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Processo n.º 414/2009
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A 29 de Outubro de 2008 o Magistrado do Ministério Público instaurou, junto do Tribunal da Comarca de Santarém e em representação do menor A., acção de regulação do exercício do poder paternal contra B. e C., progenitores do referido menor e recorridos nos presentes autos.
B. e C. não eram casados, não viviam em união de facto e não estavam de acordo quanto à forma de exercício do poder paternal. O menor residia com a mãe.
Realizada a 24 de Novembro a conferência a que alude o artigo 175.º, n.º 1, da Lei da Organização Tutelar de Menores, e não tendo sido possível obter o acordo dos progenitores, procedeu-se à fixação de um regime provisório de regulação do poder paternal.
2. Por sentença datada de 6 de Fevereiro de 2009, decidiu o Tribunal de Santarém não manter este regime, que se fundava no disposto no artigo 1911.º do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 496/77. Ao caso foram antes aplicadas as regras relativas ao “exercício das responsabilidades parentais” decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 1912.º, n.º 1, e 1906.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008,
de 31 de Outubro. O Tribunal assim decidiu porque recusou a aplicação, por inconstitucionalidade, da norma contida no artigo 9.º daquela Lei n.º 61/2008.
Fê-lo nos seguintes termos:
(…)
A 30 de Novembro de 2008, entrou em vigor a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que procedeu, entre outras alterações, à alteração do regime do exercício do poder paternal, procedendo a uma sua redenominação, passando a referência ao “poder paternal” a considerar-se substituída pela designação “responsabilidades parentais” nas epígrafes da secção II e da sua subsecção IV, do capítulo II, do título III, do livro IV do Código Civil e em todas as disposições da secção II, do capítulo II, do título III, do livro IV do Código Civil.
(…)
No entanto, mais importante do que esta redenominação, é a alteração introduzida no leque dos poderes-deveres dos progenitores não unidos pelo casamento e que não vivem em condições análogas às dos cônjuges, prevendo-se na Lei n.º 61/2008, como regime regra, o exercício em comum das responsabilidade parentais por ambos os progenitores relativamente às questões de particular importância, exercício em comum que só é passível de ser afastado por decisão judicial fundamentada (artigos 1906.º, n.ºs 1 e 2 e 1912.º, n.º 1, ambos do Código Civil).
No regime anterior, no caso de progenitores não unidos entre si pelo casamento e que não vivessem em união de facto, ou havia acordo dos progenitores no sentido do exercício em comum por ambos ou, não existindo tal acordo, o exercício do poder paternal competiria ao progenitor que tivesse a guarda do menor, presumindo-se iuris tantum que tal guarda cabia à mãe do menor. Ao progenitor a quem não competia o exercício do poder paternal assistia o poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho (artigo 1906.º, n.º 4, do Código Civil, na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 61/2008).
Apesar desta verdadeira revolução copernicana, no que tange o regime do exercício das ora denominadas responsabilidades parentais, ou talvez por isso, o legislador previu no artigo 9.º da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que tal regime não se aplica aos processos pendentes em tribunal.
(…)
A questão que a referida norma transitória coloca é a de saber se é sustentável, do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade, que o conteúdo dos poderes-deveres dos progenitores relativamente a seus filhos possa depender duma circunstância tão aleatória como é a propositura de uma acção.
A mesma norma suscita também a questão de saber quais os poderes-deveres dos progenitores que viram a sua situação resolvida antes da entrada em vigor da Lei n.º 6 1/2008, de 31 de Outubro. Será que continuarão a ter os mesmos poderes-deveres, não lhes sendo aplicável o novo regime e nem podendo tal alteração legislativa, por si só, fundamentar uma alteração da regulação do exercício do poder paternal- (neste sentido que decididamente repudiamos veja-se, Tomé d’Almeida Ramião, O Divórcio e Questões Conexas, Quid Juris 2009, página 164); ou, ao invés, em homenagem ao princípio constitucional da igualdade que impõe que situações iguais devam ser igualmente tratadas, bem como considerando as regras gerais sobre aplicação no tempo de normas relativas ao conteúdo de uma relação jurídica, abstraindo dos factos que lhe deram origem (artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil), deve o novo regime aplicar-se aos processos pendentes-
(…)
A nosso ver, a norma transitória em análise introduz um tratamento discriminatório, desigual e injustificado dos progenitores em função da simples propositura da acção e conduz ao absurdo do conteúdo dos poderes-deveres dos progenitores poder divergir tão só por causa daquele critério temporal. Pode até suceder que o mesmo progenitor tenha poderes-deveres distintos relativamente a filhos diferentes e de mães diversas, apenas porque os processos nos quais vieram a ser regulados o exercício do poder paternal/responsabilidades parentais foram instaurados em momentos diversos.
