular para recrutamento de Juízes Conselheiros para o Tribunal de Contas, tendo concluído do seguinte modo:
17.º
Em conclusão:
É manifesta a conformidade constitucional da al. e) do n° 1 do art. 19° da Lei 98/97, na interpretação que lhe foi conferida pelo Júri do referido concurso e pelo acórdão recorrido.
Por outro lado
18°
Pretende ainda o recorrente que o acórdão recorrido enferma de mais uma inconstitucionalidade, uma vez que, em seu entender, o júri do concurso apenas deu relevância no procedimento de classificação do concurso à actividade profissional do recorrente prevista na al. c), n° 1 do art. 19° da Lei 98/97, ao abrigo da qual também se candidatou no concurso, tendo desconsiderado a experiência obtida pelo Recorrente «fora» da respectiva alínea de candidatura (cfr. als. als. u) a x) das conclusões da alegação do recorrente).
19.º
Importa desde já referir que o recorrente, reconhecidamente, em momento algum ou fase processual da acção administrativa especial, a que respeita o acórdão recorrido, suscitou qualquer interpretação normativa inconstitucional, pelo que o respectivo pedido não pode ser conhecido.
20°
Com efeito, podia tê-la previsto e suscitado na acção, bem como no requerimento de ampliação do seu objecto inicial, pelo que não pode o recorrente vir agora prevalecer-se da sua própria omissão.
Porém
21°
Em qualquer caso e sem conceder, a pretensa inconstitucionalidade é, manifestamente, insustentável, porquanto o júri do concurso cumpriu rigorosamente o que lhe vem assinalado nas als. a) a e) do n° 1 e do n° 2 do art. 19° da Lei 98/9, tendo aprovado os critérios de aplicação de tal normativo, dentro dos poderes da designada discricionariedade técnica que lhe assistiam, aplicando-os igualitária e uniformemente a todos candidatos, o que de resto o recorrente não põe em causa.
22°
A aprovação dos critérios de aplicação dos factores de classificação em procedimento concursal insere-se na «margem de livre apreciação» ou de «prerrogativa de avaliação» do Júri, no exercício da referida discricionariedade técnica, constituindo actividade do júri contenciosamente insindicável, salvo erro grosseiro ou manifesto, que o recorrente não comprovou ter existido, não imputou à classificação e, nem sequer, invocou na alegação ora impugnada (cfr. neste sentido Ac. do Pleno de 11.02.96, Proc. n° 27504).
23°
Também nesta parte, o acórdão recorrido fez interpretação e aplicação do art. 19° da Lei 98/97, em perfeita conformidade com a Constituição.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
3. Na sequência do despacho do relator que advertiu o recorrente para a eventualidade de o Tribunal Constitucional não vir a conhecer da questão de constitucionalidade da interpretação do artigo 19.º, n.º 1, alíneas a) a e) e n.º 2 da Lei n.º 98/97 (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), resulta das alegações apresentadas que o recorrente não prescinde do pedido de apreciação dessa questão de constitucionalidade.
Embora reconhecendo não ter tal questão sido previamente suscitada durante o processo, sustenta o recorrente que a interpretação normativa que questiona e pretende ver apreciada é feita, pela primeira vez no processo, pelo acórdão recorrido, pelo que não podia, em momento anterior, ter sido suscitada qualquer questão de constitucionalidade relativamente a essa interpretação.
Entende o recorrente, invocando, para o efeito, o já decidido pelo Tribunal Constitucional nos seus acórdãos n.ºs 272/90 e 678/99, que, por não ter disposto de oportunidade processual para suscitar essa questão de constitucionalidade em momento anterior, i.e, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, se verifica, in casu, uma daquelas situações em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão.
Face a esse entendimento, conclui o recorrente que deve ser admitido e apreciado o recurso também quanto a essa interpretação e aplicação inconstitucionais do acórdão recorrido.
Não tem razão o recorrente.
No seu entender, a circunstância de o tribunal a quo funcionar como tribunal de primeira instância, associada ao facto de apenas no acórdão recorrido, pela primeira vez no processo, ser feita a interpretação cuja conformidade com a Constituição pretende ver apreciada, implicaria, só por si, a impossibilidade de suscitação prévia da questão de constitucionalidade.
