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Processo n.º 482/2010
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O Supremo Tribunal de Justiça, mediante acórdão datado de 27 de Maio de 2010, negou provimento ao recurso de revista que fora interposto pela executada A. – e outras executadas – no âmbito dos embargos deduzidos à acção executiva n.º 69-B/94, que lhe foi instaurada pela exequente Sociedade B., Lda., pendente no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo.
A referida executada interpôs então recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), requerendo:
«[...] Não se conformando com o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente na parte em declarou improcedente os vícios de inconstitucionalidade suscitados,
Vem do mesmo INTERPÔR RECURSO para o Tribunal Constitucional, a fim de que este Alto Tribunal declare a inconstitucionalidade,
Da norma extraída pelas instancias, designadamente pelo Tribunal “a quo” - tal como anteriormente havia sucedido no tribunal da relação e antes ainda pelo tribunal de 1ª instância -, nos termos da qual e da conjugação do disposto no art. 359º do Cod. Proc. Civil na sua anterior versão, com o art. 57º do Cod. Proc. Civil, - o que vem sendo generalizada nas instâncias – e em casos como os descritos nos autos, tais normativos implicam a legitimidade substantiva das Embargantes/recorrentes para serem executadas e responsabilizadas em primeira via pelos eventuais prejuízos, que terceira pessoa/entidade, terá causado à exequente, padece de Inconstitucionalidade por violação dos Princípios da Proporcionalidade, da Confiança e ainda da protecção à propriedade privada das mesmas, consagrados no art. 2º, art. l8º nº 2, art. 20º e art. 62º nº 1 da Constituição.
Tal pretendida consequência, alegadamente retirada do disposto nos arts. 359º do CPC, na sua versão anterior, e do disposto no actual art. 57º do CPC, viola frontalmente o disposto nos arts. 62º nº 1 da Constituição - na medida em que se permite que o património dos recorrentes seja apreendido e sirva para o pagamento de dívidas de terceira pessoa –, lido conjugadamente com o principio da proporcionalidade e, até com o principio da confiança, que se extraem quer do art. 2º, quer do art. l8º nº 2, quer até do próprio art. 20º da Lei Constitucional.
E tornar a Embargante/recorrente, tal como “tutti quanti” se encontrem abstractamente em tal posição – fora do instituto da Fiança, do Aval cambiário, da Sub-rogação Legal, ou fora das especificas obrigações solidárias - obrigada ao pagamento da indemnização resultante de prejuízos causados por outros, é uma consequência excessiva, desproporcional e materialmente tão injusta quanto inadmissível para a nossa consciência jurídica, fundada na ideia do Estado de Direito Democrático.
Desde logo porque no Principio da Confiança, “está, entre o mais, postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade da ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica o mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas.
Por isso, a normação que, por sua natureza obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e de segurança que as pessoas, a comunidade e o Direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de Direito Democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica...” - in Ac. TC nº 303/90 (Acórdãos Vol. 17, págs.87- 88).
[...]».
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso com os seguintes fundamentos:
“Nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, é requisito essencial do seu conhecimento que a aplicação da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é questionada integre a ratio decidendi do aresto recorrido.
Ora, diversamente do alegado pela Recorrente, o tribunal a quo não interpretou os artigos 359.º, n.º 1, e 57.º, do Código de Processo Civil (na redacção imediatamente anterior à resultante da Reforma de 1995-1996) no sentido de que os meros intervenientes principais podem ser executados pelos eventuais prejuízos causados por terceiros à Exequente.
A Recorrente deduziu embargos de executado, excepcionando a sua ilegitimidade processual, com fundamento na falta de título executivo onde figurasse como devedora, relativamente às obrigações exequendas de entrega de um determinado posto de abastecimento de combustíveis e de pagamento de uma indemnização relativa aos prejuízos decorrentes da impossibilidade de exploração directa desse posto até à efectiva entrega.
Tal excepção dilatória foi julgada improcedente logo no despacho-saneador, tendo sido então entendido que a Recorrente se encontrava a ser executada no seu património ao abrigo do disposto nos artigos 359.º, n.º 1, e 57.º, do Código de Processo Civil (na redacção imediatamente anterior à resultante da Reforma de 1995-1996), isto é, em virtude de ter intervindo ao lado do Réu, a título de intervenção principal provocada, no âmbito da acção declarativa de condenação em que se formou a sentença em que se funda a execução (fls. 60-62).
