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Processo n.º 72/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente A. e recorrida a Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença daquele Tribunal, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, quando interpretado no sentido de o prazo para recorrer, previsto no artigo 685.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), na redacção emergente do mesmo diploma legal, não ser aplicável aos processos pendentes em 31.12.2007.
2. O recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. O princípio da igualdade abrange, numa das suas dimensões, a proibição do arbítrio.
2. O legislador encontra-se vinculado ao princípio da igualdade, nomeadamente na dimensão de proibição de arbítrio.
3. A vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão- de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigual mente.
4. Quando os limites externos da “discricionariedade legislativa” são violados, isto é, quando, a medida legislativa não tem adequado suporte material, existe uma “infracção” do princípio da proibição do arbítrio.
5. Só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, perceptíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem.
6. O poder do legislador, implícito na tradicional formulação do princípio da igualdade — tratar de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente, na medida da diferença, é um poder composto, decomponível nos poderes de
a. determinar a finalidade da comparação;
b. eleger o elemento da comparação entre os sujeitos a tratar;
c. decidir quem é ou não igual;
d. definir o tratamento;
e. aplicar o tratamento, igual ou desigual.
7. No n.° 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei 303/2007, o legislador comparou e fez a distinção entre dois blocos de cidadãos, partes em processos a correr nos tribunais judiciais: aqueles que são partes em processos iniciados antes de 1 de Janeiro de 2008 e aqueles que são partes em processos iniciados posteriormente àquela data.
8. Aos primeiros, aplicar-se-iam umas regras e aos segundos umas regras diferentes.
9. As finalidades imediatamente visadas pelo legislador foram:
a. A simplificação profunda do regime dos recursos;
b. A obtenção de significativos ganhos na celeridade processual.
10. Mediatamente, para lá do interesse público no melhor funcionamento da justiça, o legislador teve em vista assegurar uma mais eficaz protecção de direitos fundamentais dos cidadãos, a saber:
- o direito a uma justiça efectiva, que integra o direito ao recurso das decisões judiciais desfavoráveis;
- o direito à justiça em prazo razoável.
11. Estes direitos fundamentais têm a sua origem na dignidade da pessoa humana, valor em que assenta, conforme art.º l.º da Constituição, a República Portuguesa.
12. Os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição devem ser gozados por todos os cidadãos em pé de igualdade, por força do princípio consagrado no art.º 13.° da mesma Constituição da República Portuguesa.
13. Da aplicação do n.° 1 do art.º 11.° do Decreto-Lei n.° 303/2007, resulta que são tratadas de forma desigual situações iguais.
14. Esta diferença de tratamento não tem uma “justificação em fundamentos razoáveis, perceptíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem.”
15. Da aplicação da norma em causa resulta que as partes nos processos judiciais mais antigos, ao recorrer de decisões desfavoráveis, vêm os seus recursos serem tramitados segundo normas que, por não serem adequadas para garantir a devida celeridade, foram substituídas por outras, aplicáveis às partes em processos mais recentes, instaurados posteriormente a 1 de Janeiro de 2008.
16. Esta diferença de tratamento, resultante da aplicação do n.° 1 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.° 303/2007, viola o princípio da igualdade, enunciado no art.º 13.° da Constituição, na concretização do direito à justiça em prazo razoável estabelecido no artº 20.°, n.° 4, também da Constituição.
17. A consideração dos valores igualdade e dignidade da pessoa humana permite enunciar um princípio jurídico de interpretação:
toda a norma que explicite a defesa de direitos fundamentais é de aplicação imediata e retroactiva.
Nestes termos, deve o Tribunal Constitucional:
— declarar inconstitucional a norma do n.º 1 do art.º 11.° do Decreto-Lei n.° 303/2007, de 24 de Agosto, interpretada como impedindo as partes em processos instaurados antes de 1 de Janeiro de 2008 de, ao recorrerem de decisões desfavoráveis, aproveitar do regime aprovado pelo legislador tendo em vista a simplificação e celeridade processual, ao contrário do que é permitido às partes em processos recentes, instaurados depois daquela data,
— revogar a decisão proferida pelo Presidente do Tribunal da Relação e, em consequência,
— ordenar a admissão do recurso interposto pelo recorrente em 12.09.2009 perante o Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António.»
