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Processo n.º 30/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A 28 de Outubro de 2009 foi A. (recorrente nos presentes autos) absolvido, por sentença da 2ª Vara Criminal de Lisboa, na prática de um crime de burla qualificada.
Desta decisão interpuseram B. e C., assistentes no processo (e recorridos nos presentes autos), recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 24 de Junho de 2009, revogou a decisão recorrida, condenando A., como autor material do referido crime, na pena de 2 anos de prisão. A execução da pena foi declarada suspensa por dois anos.
2. A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Por despacho datado de 21 de Setembro não foi o recurso admitido, “nos termos do disposto no artigo 400.º, nº 1 , alínea e) e nºs 2 e 3 (a contrario), do Código de Processo Penal”.
Reclamou então A. para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela admissibilidade do recurso com fundamento em dois argumentos essenciais: primeiro, que a decisão reclamada fizera errada interpretação do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 400.º do CPP (e, em geral, do disposto no artigo 399.,º do mesmo Código), uma vez que lhe fora aplicada pena privativa de liberdade; segundo, que tal interpretação, para além de errada, seria inconstitucional, por lesar as garantias de defesa consagrada no nº 1 do artigo 32.º da CRP.
3. A 18 de Novembro foi a reclamação indeferida pelo Presidente do Supremo nos seguintes termos:
(…)
Em processo penal, para que seja admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é necessário que se verifique alguma das situações previstas no art. 432.° do CPP.
Assim, impõe-se desde logo fazer apelo à alínea b) do n.° 1 do referido art. 432.°, onde se determina que se recorre para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400.°” E deste preceito destaca-se a alínea e) do seu n.° 1, na redacção introduzida pela Lei n.° 48/2007, de 29/08, que estabelece serem irrecorríveis “os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade”.
Independentemente de uma série de questões de ordem lógica e sistémica que a disposição suscita, que dificultam a interpretação, no caso, o acórdão questionado aplicou pena de prisão suspensa na sua execução.
Assim sendo, estamos perante um acórdão que aplicou uma pena de substituição de pena de prisão, isto é uma pena não privativa da liberdade. E, quer pela definição, quer natureza e pelo modo de execução, a pena de substituição (quer seja a substituição por multa, suspensão da execução ou outra pena não privativa da liberdade) não constitui, como é óbvio, pena privativa da liberdade.
Aliás o conceito tem correspondência com a letra do art. 43.º, n.° 1, do CP quando refere, «substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável».
Deste modo, face a esta delimitação de pressupostos, não é admissível recurso para este Supremo Tribunal, nos termos do art. 400.°, n.° 1, alínea e), do CPP.
O reclamante refere que a interpretação dada pelo despacho à referida alínea e) do n.° 1 do art. 400.°, e em geral ao art. 399.°, do CPP, briga com o disposto no art. 32.°, n.° 1, da CRP.
Não há, porém, que conhecer da questão suscitada no que concerne à norma do art. 399.° do CPP, uma vez que nem o despacho que não admitiu o recurso nem a decisão da reclamação se basearam na interpretação ou aplicação desta.
No respeitante à alegação de que a interpretação do art. 400.°, n.° 1, alínea e), do CPP, acolhida, viola o art. 32.°, n.º 1, da Constituição, cabe dizer que as garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem um terceiro grau de jurisdição, por a Constituição, no referido art. 32.°, se bastar com um segundo grau, já concretizado no caso dos autos, aquando do julgamento pela Relação, como tem sido uniformemente decidido pelo Tribunal Constitucional (cf., v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 189/2001 e 377/2003 de 3 de Maio de 2001 e de 15 de Julho de 2003, respectivamente).
(…)
Desta decisão interpôs A. o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. No requerimento de interposição pedia que o Tribunal julgasse a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, nº 1 da CRP, da interpretação dada, pelo tribunal a quo, à norma contida na alínea e) do nº 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, uma vez que lhe fora aplicada pena privativa de liberdade, por “não estar garantido que a suspensão [da execução da pena de prisão] não venha a ser revogada”.