Porém, estando em causa a verificação do requisito de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa, a afirmação de que a interpretação normativa em questão é feita, pela primeira vez no processo, na decisão recorrida, só por si não basta.
Além disso, é ainda preciso demonstrar – trata-se de um verdadeiro ónus do recorrente – por que razão não lhe seria de exigir a antecipação dessa interpretação pelo tribunal a quo.
Ora, o recorrente não explica por que razão entende ser a interpretação dada, na decisão recorrida, ao artigo 19.º, n.º 1, alíneas a) a e) e n.º 2 da Lei n.º 98/97, de todo imprevisível ou inesperada. Sucede que, como se afirma no Acórdão n.º 213/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “[é], no entanto, de exigir que o invocado elemento surpresa decorra de regras de interpretação e aplicação lógicas e, por isso, se impõe que sobre aquele que alega essa circunstância recaia o ónus de explicitar os factores, objectivos, que possam conduzir o tribunal a aceitar uma tal conclusão. É assim insuficiente afirmar, de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente, se não se aponta com o necessário rigor quer a formulação da interpretação normativa usada, quer a razão pela qual, em atenção à fase processual verificada, foi impossível ao interessado suscitar atempadamente a questão. Na verdade, a jurisprudência do Tribunal tem vincado que «só em casos excepcionais e anómalos» em que o recorrente não dispôs processualmente da possibilidade da suscitação atempada da questão é que será «admissível» a arguição em momento subsequente (Acórdãos 62/85, 90/85 e 160/94 in AcTC, 5.º vol., p. 497 e 663 e DR, II, de 28MAI94) o que faz recair sobre o recorrente o dito ónus de expor, com a devida concretização, as circunstâncias pelas quais lhe foi impossível suscitar a questão de forma adequada”.
Tanto basta para que o Tribunal Constitucional não conheça do recurso na parte respeitante a essa questão de constitucionalidade.
No que respeita à questão de constitucionalidade da interpretação da alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, que lhe terá sido dada no acórdão recorrido, o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não enuncia de forma rigorosa qual o sentido com que tal preceito foi interpretado e que, no seu entender, é violador da Constituição.
Simplesmente, resulta das alegações apresentadas pelo recorrente que a interpretação normativa em questão – e que corresponde, nos seus precisos termos, à que fora suscitada durante o processo – é a de que o requisito de exercício de funções como membro de conselhos de administração nesse preceito previsto não compreende o exercício do cargo de gerente de uma sucursal de banco português no estrangeiro ou de sucursal de banco estrangeiro em Portugal.
Assim, o Tribunal Constitucional conhece do recurso apenas na parte relativa à questão de constitucionalidade da interpretação da alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, com o exacto sentido interpretativo atrás enunciado.
Questão de constitucionalidade
4. No caso dos autos, é o Tribunal confrontado com a questão de saber se será conforme com a Constituição um aspecto particular do regime de recrutamento dos Juízes do Tribunal de Contas, fixado pela Lei n.º 97/98 (Lei de Organização e Funcionamento do Tribunal de Contas: LOFTC).
De acordo com o disposto no artigo 18.º da referida lei, o recrutamento dos juízes deve fazer-se mediante concurso curricular, realizado “perante um júri constituído pelo Presidente do Tribunal de Contas, que preside, pelo vice-presidente, pelo juiz mais antigo e por dois professores universitários (…) designados pelo Governo”.
Determina por seu turno o artigo 19.º da LOFTC os requisitos de provimento, de tal forma que só possam apresentar-se ao concurso curricular os indivíduos com idade superior a 35 anos de idade e que, para além dos requisitos gerais estabelecidos na lei para a “nomeação de funcionários do Estado”, cumpram as exigências enunciadas nas alíneas a) a e) do seu n.º 1.
De acordo com a alínea e), podem apresentar-se a concurso curricular “[m]estres ou licenciados em Direito, Economia, Finanças ou Organização e Gestão de Empresas de reconhecido mérito com pelo menos 10 anos de serviço em cargos de direcção de empresas e 3 como membro de conselhos de administração ou gestão ou de conselhos fiscais ou comissões de fiscalização.”
