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Processo n.º 514/2009
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., Ldª. apresentou, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, reclamação do acto que ordenou a penhora de créditos, praticado pelo órgão de execução fiscal no processo de execução fiscal n.º 2704200701014617 do Serviço de Finanças de Tondela. Invocou, como fundamento da referida reclamação, a ilegalidade do prosseguimento do processo de execução fiscal, designadamente do acto de ordenação da penhora de créditos, sem que ainda tivesse sido decidida a suspensão do mesmo processo, na pendência de reclamações anteriores à presente e deduzidas nos termos do artigo 278.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), e nas quais fora requerida a atribuição de carácter urgente com efeito suspensivo. Alegou ainda que, se o tribunal conhecer a presente reclamação depois de realizada a penhora e a venda de bens à reclamante, tal facto causará enorme prejuízo irreparável para esta, vendo-se impossibilitada de manter a sua actividade, tendo, portanto, como consequência inevitável a sua insolvência.
Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, proferida em 28 de Maio de 2008, foi declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Inconformada, veio a reclamante interpor recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte que, por acórdão proferido em 16 de Outubro de 2008, decidiu anular a decisão recorrida por insuficiência da matéria de facto e ordenar a baixa dos autos à primeira instância para que, ampliando a matéria de facto nos termos sugeridos, decida depois em conformidade.
Tendo os autos baixado à primeira instância, foi então proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, a 2 de Março de 2009, sentença a julgar inverificado o requisito de prejuízo irreparável e a ordenar a baixa do processo ao órgão de execução fiscal, a fim de o processo de execução fiscal prosseguir os seus termos e a reclamação subir a final, nos termos do artigo 278.º, n.º 1 do CPPT.
Inconformada, veio a reclamante interpor recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte que, por acórdão proferido em 14 de Maio de 2009, lhe negou provimento.
Notificada dessa decisão, veio a reclamante interpor o presente recurso de constitucionalidade.
No requerimento de interposição do recurso, a recorrente indica que a norma cuja conformidade com a Constituição pretende ver apreciada é a do artigo 278.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, na dimensão normativa perfilhada pelo acórdão recorrido, segundo a qual a reclamação apresentada pelo recorrente só poderá ser conhecida após a ocorrência de um acto lesivo, determinando que a utilidade da referida reclamação não pode deixar de se relacionar com a irreparabilidade do prejuízo.
Entende a recorrente que a referida norma padece, desde logo, de inconstitucionalidade orgânica, pelo facto de se violar o disposto na alínea c) do artigo 51.º da Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, norma que autoriza o Governo a aprovar o CPPT «no respeito pela compatibilização das suas normas com as da lei geral tributária e regulamentação das disposições da referida lei que desta careçam», motivo pelo qual a norma em apreço extravasa o âmbito da competência do Governo nesta matéria, em que actua no quadro da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP), porquanto o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal de todos os actos lesivos vem afirmado pelos artigos 95.º, n.º 1 e n.º 2, alínea j) e 103.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária.
Além de padecer do vício de inconstitucionalidade orgânica, a recorrente entende que a norma em questão viola os artigos 26.º, n.º 1, 103.º, n.º 3 e 268.º, n.º 4, todos da Constituição.
Já com os autos no Tribunal Constitucional, a Relatora proferiu o seguinte despacho:
Para alegações, com a seguinte advertência:
Restringindo-se a competência do Tribunal Constitucional ao conhecimento de questão de constitucionalidade normativa (art. 280.º, n.º 6, da Constituição), será necessariamente alheia ao âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal a questão de saber como deverão ser qualificados, in casu, os prejuízos que a recorrente tenha eventualmente sofrido.
Veio então a recorrente apresentar alegações, tendo concluído do seguinte modo:
1. O douto Acórdão recorrido faz aplicação da norma contida no art. 278° do Código de Procedimento e Processo Tributário na dimensão normativa segundo a qual a reclamação apresentada pela recorrente só poderá ser conhecida após a ocorrência de um acto lesivo, determinando que utilidade da referida reclamação não pode deixar de se relacionar com a irreparabilidade do prejuízo;
2. A dimensão normativa encontrada e aplicada e referida no ponto anterior padece de inconstitucionalidade orgânica e material;
3. A sentença recorrida aplica uma dimensão normativa do artigo 278° do CPC que é inconstitucional porquanto a presente reclamação perderia qualquer utilidade caso não subisse imediatamente e com efeito suspensivo.