Admitido o recurso, foi proferido, no Tribunal Constitucional, o seguinte despacho:
Para alegações, tendo em conta que o objecto do recurso – tal como é recortado pelo respectivo requerimento de interposição, em conformidade com a norma que foi aplicada pela decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo – se circunscreve ao disposto no nº 1, alínea e), do artigo 400º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual uma pena suspensa deve ser considerada uma pena não privativa da liberdade.
4. Alegou o recorrente, repetindo essencialmente o que já dissera no requerimento de interposição do recurso e concluindo do seguinte modo.
A interpretação que no despacho em recurso foi dada à al. e) do artigo 400 do Código de Processo Penal não assegura os meios de defesa a que se refere o artigo 32, n.° 1 da Constituição.
Pela al. e), em questão, o acórdão da Relação que aplica pena privativa da liberdade, é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
A pena de prisão, mesmo que suspensa, não deixa de ser uma pena privativa da liberdade.
Até porque a suspensão, a todo o tempo, pode ser revogada.
Ainda que suspensa e independentemente de a suspensão vir a ser revogada, a pena de prisão afecta gravemente a vida do condenado, não devendo, por isso, ser colocada no mesmo plano das outras penas, e, daí que, em relação a ela, deva haver mais garantias de defesa, nomeadamente na matéria dos recursos.
Manifestamente, o que se pretendeu foi afastar do recurso para o Supremo, na al. e), [foram] as outras penas (as tais bagatelas penais), como a pena de multa, a pena de trabalhos a favor da comunidade, e outras ainda.
Se o legislador quisesse incluir no preceito, também a pena de prisão com execução suspensa, naturalmente que escolheria outra redacção onde isso ficasse claramente afirmado, de modo a evitar polémicas, quanto a questões fundamentais para a vida e segurança das pessoas.
E tanto mais naqueles casos, como o dos autos, em que há duas decisões não conformes, podendo colocar-se a questão da contradição entre a al. e) e a al. f) seguintes, por um lado, e com a al. c) do artigo 432, também do CPP, por outro lado.
Contra-alegaram os recorridos B. e C., que, em conclusão, disseram:
A norma constante da e) do n° 1 do art° 400° do CPP ao condicionar o acesso do arguido ao STJ face à gravidade do crime não afronta qualquer preceito constitucional.
A suspensão da execução de pena de prisão é uma pena de substituição que se assume como pena autónoma, não é uma pena não privativa de liberdade.
A tutela constitucional não exige um duplo grau de recurso mas apenas um duplo grau de jurisdição.
Não está ferida de inconstitucionalidade a interpretação das instâncias segundo a qual não é admissível recurso para o STJ de um Acórdão da Relação que aplicou uma pena de prisão cuja execução foi suspensa.
Contra-alegou também o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional que, depois de fazer uma análise das nova redacção dada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, à alínea e) do nº 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, pugnou pelo não provimento do recurso, sintetizando nos seguintes termos:
Não é consensual a interpretação restritiva da alínea e) do nº 1 do art.° 400º do CPP, segundo a qual a mesma se deve conjugar com a alínea c) do n° 1 do art.° 432° do mesmo CPP, no sentido de que só os acórdãos, proferidos em recurso, pelas relações, que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
De qualquer forma, esta questão não é central, tendo em conta os argumentos aduzidos no despacho recorrido, bem como o despacho da Exma. Sra. Conselheira Relatora a delimitar o objecto do presente recurso.
No nosso entender, decorre da análise do Código Penal e do Código do Processo Penal, que a suspensão de execução da prisão é considerada uma pena de substituição, executada em vez da pena principal, de prisão.
Como tal, constituirá uma pena autónoma, que não implica, de imediato, a privação de liberdade, a qual poderá, até, nunca ocorrer.
