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Processo n.º 579/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, provenientes do Tribunal da Relação de Lisboa, em que são recorrentes A. e outros e recorrido o Ministério Público, foi indeferida, por decisão de 11 de Fevereiro de 2010 (fls. 1247/1249), a reclamação que os ora recorrentes haviam interposto para a conferência do despacho proferido em 7 de Setembro de 2009 (fls. 1227/1228), o qual, por sua vez, tinha indeferido o requerimento de 3 de Setembro de 2009 em que era pedido o alargamento do prazo legal para requerer uma eventual aclaração ou nulidade do acórdão proferido em 20 de Julho de 2009, o qual, por sua vez, mantivera a condenação dos arguidos por abuso de confiança em relação à segurança social.
2. Inconformados, deduzem então os ora recorrentes, em 5 de Março de 2010, reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, a qual foi igualmente indeferida por decisão de 22 de Abril de 2010. Para assim concluir, considerou-se, designadamente, o seguinte:
“[...] veio reclamar para a Presidência deste Tribunal da Relação de Lisboa, por ter entendido que por analogia, o despacho que indeferiu a Reclamação para a Conferência seria susceptível de ser por esta forma sindicado.
Sucede porém que não se vê que haja a apontada analogia entre a situação descrita e a legalmente consagrada em letra de lei para os casos de não admissão ou retenção do recurso.
Com efeito, para que se possa recorrer à analogia, primeiramente é mister que se detecte lacuna na lei (artigo 10. ° do Código Civil).
Ora, no caso da Reclamação para a Conferência, os pressupostos em que assenta o seu eventual indeferimento, não são minimamente enquadráveis na figura do indeferimento do recurso (ou da sua retenção), pois que ali está em causa uma decisão a ser proferida na mesma instância, enquanto que aqui a decisão indeferida invalida uma apreciação por um tribunal de outra instância (superior).
Por outro lado, há também que ter presente que existindo no processo penal norma expressa referente à Reclamação para o Presidente da Relação (recaindo sobre o despacho que retém ou não admite o recurso), não se vê porque razão o legislador não a teria alargado para as situações de indeferimento da Reclamação para a Conferência se fosse esse o seu pensamento e real intenção. Há que não esquecer que ‘na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9.º, n.° 3, do Código Civil). Entende-se assim que a Reclamação suscitada pelo arguido se revela meio impróprio para sindicar o despacho da Exma. Colega Juíza Desembargadora Relatora.
Assim, face a todo o exposto, indefere-se a reclamação”.
3. É então interposto recurso para este Tribunal através de requerimento onde se afirma, nomeadamente, o seguinte:
“[...] Recorrentes nos autos à margem indicados, notificados do indeferimento da reclamação – dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa – da não admissão da reclamação para a conferência do despacho de fls. 1227/1228 – que considerou não haver irregularidade pelo facto de não estarem disponíveis as cassetes com a gravação da audiência de julgamento –, vêm interpor recurso para o Tribunal Constitucional daquele despacho de fls. 1227/1228, nos seguintes termos: [...]
é inconstitucional o entendimento normativo dado ao artigo 123.° n.° 1 do C.P.P. – devidamente conjugado com os artigos 86.°, 89.°, 101.°, 412.° n.° 3 ou outros eventualmente pertinentes para o efeito – no sentido de que – estando em curso prazo para pedir aclaração, arguir nulidade ou recorrer de acórdão da Relação proferido em processo penal – não constitui irregularidade a indisponibilidade das cassetes com a gravação da audiência de julgamento para consulta ou, de qualquer forma, para acesso por parte de mandatário do arguido, quando este julgue necessário para o exercício dos direitos do arguido tal acesso, por violação dos princípios e normas supra referidos no artigo precedente.
7° Tal entendimento decorre do despacho recorrido e os ora Recorrentes não suscitaram a questão em momento anterior por não contarem com ela, nem terem obrigação de o terem previsto, uma vez que tal orientação não era por eles conhecida. [...]