3. A recorrida não contra-alegou.
4. Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para a presente decisão:
- Inconformado com a sentença que foi proferida nos presentes autos pelo Tribunal Judicial de Vila Real de St. António, o aqui recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora.
- O recurso não foi admitido por despacho de fls. 55, com fundamento em extemporaneidade, por ter sido apresentado depois de decorrido o prazo de 10 dias constante do artigo 685.º do CPC, na versão anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, tido por aplicável ao caso, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, deste diploma legal.
- O recorrente reclamou deste despacho para o Tribunal da Relação de Évora que, por decisão de fls. 61 e s., ora recorrida, indeferiu a reclamação.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
5. A norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto (diploma que altera o Código de Processo Civil, procedendo, além do mais, à revisão do regime dos recursos), estabelece o seguinte:
«Artigo 11.º
Aplicação no tempo
1 — Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
2 — (…).»
Constitui objecto do presente recurso a referida norma quando interpretada no sentido de o prazo para recorrer, previsto no artigo 685.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), na redacção emergente do mesmo diploma legal, não ser aplicável aos processos pendentes em 31.12.2007.
O artigo 685.º, n.º 1, do CPC, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, prevê um prazo para interposição do recurso de 30 dias (salvo nos processos urgentes e nos demais casos previstos na lei), contado a partir da notificação da decisão. Na redacção anterior, o prazo aí previsto era de 10 dias, contados da notificação da decisão. Cumpre lembrar que a ampliação do prazo geral de interposição tem subjacente a modificação do modo de interposição do recurso, que passou a exigir a junção das alegações com o requerimento de interposição (cfr. artigo 684.º-B do CPC, aditado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007).
O recorrente sustenta que a interpretação questionada viola o princípio da igualdade, enunciado no artigo 13.º da Constituição, “na concretização” do direito à justiça em prazo razoável, estabelecido no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, na medida em que assim se estabelece uma diferença de tratamento irrazoável e injustificada entre “dois blocos de cidadãos”: entre os que são parte em processos iniciados antes de 1 de Janeiro de 2008 e os que são parte em processos iniciados posteriormente àquela data. Em consequência, sustenta o recorrente, «as partes nos processos judiciais mais antigos, ao recorrer de decisões desfavoráveis, vêm os seus recursos serem tramitados segundo normas que, por não serem adequadas para garantir a devida celeridade, foram substituídas por outras, aplicáveis às partes em processos mais recentes, instaurados posteriormente a 1 de Janeiro de 2008.»
6. Está em causa uma interpretação do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, segundo a qual o novo regime de recursos em processo civil fica reservado para os processos instaurados a partir de 1 de Janeiro de 2008, continuando os demais, como no presente caso, submetidos ao regime anterior.
Por força da norma questionada ocorre a vigência, transitória e simultânea, de duas normas processuais que prevêem prazos diferentes para a interposição de recursos em processo civil. Mas, em rigor, não se pode dizer que estejamos perante dois prazos diferentes para duas situações iguais, pois a diferença entre esses prazos (10 dias e 30 dias) resulta, como já referido, da alteração do próprio modo de interposição do recurso, que passou a concentrar no mesmo momento a interposição do recurso e a apresentação das alegações.
