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Processo n.º 331/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por sentença homologatória de 28 de Novembro do 2006, proferida pela 1.ª secção do Tribunal de Família e Menores de Braga, nos autos de regulação do exercício do poder paternal com o n.º 407/06.0TMBRG, A., pai da menor B., foi condenado a pagar à mãe desta, C., a título de alimentos devidos à menor, a quantia mensal de €75,00, actualizáveis anualmente e com início em Janeiro de 2008, de acordo com a taxa de inflação divulgada pelo INE mas nunca inferior a 5%.
Em 2 de Setembro de 2009, a mãe da menor apresentou em juízo «pedido de pagamento de prestação alimentar pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social», ao abrigo do disposto na Lei n.º 75/98, de 19 de Dezembro, e Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, alegando, no essencial, factos consubstanciadores dos pressupostos de que depende, nos termos da lei, a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM), gerido por aquele Instituto.
Feitas as diligências de prova julgadas necessárias, foi, em 23 de Março de 2010, proferida sentença que condenou o FGADM a pagar mensalmente a C. a pensão de alimentos relativa à filha menor B., no montante mensal de €92,08, devendo o CDSS «observar o n.º 5 do artigo 4º D.L. 164/99, de 13/5, começando os pagamentos no mês seguinte à notificação do tribunal, ainda que sejam devidos os retroactivos desde o pedido (Setembro de 2009) (…), decidindo-se assim não seguir a uniformização de jurisprudência por se entender que o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 não estará em conformidade com a Constituição da República, nos termos (…) expostos».
O Ministério Público, notificado da sentença, dela interpôs então o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, por, no seu entender, ter havido recusa de aplicação da citada norma legal, na interpretação normativa sufragada, no citado aresto uniformizador, pelo STJ, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 8.º, 24.º, 69.º, 13.º, n.º 2, 63.º, n.º 3, 67.º, n.º 2, alínea c), e 81.º, alínea a), da Constituição.
Admitido o recurso, pelo tribunal recorrido, prosseguiram os autos para alegações, tendo o Ministério Público, junto do Tribunal Constitucional, concluído no sentido de que deverá este Tribunal «julgar inconstitucional, por violação dos arts. 1.º, 8.º, 13.º, 24.º, 63.º [e] 67.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, quando interpretada no sentido de que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, só nasce com a decisão que julgue o incidente do incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal, não abrangendo, porém, quaisquer prestações anteriores (…) e confirmar, em consequência, a decisão recorrida.
Suscita, antes, contudo, a questão prévia da verificação dos pressupostos processuais de que depende o conhecimento do objecto do recurso, fazendo alusão a várias decisões sumárias proferidas neste Tribunal Constitucional, em processos com idêntico objecto, onde se concluiu no sentido, não sufragado pelo Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, de que não havia verdadeira recusa de aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
2. Cumpre, pois, apreciar e decidir, a título prévio, a questão de saber se os autos estão em condições processuais de permitir a formulação de um juízo de mérito de constitucionalidade, tendo por objecto a interpretação normativa fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2009 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
O Tribunal Constitucional, apreciando tal questão em processos com objecto idêntico ao destes autos, tem, na sua maioria, entendido não haver lugar a uma verdadeira recusa de aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade, pelo tribunal recorrido (neste sentido, a decisão sumária n.º 121/10 e, reiterando-a, as decisões sumárias nºs. 162/10, 167/10, 182/10, 183/10, 184/10, 185/10, 186/10, 187/10, 188/10, 190/10, 191/10, 216/10, 221/10, 222/10, 224/10, 232/10, 264/10, 306/10 e 418/10, e, bem assim, o Acórdão n.º 370/10).
É a seguinte a argumentação expendida na decisão sumária n.º 121/10 e secundada pelas decisões que, debruçando-se sobre mesmo objecto, se lhe seguiram:
«Resulta, na verdade, da fundamentação da sentença recorrida que esta não acolhe a interpretação constante do Acórdão n.º 12/2009 apenas por entender que a mesma é inconstitucional. Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo com as regras aplicáveis não é essa, mas sim a que, a final, entendeu seguir. De facto, quando na sentença se elencam quatro motivos de discordância da interpretação seguida no acórdão de uniformização, as primeiras razões invocadas prendem-se com a interpretação da norma no plano do direito ordinário (que não cabe a este Tribunal Constitucional sindicar); e só por último e acrescenta um motivo de inconstitucionalidade.
Ora, a escolha, entre duas interpretações, de uma delas, com o concomitante afastamento da outra interpretação, não é uma verdadeira recusa de aplicação de norma. E não o é mesmo quando a interpretação afastada o foi (também) por invocadas razões de inconstitucionalidade.
O facto de a interpretação que foi afastada pelo tribunal recorrido ser aquela que foi fixada em acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não altera os dados da questão. Só assim seria se tal interpretação se impusesse como obrigatória para o tribunal recorrido. Só então o mesmo estaria habilitado a exercer o poder-dever que o artigo 204.º da Constituição lhe confere, como último recurso para evitar a eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, dessa interpretação reputada inconstitucional.
Mas não tem essa eficácia a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, apesar do valor ‘reforçado’, que implica que a decisão judicial que a contrarie é sempre susceptível de recurso (…).»
Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente sublinhado, é, com efeito, irrelevante, para o efeito de legitimar a via de recurso prevista no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, a recusa de aplicação de dada interpretação normativa que se funda em razões que, nuclearmente, se prendem com o facto de se considerar não ser esse o sentido decisivo da lei, de acordo com os critérios de interpretação legalmente definidos (artigo 9.º do Código Civil), ainda que para tal demonstração se recorra a argumentos de ordem constitucional (cf., neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 652/09).
Afigurando-se ser este o caso, pelas razões aduzidas nas mencionadas decisões e acima transcritas, que aqui se reiteram, cumpre, sem necessidade de mais considerações, decidir pelo não conhecimento do objecto do presente recurso, sendo certo que, conforme também se sustenta em tais decisões, é igualmente irrelevante que a interpretação por esses motivos afastada tenha sido fixada em acórdão de uniformização de jurisprudência, atento o seu carácter não obrigatório.
3. Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do presente recurso.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Carlos Fernandes Cadilha – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.