Em nosso entender, tal disposição transitória, com tal alcance, atenta contra o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa), na medida em que progenitores colocados na mesma situação de facto terão poderes-deveres diversos no que respeita as ora denominadas responsabilidades parentais, tão-só por causa do momento em que foi proposta a acção para tal regulação. Afigura-se-nos deste modo que aquela norma transitória enferma de inconstitucionalidade material e deve por isso ser desaplicada (artigos 13.º, 204.º e 277.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa).
Assim, desaplicando-se pelos referidos fundamentos o artigo 9.º da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, aplicar-se-á ao caso dos autos a nova lei.
(…)
3. Desta decisão interpôs recurso o Ministério Público, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, “porquanto o Senhor Juiz, na douta sentença de 6 de Fevereiro de 2009, recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do artigo 9.º da Lei n.º 61/2008 (…) por entender que esta norma transitória introduz um tratamento discriminatório, desigual e injustificado dos progenitores, no que concerne aos poderes-deveres das ora denominadas responsabilidades parentais.”
Admitido o recurso no Tribunal, nele apresentou o recorrente as suas alegações, pugnando pela procedência do recurso e sustentando que, no caso, se não lesara o princípio constitucional da igualdade.
II – Fundamentação
Delimitação do objecto
4. Sintetizemos o que acaba de ser relatado.
Em 29 de Outubro de 2008 foi instaurada acção de regulação do exercício do poder paternal relativamente ao menor A.
Na pendência dessa acção, a 30 de Novembro de 2008, entrou em vigor a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que alterou o regime jurídico do divórcio e introduziu uma nova figura, denominada exercício das responsabilidades parentais.
O artigo 9º desse diploma consagrou a seguinte norma de direito transitório:
O presente regime não se aplica aos processos pendentes em tribunal
No caso, estava em questão a regulação do modo de exercício das responsabilidades parentais nas situações previstas pelo artigo 1912.º do Código Civil, nas quais, encon-trando-se estabelecida a filiação relativamente a ambos os progenitores, não vivam estes em condições análogas às dos cônjuges. De acordo com a actual redacção do referido artigo, introduzida pela Lei nº 61/2008, a essas situações deve ainda aplicar-se o regime comum relativo ao exercício das responsabilidades parentais, nomeadamente – para o que ao caso interessa – o agora previsto no artigo 1906.º do Código (exercício das responsabilidades parentais em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento).
Entendeu o tribunal a quo que era inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma de direito transitório fixada no atrás transcrito artigo 9.º, por impedir, nas situações acabadas de referir, a aplicação imediata do novo regime [de exercício das responsabilidades parentais] a processos pendentes em tribunal.
Assim, e atenta a natureza instrumental dos recursos em fiscalização concreta, é com esta dimensão que o Tribunal deve conhecer da questão que lhe foi posta: é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma contida no artigo 9º da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, na parte em que impede a aplicação, a processos pendentes em tribunal, do regime de exercício das responsabilidades parentais, ainda naquelas situações em que, encontrando-se estabelecida a filiação relativamente a ambos os progenitores, não vivam estes em condições análogas às dos cônjuges-
Questão de constitucionalidade
5. A Lei n.º 61/2006, de 31 de Outubro, veio alterar o regime jurídico do divórcio. De acordo com a exposição de motivos constante de projecto de lei apresentado à Assembleia da República, três grandes princípios terão inspirado o legislador nesta alteração. Primeiro, o da eliminação da ideia de “divórcio-sanção”, antes presente no ordenamento jurídico português. Este princípio terá conduzido, no domínio linguístico, ao desaparecimento da expressão legal “divórcio litigioso” e, no domínio valorativo, ao desaparecimento da culpa como fundamento do divórcio por vontade de apenas um dos cônjuges e sem o consentimento do outro. Segundo, o da necessidade de reconhecimento e de valorização dos contributos dados por cada um dos cônjuges para a qualidade “da vida conjugal e familiar, dos cuidados com os filhos e do trabalho dispendido no lar”. Este princípio terá conduzido à inovatória previsão legal de um possível “crédito de compensação” para aqueles casos em que, dissolvido o vínculo conjugal, venha a ser manifesta a desigualdade dos referidos contributos. Terceiro, o de “assumir de forma explícita o conceito de responsabilidades parentais como referência central, afastando assim claramente a designação hoje desajustada de ‘poder paternal’ (…)”. Ainda de acordo com os motivos expostos no projecto de lei, terá este último princípio levado o legislador a introduzir alterações profundas na disciplina das matérias em causa.