Assim, em rigor, o que se verifica é que no quadro actual convivem dois regimes distintos de recursos, sendo um aplicável aos processos pendentes em 31.12.2007, no qual o prazo de interposição é de 10 dias, sendo o prazo para alegar de 30 ou de 15 dias, consoante esteja em causa uma apelação ou um agravo, a contar da notificação do despacho que admita o recurso (artigos 685.º, 687.º, 690.º, 698.º e 743.º do CPC, na versão anterior às alterações de 2007); e o outro, decorrente das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 303/2007 e válido para os processos entrados a partir de 1.1.2008, no qual o prazo para interposição do recurso ordinário (que foi reconduzido à apelação, extinguindo-se o agravo) é sempre de 30 dias, sendo a apresentação de alegações concomitante com a interposição do recurso (artigos 684.º-B e 685.º, n.º 1, do CPC, na redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007).
A actual concentração num momento processual único dos actos processuais de interposição do recurso e de apresentação de alegações (bem como dos despachos de admissão e expedição do recurso) insere-se num conjunto de medidas com as quais o legislador visou obter a “simplificação” do regime de recursos (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 303/2007).
Pode entender-se que esta “simplificação” contribui, de forma efectiva, para uma maior celeridade processual ou, pelo contrário, pode sustentar-se que se trata de «um pormenor que pouco adiantará aos resultados que já se conseguiram e relativamente ao qual apenas se poderá creditar a equiparação que foi feita relativamente ao regime que vigorava no processo laboral, no processo penal ou no processo administrativo» (como é defendido por Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Decreto-Lei n.º 303/07, de 24 de Agosto, Coimbra, Almedina, 2007, 12).
Independentemente da avaliação que se venha a fazer dos resultados desta alteração, o certo é que do confronto entre o antigo regime de interposição do recurso e aquele que passou a vigorar para os processos intentados depois de 1.1.2008, não resulta uma diferença de tratamento processual (entre os litigantes com processos pendentes em 31.12.2007 e os litigantes que intentem processos a partir de 1.1.2008) susceptível, por si só, de pôr em risco o direito à decisão em prazo razoável, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da CRP.
Da mesma forma, tem que se concluir que a convivência transitória entre o actual e o anterior regime dos recursos em processo civil não belisca o princípio da igualdade.
O Tribunal Constitucional já por diversas vezes foi chamado a pronunciar-se sobre situações de “tratamento desigual” resultante da aplicação de leis no tempo. E a esse respeito tem reiteradamente afirmado que o princípio da igualdade não opera diacronicamente. Ou seja, o legislador não está, em regra, obrigado a manter as soluções jurídicas que alguma vez adoptou, antes sendo notas típicas da função legislativa, justamente, entre outras, a liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade (Acórdão n.º 352/91, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Assim, a criação de situações de desigualdade, resultantes da aplicação do quadro legal revogado e do novo regime, é inerente à liberdade do legislador do Estado de Direito de alterar as leis em vigor.
Como mais recentemente se salientou nos Acórdãos n.ºs 260/2010 e 153/10, na determinação do conteúdo das normas que disciplinam a sucessão de leis no tempo é reconhecida ao legislador uma apreciável margem de liberdade no que respeita ao estabelecimento do marco temporal relevante para a aplicação do novo e do velho regime legal.
No caso em apreço, nada há no sentido e alcance da norma que fixa o prazo para recorrer que leve a questionar a admissibilidade constitucional da interpretação normativa – com correspondência imediata, aliás, no enunciado do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007 - segundo a qual as disposições da lei nova, incluindo as respeitantes aos recursos, «não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor».
Não cabe ao Tribunal aferir se o critério escolhido foi a melhor opção ou se, pelo contrário, teria sido possível encontrar um outro regime de direito transitório que se traduzisse na aplicação gradual do novo regime dos recursos aos processos pendentes, à semelhança do que foi feito em anteriores reformas da lei processual civil.
Um tal critério insere-se dentro da margem de discricionariedade que assiste ao legislador, por via do mandato democrático que lhe foi conferido, e não desrespeita a segurança jurídica, nem a protecção da confiança, nem é irrazoável.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Não julgar inconstitucional a norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, quando interpretada no sentido de o prazo para recorrer, previsto no artigo 685.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), na redacção emergente do mesmo diploma legal, não ser aplicável aos processos pendentes em 31.12.2007.
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.