4. A inconstitucionalidade orgânica da norma extraída do art. 278° do CPPT, na dimensão normativa aplicada, resulta da violação do disposto na Lei n° 87-B/98, de 31 de Dezembro, que autoriza o Governo a aprovar o CPPT «no respeito pela compatibilização das suas normas com as da lei geral tributária e regulamentação das disposições da referida lei que desta careçam» (cfr. art. 51°, al. c) da Lei n° 87-B/98, de 31/12).
5. O direito de reclamação para o juiz da execução fiscal de todos os actos lesivos vem afirmado pelos arts. 95° n° 1 e n° 2, al. j) e n° 103°, n° 2 da Lei Geral Tributária.
6. Limitar a reclamação apenas aos casos em que existe prejuízo irreparável, como limita a dimensão normativa do art. 278.° do CPPT aplicada pelo Acórdão recorrido, implica a falta de compatibilização dessa norma com as da lei geral tributária, o que extravasa o âmbito da respectiva lei de autorização legislativa e, por consequência, o âmbito da competência do Governo nesta matéria, no quadro da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (art. 165°, n° 1, al. i) da CRP).
7. De outro lado, a inconstitucionalidade material dessa dimensão normativa extraída do art. 278° do CPPT resulta da violação do disposto nos arts. 26°, n°1 (direitos ao bom nome e reputação, à imagem, e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação), 103°, n°3 (ninguém pode ser obrigado a pagar impostos cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei) e 268°, n°4 (garantia aos administrados de tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos), todos da Constituição.
8. A decisão de ordenar a penhora de créditos da recorrente sem que previamente o Tribunal se tenha pronunciado sobre o carácter urgente e o efeito suspensivo expressamente requeridos em duas reclamações apresentadas no âmbito do mesmo processo de execução fiscal em que tal penhora foi ordenada, assume natureza decisória e atinge directa e imediatamente a esfera jurídica da ora recorrente, envolvendo de per si a definição autoritária de uma situação jurídica, pelo que constitui acto reclamável nos termos do art. 276° e ss do CPPT.
9. Em prol da própria unidade do sistema jurídico, deve atender-se à utilidade da decisão a proferir na reclamação para decidir a subida imediata ou deferida da reclamação, devendo admitir-se a subida imediata das reclamações sempre que, sem ela, as mesmas percam a sua utilidade, independentemente da referida utilidade estar directamente relacionada com a irreparabilidade de um qualquer prejuízo.
Contra-alegou a recorrida, tendo concluído que:
1. O acórdão em recurso não adoptou a dimensão normativa do art. 278.°, 3 do C.P.P.T. que a Recorrente lhe atribui.
2. Na verdade, ele jamais pretendeu que apenas devem subir as reclamações cuja inutilidade implique um prejuízo irreparável.
3. O que a decisão recorrida estabelece é uma relação de dependência estrita entre inutilidade e irreparabilidade do prejuízo.
4. Para o Tribunal a quo, uma decisão inútil provoca sempre prejuízo irreparável ao interessado, consubstanciado na ineficácia e vacuidade da Própria decisão.
5. E, por assim ser, ele entende que se impõe a imediata subida de todas as reclamações cuja retenção as torne absolutamente ineficazes uma vez que a ela se encontra inerentemente associado um efectivo dano para o respectivo reclamante.
6. Esta tese não corresponde a qualquer violação do texto constitucional, designadamente dos invocados arts. 26.°, 103.°, 3 e 268.°, 4 da CRP, antes garante absoluta e completa tutela jurisdicional a todos em casos em que se antecipe a eventual inutilidade da lide.
7. Sucede apenas que a aplicação deste critério normativo ao caso concreto implica a realização de um juízo prévio sobre a utilidade futura da reclamação.
8. Esse juízo prévio, por uma estranha reviravolta lógica, apela novamente ao conceito de prejuízo irreparável, conceito este que deve ser assumido e entendido de forma absolutamente distinta daquela que se deixou mencionada na anterior conclusão quarta.
9. Neste novo plano, o prejuízo irreparável não está efectivamente relacionado com a inocuidade da decisão, mas sim com a lesão definitiva e irreversível do interesse que pretendia salvaguardar.
10. A inutilidade e a irreparabilidade são, portanto e para este efeito, conceitos complementares e indissociáveis.
11. Assim sendo, não podem existir reclamações inúteis que não estejam associadas a um prejuízo irreparável ao contrário do que pretende a Recorrente.
12. O seu decaimento na instância precedente resultou , portanto e unicamente, de uma avaliação desfavorável da sua pretensão relativamente à futura inutilidade da reclamação.