Desde logo, alterações terminológicas: o que antes, na constância do matrimónio, se denominava poder paternal (artigo 1901.º do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro), passou a designar-se responsabilidades parentais (artigo 1901.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008); e ao que antes, em caso de divórcio [e separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento] se chamava exercício do poder paternal (artigo 1906.º) passou a chamar-se, com a Lei n.º 61/2008, exercício das responsabilidades parentais. Em caso de divórcio, e desde que houvesse acordo dos pais, o poder paternal exercia-se em comum por ambos. Se não houvesse acordo, determinaria o tribunal que o referido poder fosse exercido pelo progenitor a quem o filho fosse confiado, assistindo ao outro o poder de vigiar a educação deste último e as suas condições de vida. Diversamente, impõe agora a nova lei que as responsabilidades parentais sejam sempre exercidas conjuntamente quanto às “questões de particular importância para a vida do filho”, cabendo a responsabilidade pelos “actos da vida corrente”, primacialmente, ao progenitor com quem o filho “resida habitualmente”. A aplicação deste regime regra pode ser afastada pelo tribunal que determine, em sentença fundamentada, que as responsabilidades parentais sejam exercidas por um só progenitor. Tal sucederá, no entanto, apenas quando o exercício em comum for julgado contrário aos interesses do filho (artigo 1906.º do Código, na redacção dada pela nova lei).
Nos termos dos motivos expostos pelo projecto apresentado à Assembleia, a fundamentar este novo regime (e a nova terminologia) está a convicção segura de que assim se servem melhor “os direitos que se querem salvaguardar”, e que são os das próprias crianças. Na verdade, diz o preâmbulo do projecto que “é vital que seja do ponto de vista das crianças e dos seus interesses, e portanto a partir das responsabilidade dos adultos, que se definam as consequências do divórcio”, pelo que deve a lei evidenciar “a separação entre relação conjugal e relação parental, assumindo-se que o fim da primeira não pode ser pretexto para a ruptura da segunda”, já que “o divórcio dos pais não é o divórcio dos filhos, e estes devem ser poupados a litígios que ferem os seus interesses, nomeadamente, se forem impedidos de manter as relações afectivas e as lealdades tanto com as suas mães como com os seus pais.”
O novo regime imperativo de exercício conjunto das responsabilidades parentais, assim fundamentado, foi ainda estendido aos casos em que a filiação se encontre estabelecida relativamente a ambos os progenitores, e estes não vivam em condições análogas às dos cônjuges (artigo 1912.º, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008). Ainda aqui, portanto, foi de relevo a alteração legislativa introduzida. Onde antes se determinava que o poder paternal fosse exercido pelo progenitor que tivesse a guarda do filho, e se presumia juris tantum – justamente nos casos em que a filiação se encontrasse estabelecida relativamente a ambos os pais e estes não tivessem contraído matrimónio após o nascimento do menor ou convivessem maritalmente – que era a mãe que tinha a guarda do filho (artigo 1911.º do Código, na versão dada pelo Decreto-lei n.º 496/77), impõe-se agora, como regime regra e de acordo com os fundamentos atrás expostos, o exercício conjunto das responsabilidades parentais.
A Lei n.º 61/2008 entrou em vigor a 30 de Novembro, de acordo com o disposto no seu artigo 10.º. No entanto, determinou o artigo 9.º que o seu regime se não aplicasse aos processos pendentes em tribunal.
6. Como já se viu, no presente caso iniciara o Ministério Público, ainda antes da entrada em vigor da lei nova, o processo de regulação do exercício do poder paternal do menor A., já que os seus progenitores – que não eram casados nem viviam em condições análogas às dos cônjuges – não tinham, quanto àquele exercício, chegado a qualquer acordo.