O cumprimento da pena de prisão fixada na decisão condenatória está dependente da revogação da suspensão decretada, que constitui apenas uma das faculdades concedidas ao tribunal pelo artigo 55° do CPP para o caso de, durante o período da suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos, ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam ser alcançadas (art.° 56 do CPP).
No entanto, essa revogação não é automática, estando, aliás, rodeada da adopção de especiais cautelas, designadamente, decorrentes do respeito pelo princípio do contraditório.
Pelo que, no caso dos autos, a perspectiva do arguido vir a cumprir a pena de prisão cuja execução foi suspensa, não só é remota, como será sempre precedida da sua audição, conferindo-se, ainda, ao condenado, a efectiva possibilidade de exercício do direito ao recurso em relação à decisão revogatória.
Assim e porque o Tribunal Constitucional já se pronunciou por várias vezes, quanto à não inconstitucionalidade das normas que não admitem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos condenatórios das Relações que revogaram sentenças absolutórias da 1ª instância, afigura-se, não afrontar o direito ao recurso consagrado no n° 1 do artigo 32° da CRP, a interpretação da norma da alínea e) do n° 1 do artigo 400º do CPP, efectuada pelo despacho recorrido, segundo a qual uma pena de prisão suspensa na sua execução, não é privativa da liberdade.
Tudo visto, cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. A Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, veio alterar o Código de Processo Penal. De acordo com a exposição de motivos constante de proposta de lei apresentada à Assembleia da República, terá pretendido antes do mais o legislador, “tendo em conta que o Processo Penal é Direito Constitucional aplicado”, conciliar a protecção da vítima e o desígnio de eficácia do processo com as garantias de defesa, “procurando dar cumprimento ao nº 2 do artigo 32.º da Constituição, que associa a presunção de inocência à celeridade de julgamento”.
Esta intenção geral repercutiu-se no conjunto de alterações introduzidas em sede de recursos. Sem esquecer que o direito ao recurso constitui uma garantia de defesa, o legislador terá aqui procurado – ainda de acordo com as palavras da proposta de lei – subordinar o exercício de tal direito “a um desígnio de celeridade associada à presunção de inocência e à descoberta da verdade material”. Assim, a nova redacção dada ao artigo 400.º do CPP ( “Decisões que não admitem recurso”), toda ela inspirada pela intenção de “restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal [substituindo-se], no artigo 400.º, a previsão de limites máximos superiores a 5 e a 8 anos de prisão por uma referência a penas concretas com essa medida”.
É neste contexto que merece ser compreendida a actual redacção da alínea e) do nº 1 do referido artigo 400.º do Código.
Antes desta nova redacção, introduzida pela reforma de 2007, era o seguinte, o teor do preceito:
1 – Não é admissível recurso (.)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pela relações, em processo crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, nº 3.
Após a entrada em vigor da Lei nº nº 48/2007, de 29 de Agosto, a redacção é a seguinte:
1 – Não é admissível recurso (.)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade.”
6. Sustenta o recorrente que a interpretação acolhida pela decisão recorrida, segundo a qual a pena suspensa é uma pena não privativa de liberdade (e como tal, nos termos da actual redacção da alínea e) do nº 1 do artigo 400.º do CPP, irrecorrível para o STJ o acórdão da relação que declare a suspensão da execução da pena de prisão, ainda que seja proferido em recurso de decisão absolutória de 1ª instância), lesa as garantias de defesa consagradas no nº 1 do artigo 32.º da CRP.
São fundamentalmente dois os argumentos que sustentam a tese da inconstitucionalidade.
O primeiro é de ordem conceitual. De acordo com o recorrente, a pena suspensa é ainda e sempre uma pena privativa de liberdade. E isto porque, se dela não decorre uma privação actual [da mesma liberdade], o facto de a suspensão poder ser revogada a todo o tempo (artigo 56.º do Código Penal), determinando a revogação o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, faz com que haja aqui, sempre, uma privação potencial da liberdade. Por este motivo, diz-se, não é certo que a “pena suspensa” possa ser concebida como se fosse uma verdadeira alternativa à pena de prisão.