9º O prazo para o presente recurso conta-se a partir da notificação do despacho do Presidente do Tribunal da Relação proferido a 22 de Abril de 2010, nos termos do artigo 70. °, n.°s 2, 4 e 6 da LTC. [...]”
4. Na sequência, foi proferida pelo relator, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, decisão sumária de não conhecimento do recurso. É o seguinte, na parte agora relevante, o respectivo teor:
“[...] Importa, antes de mais, decidir se é possível conhecer do objecto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cf. artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional – LTC). Ora, tendo sido recusada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 7 de Setembro de 2009 (fls. 1227-1228), a pretensão de adiamento de prazo veiculada pelo requerimento de 3 de Setembro de 2009, importa verificar se assiste razão aos recorrentes quando afirmam que, tendo deduzido reclamação para a conferência (indeferida em 11 de Fevereiro de 2010) e tendo deste indeferimento interposto reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa (igualmente rejeitada por inadmissibilidade legal), deveriam beneficiar do regime contido nos n.°s 2, 4 e 6, do artigo 70º da LTC. Vejamos.
A reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de um despacho da Juíza Desembargadora relatora que indefere uma reclamação para a Conferência não só não está expressamente prevista na lei, como, aliás, os próprios recorrentes explicitamente aceitam, como, ao invés, são claros e expressos os casos em que uma tal reclamação para o Presidente do Tribunal é legalmente admissível. Daí que este incidente não possa deixar de ser considerado como anómalo.
Ora, como é jurisprudência corrente deste Tribunal (cf., entre outros, os Acórdãos n.°s 511/93, 641/97, 459/98, 1/04, 278/05, 64/07, 173/07, 279/07, 463/07, 80/08, 210/08, 178/09 e 278/10), a dedução de incidentes processuais anómalos, designadamente pós-decisórios, não previstos no ordenamento jurídico, não tem a virtualidade de suspender ou interromper o prazo de impugnação de decisões judiciais. Como se afirmou no Acórdão n.º 278/10, citando o Acórdão n.º 278/05, “verifica-se assim que o reclamante lançou mão de expedientes processuais que não têm qualquer fundamento legal, absolutamente alheios a uma estratégia processual minimamente atenta às respectivas disposições legais. Os sucessivos requerimentos do reclamante não têm a virtualidade de suspender o prazo de interposição do recurso de constitucionalidade. Caso contrário, estava encontrado o meio de alargar de modo inadmissível e infundado tal prazo. Realce-se, por último, que a situação dos autos não se enquadra no disposto no n.º 4 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, tal disposição reporta-se a mecanismos de impugnação cuja admissibilidade ainda pode ter alguma verosimilhança”. E, de facto, a errónea dedução de um incidente legalmente inexistente não tem a virtualidade de interromper ou suspender aquele prazo. O efeito interruptivo do prazo de impugnação de decisões judiciais apenas está legalmente previsto, como se afirmou no Acórdão n.º 195/2009, “para os pedidos de rectificação, aclaração ou reforma dessas decisões, como dispõe o artigo 686.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (devendo atribuir-se o mesmo efeito interruptivo, quanto ao prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, às arguições de nulidade da decisão recorrida, por esse recurso não poder ter por fundamento a nulidade da decisão recorrida e, assim, ser inaplicável o regime da parte final do primeiro período do n.º 3 do artigo 668.º do citado Código – cf., entre outros, os Acórdãos n.°s 79/2000, 43/2003 e 64/2007)”.
Tanto basta para concluir que, sendo a decisão recorrida a de 7 de Setembro de 2009, há muito que se encontrava decorrido o prazo de interposição do recurso para este Tribunal quando, em 12 de Maio de 2010, foi interposto o presente recurso. O recurso é, assim, manifestamente extemporâneo por força do disposto no n.º 1 do artigo 75.º da LTC, ficando prejudicada a discussão sobre a eventual inadmissibilidade do recurso por não suscitação da questão de constitucionalidade, antes de proferida a decisão recorrida.