Em conformidade com a norma de direito transitório fixada pelo artigo 9.º da Lei n.º 61/2008 “[ (o) presente regime não se aplica aos processos pendentes em tribunal]”, deveria ter sido ao caso aplicado o regime da lei velha, ou seja, o constante do artigo 1911.º do Código Civil, na versão dada pelo Decreto-lei n.º 496/77. A tal se recusou, porém o juiz da causa, que ao invés, aplicou imediatamente o regime da lei nova, ou seja, o constante das disposições conjugadas dos artigos 1912.º e 1906.º da Lei n.º 61/2008. Fê-lo por ter entendido que era inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, a norma de direito transitório fixada pelo artigo 9.º da lei de 2008.
É esta, pois, a questão de constitucionalidade que o Tribunal deve agora resolver.
7. A norma contida no artigo 9.º da Lei n.º 61/2008 é uma norma de direito transitório, que perante a sucessão, no tempo, da lei nova face à lei velha, delimita o âmbito de aplicação temporal de cada uma. Mais especificamente, determina o artigo 9.º que, mesmo após a entrada em vigor da lei nova (a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro) se continue a aplicar, em certas situações, o regime constante da lei velha (fundamentalmente, o decorrente do Decreto-lei n.º 496/77). As situações em que se impõe a sobrevigência do regime velho são, como já vimos, as dos processos pendentes em tribunal. O regime de transição que assim se estabelece é um regime especial, que pretendeu afastar a aplicação do regime geral constante do disposto no nº 2 do artigo 12.º do Código Civil. Com efeito, se não existisse, na lei do divórcio, a “norma transitória” do artigo 9.º, a impor a sobrevigência do regime velho para os processos pendentes em tribunal, valeria – pelo menos quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais – o princípio da aplicação imediata da lei nova, que vinha dispor directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas abstraindo do facto que lhes deram origem (assim, J. Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, 1968, p. 144)
De acordo com a decisão recorrida, a sobrevigência, assim legalmente imposta, do regime velho lesa o princípio da igualdade contido no artigo 13.º da Constituição.
Contudo, tem o Tribunal afirmado, em jurisprudência reiterada, que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, pelo que não será em geral aplicável a fenómenos de sucessão de leis no tempo o disposto no artigo 13.º da CRP. Esta orientação jurisprudencial – afirmada e seguida, entre outros, pelos Acórdãos n.ºs 34/86 (em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., p. 42); 43/88 (ibidem, 11.º vol., p. 565); 309/93 (ibidem, 24.º vol., p. 185) – abrange, também, as próprias normas de direito transitório, já que o princípio que a funda valerá, tanto para o fenómeno geral da sucessão de leis no tempo, quanto para a condição especial daquelas normas que tenham por função específica disciplinar o modo pelo qual se opera a referida sucessão. Como o “poder” de alterar as leis vigentes – e de com isso introduzir diferenças de tratamento entre as pessoas decorrentes da revogação de regimes velhos e da aprovação de regimes novos – é um “poder” inerente à liberdade do legislador do Estado de direito, que, no cumprimento do seu mandato democrático, detém legitimidade constitucional bastante para avaliar as razões de política legislativa que o induzam à modificação da ordem jurídica existente, a competência do legislador para a livre conformação incluirá, não apenas o poder de criar direito novo e de revogar direito velho, mas ainda o poder de decidir como é que, em períodos de transição, se delimitam os âmbitos de aplicação das leis que se sucedem no tempo.
Esta liberdade de conformação das normas de direito transitório, e da escolha dos critérios que delimitam entre si os âmbitos de aplicação temporal da lei velha e da lei nova, se bem que acentuada, conhece no entanto limites. Desde logo, os limites decorrentes do princípio do Estado de direito, e dos valores de segurança jurídica e de protecção da confiança que nele vão inscritos. Conforme tem sido enunciado em jurisprudência constante do Tribunal (e vejam-se, por último, os Acórdãos n.ºs 188/2009 e 153/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) as disciplinas de direito transitório devem ser formuladas de modo a não lesar, sem fundamento bastante, as legítimas expectativas que os cidadãos tenham depositado na continuidade do Direito que, em certo tempo, ordenou a suas acções.