A Recorrente agravou desta decisão mas o Tribunal da Relação de Guimarães confirmou-a mediante acórdão, insusceptível de recurso ordinário, datado de 22 de Fevereiro de 2007 (fls. 1291-1295).
O mesmo Tribunal da Relação de Guimarães, desta feita mediante acórdão datado de 7 de Outubro de 2009, julgou também improcedente o recurso de apelação interposto pela mesma embargante da sentença que julgou totalmente improcedentes os embargos de executado.
No âmbito desta apelação, o Tribunal da Relação de Guimarães relembrou que a intervenção principal da embargante na acção declarativa foi requerida e admitida com fundamento no facto da mesma ser detentora do posto de abastecimento em causa e, na parte respeitante ao julgamento da matéria de facto, considerou assente que a embargante – juntamente com outros co-executados – ocupou e fruiu o referido posto de abastecimento, e que tinha sido instada a entregá-lo à exequente (fls. 1632 e 1633).
A embargante – e ora recorrente – não se conformou com o resultado da apelação e interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
No âmbito da revista, o tribunal a quo conheceu do mérito nos seguintes termos, na parte que ora releva:
«[...]
Mais uma vez inconformadas as executadas A. e C. (...) levantam as seguintes questões:
(...)
c) A factualidade constante da alínea G) não foi invocada pela exequente nem pelos executados, pelo que não podia ser objecto de cogitação pelo tribunal-
d) O caso julgado operado sobre a sentença exequenda apenas obrigava as recorrentes no tocante à propriedade sobre o imóvel reclamado naquela acção executiva-
e) A responsabilização das recorrentes no pedido exequendo constitui um abuso de direito, nomeadamente, na modalidade venire contra factum proprium-
(...)
Mas antes de mais há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por provada e que é a seguinte:
(...)
E) Após a construção do posto indicado em A) (levada a efeito pela exequente), o mesmo foi entregue a D.;
F) Em 14Fev89, a exequente enviou à executada E., Lda., carta registada com aviso de recepção, na qual lhe concedeu o prazo até 15Mar89 para entrega do posto de abastecimento de combustíveis indicado em A), que a executada se encontrava a explorar. Esta recusou-se a entregar o posto;
G) A exequente pediu aos executados herdeiros de D. que lhe entregassem o posto de abastecimento indicado em A;
H) D. e, posteriormente, os seus herdeiros têm ocupado o posto de abastecimento indicado em A) há mais de vinte anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, fruindo todas as suas utilidades, nele colocando óleo e outros derivados de petróleo, bem como pequenos acessórios para automóveis, que aí comercializam.
(...)
Já vimos acima as concretas questões que o aqui recorrente levantou.
(...)
c) Nesta terceira questão defendem as recorrentes que o facto constante da aludida alínea G) não deve ser tomado em conta por não haver sido alegado pelo requerente da execução da execução e nem pelos embargantes.
Segundo o art. 664º, o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art. 264º.
Tal como refere o Conselheiro Lopes do Rego, nos seus “Comentários ao Cód. de Proc. Civil”, I vol. da 2ª ed., a pág. 555, o princípio dispositivo deve ceder perante o princípio da oficialidade ou do inquisitório no tocante aos factos instrumentais que resultem da instrução ou discussão da causa, os quais podem ser tomados oficiosamente em consideração quando consubstanciados em documentos que o tribunal haja requisitado e através dos quais seja possível chegar à prova dos factos principais controvertidos.
E acrescenta o acórdão deste Supremo de 13-05-1997, in BMJ 467º-507, ali citado que as afirmações contidas nos documentos juntos com os articulados, na medida em que podem completar as alegações neles contidas, devem, logicamente, ser consideradas como compreendidas nesses mesmos articulados.
Factos instrumentais são os que se destinam “ a realizar prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não urna função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa”- obra citada de Lopes do Rego, pág. 252.
Daí que tendo o requerimento executivo alegado a sentença condenatória proferida na apensa acção declarativa, o tribunal é livre de considerar os factos dados por provados na mesma sentença, mesmo que tais factos não hajam sido expressamente alegados no mesmo requerimento executivo.