Como já se viu, entende o recorrente que é inconstitucional a interpretação da norma contida nesta alínea e), quando feita no sentido de não incluir no conceito de “membro de conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização” o exercício do cargo de gerente de uma sucursal de banco português no estrangeiro ou de gerente de sucursal de banco estrangeiro em Portugal.
Alega-se que tal norma, assim interpretada, viola o disposto nos artigos 13.º e 47.º, n.º 2 da CRP, invocando-se para tanto, e desde logo, a jurisprudência do Tribunal no Acórdão n.º 128/99 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt)
5. É certo que, neste aresto, o Tribunal julgou inconstitucional, precisamente por violação dos artigos 13.º e 47.º, n.º 2, da CRP, “a segunda parte da norma do artigo 36.º, alínea c), da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, na medida em que aí, na candidatura a Juiz do Tribunal de Contas, em concurso curricular, não se considera o exercício de três anos de funções de gestão em sociedades por quotas”.
A alínea c) do artigo 36.º da Lei n.º 86/89 correspondia à actual alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 97/98, já que dispunha que, no processo de recrutamento dos Juízes do Tribunal de Contas, só pudessem apresentar-se ao respectivo concurso curricular os indivíduos que cumprissem, para além dos requisitos gerais, o de ser “ [m]estres ou licenciados em Direito, Economia, Finanças ou Organização e Gestão de Empresas, de reconhecido mérito, com pelo menos dez anos de serviço em cargos de direcção de empresas e três como membro de conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização”.
Contudo, deve desde já dizer-se que, não obstante a correspondência textual entre os dois preceitos, são bem diversas as normas em juízo num caso e noutro, pelo que, e ao contrário do que pretende o recorrente, não é extensível à situação dos autos a doutrina do Acórdão n.º 128/99.
Neste caso, ao juízo proferido pelo Tribunal não foi alheio o facto de, sem fundamento material bastante, se estar a beneficiar quem tivesse exercido funções de administração ou gestão numa sociedade anónima relativamente a quem exercesse exactamente as mesmas funções numa sociedade por quotas. O objecto do juízo foi, portanto, a solução normativa que consistia em privilegiar o exercício das funções de administração ou gestão em certo tipo societário, quando, noutro tipo, o conteúdo material das funções exercidas era essencialmente o mesmo. Foi esta solução que mereceu a censura do Tribunal, pois que se entendeu que eleger como critério de diferenciação de regimes as funções de administração e gestão num certo tipo de sociedade, com total abstracção do conteúdo material das funções exercidas, equivalia a fazer assentar a diferença de tratamento jurídico numa razão que não se apresentava como algo de inteligível, ou de inter-subjectivamente compreensível.
Diversa é a situação dos autos, em que, como se viu, o que está em causa é saber se será ou não inconstitucional a solução normativa que consiste em não incluir no conceito de “membro de conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização” o exercício do cargo de gerente de uma sucursal de banco português no estrangeiro ou de gerente de sucursal de banco estrangeiro em Portugal.
É patente que, nesta situação, o critério a partir do qual se estabelece a distinção de regimes já nada tem que ver com o tipo de sociedade na qual se exercem as funções de administração ou gestão (como ocorria no caso do Acórdão n.º 128/99), antes assentando, pelo contrário, na própria natureza das funções a exercer.
Com efeito, e abstraindo de particularidades do caso que possam conferir um maior ou menor grau de autonomia decisória aos seus órgãos, uma sucursal – enquanto forma de representação permanente, no país ou no estrangeiro, de uma sociedade comercial –, por definição, está integrada na empresa que representa, não tendo existência independente, nem sequer personalidade jurídica. Tal significa que a direcção de uma sucursal está sempre dependente das orientações dos órgãos de administração do organismo em que
se integra.
Assim, e sendo estes os contornos precisos em que se move a “dimensão interpretativa” da norma em juízo no caso concreto, resta saber se, como pretende o recorrente, com ela se lesam os princípios decorrentes dos artigos 13.º e 47.º, n.º 2 da CRP.