Mas para além de estar submetido ao princípio da protecção da confiança, o direito transitório pode ainda estar subordinado, em certas circunstâncias, ao princípio da proibição do arbítrio, decorrente do n.º 1 do artigo 13.º da CRP. Isto mesmo se deixou logo claro no Acórdão n.º 34/86, atrás citado, onde se disse que “(…) o modo de fixação do tempo de aplicação de uma norma poder(á) brigar com o princípio da igualdade se houve[r] tratamentos desiguais para situações iguais e sincrónicas”. E isto mesmo se repetiu no Acórdão n.º 153/2010, que, julgando norma homóloga à do presente caso (e não tendo decidido pelo juízo de inconstitucionalidade), concluiu que:
(…) o critério escolhido [para a aplicação da lei velha e da lei nova] terá que respeitar não só o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante, assim como também não poderá resultar na criação de desigualdades arbitrárias na aplicação da nova lei, após ela ter entrado em vigor.
E, quanto a este último limite, acrescentou-se ainda:
[.] Quando se diz que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, apenas se abrange as desigualdades resultantes de aplicação de diferentes regimes legais durante a sua respectiva vigência, mas já não quando, após a entrada em vigor duma lei, o legislador restringe a sua aplicação a determinadas situações, mantendo a aplicação da lei antiga, relativamente a outras sem que se vislumbre fundamento razoável para essa distinção.
8. No caso, como vimos, determina o artigo 9.º da Lei n.º 61/2008 a sobrevigência da lei velha quanto aos processos pendentes em tribunal Quer isto dizer que, após a entrada em vigor da lei nova, será em princípio imediatamente aplicável o seu novo regime relativo ao divórcio e ao exercício das responsabilidades parentais, a menos que o caso a que ele se aplique se reporte a processo pendente em tribunal. Para esta situação – e só para ela – valerá o regime velho, onde ainda existia “divórcio litigioso” e “poder paternal”.
Assim sendo, parece claro que a norma sob juízo, apesar de dizer respeito ao “modo de fixação do tempo de aplicação de uma norma”, pode gerar “tratamentos desiguais para situações iguais e sincrónicas”. Fixando-nos agora, apenas, nas questões relevantes para o caso, é bem de ver que as situações iguais serão todas aquelas que se relacionem com o exercício das responsabilidades parentais, mormente por parte de progenitores que não sejam casados e que não vivam em condições análogas às dos cônjuges. O tratamento sincronicamente desigual a que podem estar sujeitas estas situações, naquele plano iguais, é o que resulta do critério pendência do processo em tribunal, dado que – como já se viu – é dele e só dele que depende a lei aplicável: se aquela que regulava, antes, o modo de exercício do “poder paternal”, ou se aquela que impõe, agora, o exercício em conjunto das responsabilidades parentais.
Nestes termos, e sem que se deixe de sustentar que o princípio da igualdade nunca opera diacronicamente, haverá aqui que averiguar se este tratamento desigual para situações iguais e sincrónicas se fundamenta em algum critério que seja perceptível, razoável ou inteligível.
9. A razão de ser perceptível ou inteligível do critério (“processos pendentes em tribunal”), que delimita as situações de sobrevigência da lei antiga – após a entrada em vigor da lei nova – só pode residir, como se disse no Acórdão n.º 153/2010, na necessidade, sentida pelo legislador ordinário, de salvaguardar as expectativas das partes quanto à lei que seria aplicável no momento em que foi requerida a intervenção do tribunal, expectativas essas que terão porventura determinado estratégias processuais a seguir.
Contudo, se esta razão vale para os processos de divórcio em sentido estrito, isto é, para aqueles processos que tenham como objecto, apenas, a dissolução do vínculo conjugal e os seus termos – nomeadamente quanto à prestação de alimentos entre ex-cônjuges ou quanto ao destino da casa de morada de família –, já não vale para aqueles casos em que, como o presente, estejam em causa, não as relações dos cônjuges entre si, mas os termos da regulação das relações entre filhos e progenitores. E isto, por duas razões essenciais:
Em primeiro lugar, porque dificilmente se poderá falar em “expectativas de partes” ou em “estratégias processuais a seguir” quando está em causa a regulação judicial do exercício das responsabilidades parentais ou, como se dizia na vigência da lei velha, a regulação judicial do exercício do poder paternal. Com uma ou outra denominação, a essência da figura não se alterou. O processo de regulação do exercício, seja ele do “poder, seja ele da “responsabilidade” parental, tem apenas como objecto o interesse do menor. Trata-se, por isso, e como bem se sabe, de um processo que visa outra coisa que não solucionar ou compor um qualquer conflito de interesses disponíveis de partes. Nesta medida, falar a este propósito da necessidade de tutelar expectativas e estratégias processuais de partes enquanto razão bastante para diferenciar (entre aquelas situações que estarão submetidas ao regime do exercício do “poder” paternal e aquelas outras que estarão submetidas ao regime do exercício da “responsabilidade parental”) não faz qualquer sentido.