5. Inconformados, os recorrentes reclamam para a Conferência, afirmando:
“1.º Na douta decisão sumária proferida, vem sustentar-se que o incidente de reclamação apresentado para o Presidente da Relação de Lisboa — que tinha por objecto o despacho de indeferimento da reclamação para a conferência — é um incidente anómalo, que não interrompe o prazo do recurso para o Tribunal Constitucional.
2.º Ressalvado o devido respeito, que muito é, a verdade é que o que é anómalo é que o Relator do processo na Relação não tenha admitido a reclamação para a conferência de uma decisão singular sua, ao contrário do que é paradigmático nas decisões singulares proferidas em tribunais superiores no âmbito de qualquer recurso e, in casu, expressamente prevê o artigo 700.º n. ° 3 do C.P.C., aplicável ao processo penal, por força do artigo 4° do C.P.P..
3.° Perante tão inusitada decisão — a da não admissão de uma reclamação para a conferência de uma decisão singular —, os ora Recorrentes confrontaram-se com uma situação — essa sim verdadeiramente anómala.
4.º Nesse quadro, não prevendo a lei como reagir contra a decisão singular de um juiz de um tribunal superior que recusa levar à conferência uma sua decisão singular, entendeu-se que tal lacuna devia ser suprida através da norma aplicável aos casos análogos ou, no limite, através da norma que o intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.
5.º E, nesse contexto, julgou-se talvez mal, mas com inteira boa fé processual -. que a situação análoga aplicável seria a da reclamação para o tribunal superior do despacho do tribunal a quo que não admite o recurso, já que, num certo sentido, a conferência está para o Relator como o tribunal superior está para o tribunal a quo.
6.º Suponha-se que, por qualquer motivo anómalo, V. Exa. não admitia esta reclamação para a conferência; nesse caso, o que restaria aos Recorrentes-
7° Ressalvado o devido respeito, parece que perante tão inusitada decisão, estaríamos também perante uma lacuna que, no modesto entendimento dos Recorrentes, também caberia integrar.
8. Pelo exposto, não parece que V. Exa. tenha razão, quando qualifica a pretérita reclamação apresentada para o Presidente do Tribunal da Relação, como um incidente anómalo que não interrompe o prazo do recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º nºs 2, 3 e 4 da LTC.
Termos em que deve ser dado provimento à reclamação ora apresentada e admitido o recurso interposto.”
6. Notificado para responder, o Ministério Público sustentou a manifesta improcedência da reclamação. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. A decisão reclamada sustentou a extemporaneidade do recurso por considerar, de acordo com jurisprudência firme deste Tribunal, que a “dedução de incidentes processuais anómalos, designadamente pós-decisórios, não previstos no ordenamento jurídico, não tem a virtualidade de suspender ou interromper o prazo de impugnação de decisões judiciais.” Sustentam os ora reclamantes que o incidente que suscitaram não será anómalo. Sem razão, porém. De facto, independentemente da bondade, à luz do direito infraconstitucional, do despacho que não admitiu reclamação para a conferência no Tribunal da Relação – cujo mérito não compete a este Tribunal sindicar - , o facto é que, além de não existir a alegada lacuna, como se afirmou na decisão ora reclamada, “a reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de um despacho da Juíza Desembargadora relatora que indefere uma reclamação para a Conferência não só não está expressamente prevista na lei, como, aliás, os próprios recorrentes explicitamente aceitam, como, ao invés, são claros e expressos os casos em que uma tal reclamação para o Presidente do Tribunal é legalmente admissível. Daí que este incidente não possa deixar de ser considerado como anómalo.” E tanto basta para que a presente reclamação não possa proceder.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010.- Gil Galvão – José Borges Soeiro – Rui Manuel Moura Ramos.