O segundo argumento é de ordem sistémica. Ainda de acordo com o recorrente não faz sentido, sob o ponto de vista do sistema, que se leia a alínea e) do nº 1 do artigo 400.º do CPP de modo tal que admita recurso para o Supremo a decisão condenatória, proferida pela relação, que censure toda e qualquer pequena e média criminalidade (que condene, por exemplo, em uma pena de seis meses), e já não seja recorrível a decisão da relação que declare a suspensão de execução de pena, ainda que por cinco anos (artigo 50º, nº 1 do Código Penal). O desequilíbrio sistémico estaria aqui: afinal de contas, os condenados em seis meses de prisão teriam sempre direito ao reexame da sua causa em terceiro grau de jurisdição; enquanto o não teriam casos de maior merecimento penal – como os condenados a cinco anos, mas com declaração de suspensão de execução da pena.
7. Deve no entanto dizer-se que não cabe ao Tribunal Constitucional, nem tomar partido sobre controvérsias relativas à melhor interpretação do direito ordinário (sem prejuízo da aplicação do princípio da interpretação conforme à Constituição), nem corrigir os, ou pronunciar-se sobre, eventuais “desequilíbrios sistémicos” de que padeça a legislação comum. Ao Tribunal cabe tão somente, como bem se sabe, emitir juízos de inconstitucionalidade naqueles casos em que o legislador tenha infringido – para usar as palavras do nº 1 do artigo 277.º da CRP – o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. Ora, no caso presente, não parece que tal ocorra.
Não estando em causa, pelos motivos já expostos, a questão de saber como deve qualificar-se a “pena suspensa”, o problema de constitucionalidade que agora é colocado acaba por reconduzir-se a um único tema: o de saber se a Constituição proíbe que, em processo penal, se não admitam recursos de decisões condenatórias da relação, que tenham revogado (como sucedeu in casu) anteriores decisões absolutórias proferidas em 1ª instância. Ora, é claríssima a jurisprudência constitucional sobre o tema. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão nº 49/2003, e se confirmou nos Acórdãos nºs 255/2005, 487/2006 e 682/2006 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o direito ao recurso que, nos termos do nº 1 do artigo 32.º da CRP, integra as garantias de defesa do arguido constitucionalmente tuteladas, coincide, pelos seus fundamentos, com a garantia de um duplo grau de jurisdição, ou seja, com a garantia de que a causa seja reexaminada por um tribunal superior, perante o qual tenha o arguido a possibilidade de apresentar de novo a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável. Por outras palavras, não decorre da Constituição a imposição, em processo penal, do esgotamento de todas as instâncias que a lei preveja. Ao legislador é portanto lícito determinar a irrecorribilidade das decisões da relação que, em recurso de decisões absolutórias proferidas em 1ª instância, condenem o arguido, desde que tal determinação se não apresente como algo manifestamente desproporcionado ou lesivo de quaisquer outros princípios constitucionais.
Toda a jurisprudência constitucional que acima se mencionou foi proferida a propósito da anterior redacção da alínea e) do nº 1 do artigo 400º. Do CPP. Nada obsta, porém, a que os seus fundamentos mantenham toda a validade, quando aplicados à versão do mesmo preceito introduzida pela reforma de 2007.
Independentemente das questões lógicas ou sistémicas que a nova disposição suscite – questões que, como já se disse, não cabe ao Tribunal resolver – deve salientar-se, quanto à particular dimensão interpretativa em juízo no caso concreto, que, em casos de revogação da decisão de suspensão da execução da pena (artigo 55.ºe e 56.º do Código Penal), o “sistema” não deixa de garantir ao arguido defesa adequada, em que se inclui o direito ao recurso do despacho revogatório.
III – Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea e) do nº 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a pena suspensa não é uma pena privativa de liberdade;
b) Consequentemente, não conceder provimento ao recurso
c) Condenar o recorrente em custas, fixando-se em vinte e cinco (25) unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.