Mas, se as coisas se passam assim no domínio dos processos – de regulação judicial do exercício destes poderes ou responsabilidades – tal só sucede porque a realidade substantiva a que esses mesmos processos se reportam pressupõe valorações de interesse público que vão muito para além de direitos subjectivos ou de interesses disponíveis de quem seja “parte” em processo de divórcio.
A lei nova, como atrás se viu (cfr. supra, ponto 4) pretendeu fundamentalmente uniformizar o regime de exercício do antes chamado “poder paternal”. Esse exercício,
agora reportado às responsabilidades parentais, deverá, em princípio, ser sempre conjunto, quer na constância do matrimónio ou em caso de divórcio, de dissolução da união de facto ou, como acontece na questão dos autos, em caso de progenitores que não sejam nem casados nem unidos de facto. Foi portanto deste modo, ou seja, “aplicando” o paradigma do “exercício conjunto” das responsabilidades parentais a todas as situações, que o legislador da lei nova veio dar concretização ao n.º 5 do artigo 36.º da CRP, que dispõe que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
Entendeu-se, portanto, que o dever fundamental de educação dos filhos, impendente sobre os pais e inscrito na norma constitucional, seria melhor cumprido através do novo paradigma de regulação – que postula o exercício conjunto das responsabilidades parentais como princípio aplicável a todas as situações – do que através da solução antiga, que, quanto ao modo de exercício do poder paternal, estabelecia diferenças acentuadas entre as situações de constância do matrimónio (para as quais se previa o princípio do exercício conjunto), as situações de divórcio (para as quais, na inexistência de acordo, se “atribuía” judicialmente o poder paternal a apenas um dos progenitores) e as situações de inexistência quer de casamento quer de união de facto (para as quais valia a determinação legal de que o poder paternal fosse exercido pelo progenitor que tivesse a guarda do filho).
Este entendimento do legislador, aliás claramente expresso na exposição de motivos constante do projecto de lei apresentado ao Parlamento, vem reforçar a ideia segundo a qual a realidade substantiva de que aqui se trata, reportando-se ao modo de exercício de algo que, constitucionalmente, se configura como um dever fundamental, pressupõe valorações de interesse público que vão muito para além da tutela de direitos ou de expectativas de quem quer que venha a ser “parte” em processo pendente em tribunal. A alteração do conteúdo dos poderes – deveres dos pais em relação aos filhos, operada pela lei nova, é conduzida em função dos superiores interesses destes últimos (ou da representação que o legislador tem quanto à melhor tutela de tais interesses) e não em função de “interesses”, ou de “posições jurídicas” dos pais. Deterão por certo os progenitores o direito a discordar das representações legais e a configurar de outro modo o que seja a melhor tutela dos superiores interesses dos filhos; no entanto, tal direito, expresso em acordos extra-judiciais e exercido longe dos tribunais e dos processos neles pendentes, não confere razão suficiente para que se entenda que, quanto ao modo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, merecem tutela as expectativas das “partes” em processos judiciais de divórcio.
A partir do momento em que o legislador entende que o interesse do menor é melhor prosseguido pelo novo regime, nenhum motivo razoável explica que esse novo regime se não aplique os processos pendentes em tribunal. Fazer depender as desigualdades de tratamento, decorrentes da aplicação da lei velha ou da lei nova, do critério da “pendência processual”, parece ser assim, no exacto sentido do termo, uma decisão “arbitrária”.
IIII – Decisão
Assim, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 13.º
da Constituição, a norma de direito transitório contida no artigo 9.º da Lei
n.º 61/2008, de 31 de Outubro, na parte em que impede a aplicação imediata do novo regime de exercício das responsabilidades parentais a situações em que não tenham sido casados, nem vivam ou tenham vivido em condições análogas às dos cônjuges, os progenitores do menor;
b) Não conceder provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida quanto ao juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Carlos Fernandes Cadilha (vencido pelos fundamentos constantes do acórdão n.º 153/2010) – Gil Galvão (vencido pelos fundamentos constantes do acórdão N.º 153/2010).