6. Como muito bem se sabe, e em sede do princípio geral da igualdade (artigo 13.º), o controlo que o Tribunal efectua é antes do mais um controlo negativo das opções legislativas. De acordo com esta doutrina, fixada por uma jurisprudência vasta (tão vasta que se dispensa aqui a nomeação de todos os lugares em que tem sido aplicada: veja-se, como uma síntese expressiva de todo o lastro jurisprudencial anterior, o Acórdão n.º 232/2003), cumpre aqui somente ao juiz constitucional verificar se a solução legislativa em causa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspectiva
jurídico-constitucional, por para ela se não encontrar qualquer fundamento inteligível. Como foi inúmeras vezes salientado, “o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa perspectiva sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)”.
Ora, a justificação para se não considerar o exercício do cargo de gerente de uma sucursal – seja de banco português no estrangeiro ou de banco estrangeiro em Portugal – para efeitos de se dar como preenchido o requisito de apresentação a concurso curricular de “pelo menos dez anos de serviço em cargos de direcção de empresas e três anos como membro de conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização” consubstancia objectivamente fundamento material bastante para efeitos de uma diferenciação de regimes, não cabendo ao Tribunal substituir-se ao legislador na avaliação da razoabilidade dessa diferenciação sobre ela formulando um juízo positivo, como se estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna (cf. Acórdão da Comissão Constitucional n.º 458, de 25 de Novembro de 1982, in Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983).
Inserindo-se a norma sub judicio no contexto da regulação legislativa de um concurso curricular para recrutamento de Juízes Conselheiros para o Tribunal de Contas, ela não se baseia, assim, em motivos subjectivos ou arbitrários, nem é materialmente infundada, pelo que não infringe o princípio da igualdade, tal como configurado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.
7. Como também não infringe o direito de acesso à função pública em condições de igualdade e liberdade, consagrado no artigo 47.º, n.º 2 da CRP.
O conteúdo deste último direito já foi suficientemente determinado pelo Tribunal, que, em jurisprudência abundante (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 683/99, 368/2000, 184/2008, 491/2008, 155/2009, 154/2010, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), tem dito que no n.º 2 do artigo 47.º se inclui, não apenas um radical subjectivo, mas ainda uma importante dimensão objectiva e institucional, destinada a garantir que a relação jurídica de emprego público se constitua – seja pelo meio da nomeação seja pelo meio de contrato de trabalho – sempre de tal forma que assegure a necessária prossecução do interesse público por parte da Administração (artigo 266.º da CRP). Assim é que o direito à igualdade e à liberdade no acesso à “função pública”, associado estreitamente à regra concursal, não visa apenas servir os interesses dos cidadãos que pretendem aceder ao emprego público. Visa ainda, mais do que isso – e como se escreveu no Acórdão n.º 683/99 –, garantir a democraticidade e a transparência das próprias organizações administrativas (de modo a que elas não venham a ser ocupadas por grupos, religiosos, económicos ou outros, que comprometam a imparcialidade da Administração); e promover a capacidade funcional e de prestação do agir administrativo, através da escolha dos mais aptos para a prossecução de funções que devem servir o interesse público.
Se tal ocorre, em geral, para qualquer situação de emprego público, por maioria de razão ocorrerá, como o salienta a decisão recorrida, para o processo de recrutamento dos Juízes no Tribunal de Contas.
Não havendo razões para que, à luz do princípio geral da igualdade, se censure a escolha do legislador, que estabelece na alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da LOFTC requisitos de apresentação ao concurso curricular que se prendem com a natureza material de funções anteriormente exercidas pelos candidatos, nenhumas razões há, também, para que seja essa escolha censurada à luz do princípio decorrente do n.º 2 do artigo 47.º da CRP.
III – Decisão
Assim, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não conhecer do recurso de constitucionalidade na parte respeitante à interpretação do artigo 19.º, n.º 1, alíneas a) a e) e n.º 2 da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto;
b) Não julgar inconstitucional a alínea e) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o requisito de exercício de funções como membro de conselhos de administração aí previsto não compreende o exercício do cargo de gerente de uma sucursal de banco português no estrangeiro ou de sucursal de banco estrangeiro em Portugal;
c) Consequentemente, negar provimento ao recurso, na parte em que dele se conhece;
d) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.