13. A justeza desta avaliação e a correcção do juízo subsuntivo subsequente não é sindicável pelo Tribunal Constitucional, a quem está vedada a apreciação da decisão judicial em concreto.
14. Em consequência, o presente recurso tem que soçobrar, com as legais consequências.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir
II – Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
2. Apesar de, quer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade quer nas suas alegações, a recorrente se referir à interpretação normativa do artigo 278.º do CPPT, é manifesto que a interpretação normativa questionada se reporta apenas ao n.º 3 desse preceito, interpretado no sentido de que, em processo de execução fiscal, só haverá subida imediata da reclamação [dos actos do órgão de execução] quando, sem aquela, ocorram para o reclamante prejuízos irreparáveis que não sejam os inerentes a qualquer execução.
Assim, é relativamente a essa dimensão normativa que o Tribunal Constitucional fará o seu juízo.
Questão de constitucionalidade
3. Sobre a dimensão normativa atribuída na decisão recorrida ao n.º 3 do artigo 278.º do CPPT, no sentido de que, em processo de execução fiscal, só haverá subida imediata da reclamação quando, sem aquela, ocorram prejuízos irreparáveis que não sejam os inerentes a qualquer execução, já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 338/2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que a não julgou inconstitucional.
Nesse aresto, o Tribunal fundamentou o seu juízo apreciando todos os fundamentos invocados pela recorrente no presente recurso de constitucionalidade.
3.1. Relativamente à alegada inconstitucionalidade orgânica pelo facto de se violar o disposto na alínea c) do artigo 51.º da Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, entendeu o Tribunal que a norma sub judicio, por se limitar a disciplinar os termos da impugnação – diferindo a apreciação daqueles que respeitem à fase anterior à penhora para o momento em que essa fase processual esteja concluída – em nada contraria o mandato de compatibilização das soluções do CPPT com as disposições da Lei Geral Tributária, pelo que concluiu, quanto a este ponto, pela falta de fundamento do recurso .
3.2. No que diz respeito à alegada violação do disposto no n.º 4 do artigo 268.º
da Constituição, entendeu o Tribunal, no referido aresto, que, encontrando o regime de subida das reclamações fundamento constitucionalmente legitimado pelo interesse
público, que ao legislador também é imposto proteger, de celeridade do processo de realização coerciva da dívida, e não constituindo uma barreira ou constrangimento excessivos ao direito dos contribuintes a verem apreciadas em sede contenciosa as reclamações que deduzam dos actos praticados pelos órgãos de execução fiscal, não se considera violada a garantia de acesso aos tribunais para impugnação de actos administrativos lesivos.
3.3. Na parte em que apreciou a alegada violação do disposto no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, entendeu o Tribunal ser tal arguição manifestamente destituída de fundamento, uma vez que a norma em questão, respeitando apenas ao momento de subida da reclamação e não ao seu conteúdo, não veda ao executado a possibilidade de discutir seja o que for.
3.4. Por último, no que respeita à violação dos direitos ao bom nome e reputação, à imagem e à protecção contra quaisquer formas de discriminação, a todos reconhecidos pelo n.º 1 do artigo 26.º da Constituição, o Tribunal Constitucional, no referido aresto, foi do entendimento de que o conteúdo normativo em questão é neutro relativamente à verificação de supostos efeitos lesivos, por inexistir qualquer nexo de causalidade necessária entre o diferimento da subida da reclamação e eventuais lesões de direitos fundamentais pessoais, acrescentando que, em qualquer caso, a protecção do bom nome não exclui o direito do credor de instaurar um processo executivo com vista à cobrança do crédito a que o título o habilita. Acrescentou ainda o Tribunal que, nesses casos, a compatibilização ou concordância prática entre os direitos em conflito se faria sempre através dos meios judiciais de reacção contra possíveis pretensões ilegais dos credores, eventualmente completados por indemnização de danos decorrentes de actuações abusivas ou manifestamente imprudentes.
4. Não oferecendo a recorrente fundamentos adicionais relativamente àqueles que já foram apreciados pelo Tribunal Constitucional, nem se vislumbrando que outros possa haver, entende-se ser de manter o já decidido no Acórdão nº 338/2009.
III – Decisão
5. Nestes termos, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 278.º do CPPT, quando interpretado no sentido de que, em processo de execução fiscal, só haverá subida imediata da reclamação quando, sem aquela, ocorram para o reclamante prejuízos irreparáveis que não sejam os inerentes a qualquer execução;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.