Por isso, o acórdão recorrido não violou o princípio do dispositivo constante do citado art. 664º, com a ressalva da previsão do art. 264º.
Improcede, desta forma, mais este fundamento do recurso.
d) Nesta quarta questão, as recorrentes defendem que o título executivo que serve fundamento à presente execução: a sentença condenatória proferida na acção declarativa apensa, apenas as obrigava no tocante ao reconhecimento da propriedade do imóvel reivindicado.
Atento o acima apontado, esta pretensão foi já decidida com trânsito em julgado na presente acção e, por isso, não pode aqui ser reapreciada, atento o disposto nos arts. 671º e segs.
Como fundamento desta pretensão as recorrentes repisam o argumento consistente em não serem elas quem detinham o posto de abastecimento, cuja não entrega tempestiva à exequente justificou a condenação na indemnização aqui exequenda, alegando que quem tinha a detenção daquele imóvel era a sociedade E., Lda.
Tal como refere o douto acórdão recorrido, esta circunstância devia ter sido alegado aquando da citação das recorrentes na acção declarativa, após a admissão do chamamento, o que não foi efectuado.
Porém do facto dado por provado sob a alínea H) acima transcrita resulta o contrário do facto agora apontado pelas recorrentes como fundamento desta pretensão.
Desta forma tendo sido proferida a sentença condenatória, e tendo em conta o que foi decidido no despacho saneador confirmado na decisão do respectivo agravo -, as recorrentes estão obrigadas em relação à condenação proferida naquela sentença, nomeadamente, no tocante ao pagamento da indemnização à exequente.
Soçobra, assim, mais este fundamento do recurso.
e) Aqui as recorrentes defendem que a sua responsabilização no pedido exequente constitui um abuso de direito, nomeadamente na modalidade “venire contra factum proprium”.
O abuso de direito é um instituto jurídico previsto no art. 334º do Cód. Civil.
Segundo este preceito, é ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim social ou económico.
Trata-se de existência de um direito substantivo exercido com manifesto excesso em relação aos apontados limites que proíbem essencialmente a utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de interesses exorbitantes do fim que lhe inere.
O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respectivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos.
Por seu lado, os bons costumes, grosso modo, consistem no conjunto de regras de comportamento relacional, acolhidas pelo direito, varáveis no tempo e, por isso, mutáveis conforme as concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade de referência em determinada unidade de tempo.
Já agir segundo a boa fé traduz-se na observância das “exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos”- A. Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 96.
Como fundamento do alegado abuso de direito, as recorrentes alegam dois argumentos:
- Por um lado referem que obrigar as recorrentes ao pagamento aqui em causa constitui uma profunda injustiça, por a indemnização haver sido provocada por conduta de outra entidade à qual são estranhas (a sociedade E., Lda);
- Por outro lado, alegam aquelas que há uma desproporção entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.
Ora compulsados os factos dados por provados pelas instâncias não resulta a confirmação daqueles fundamentos apontados pelas recorrentes.
E que resulta daqueles que a indemnização em causa se deve à não entrega de um imóvel à exequente desde 1989 até à efectiva entrega e, ainda ao facto de esse imóvel se encontrar na detenção e fruição, primeiro de D., e posteriormente dos seus herdeiros, entre os quais se contam as recorrentes e herdeiros esses a quem a exequente pediu a referida entrega.
Por isso não resulta apurado que a causa da indemnização seja devida à conduta da referida sociedade e não a conduta das recorrentes.
De qualquer modo se era essa a situação de facto, deveriam as recorrentes alegar tal, aquando da citação para a acção declarativa, nos termos do art. 358º, nº 3 do C.P.Civil, na redacção anterior à reforma de 1995-1996, e então seria a sua situação apreciada, nos termos do art. 359º do mesmo diploma legal.
Em face desta alegação a acção seria decidida de acordo com a lei e nomeadamente, de acordo com os ónus de prova respectivos.
E é isto que se tem de admitir ter acontecido, na acção declarativa, atentas as normas que regem o trânsito em julgado.
Por outro lado, sendo o objecto da indemnização a reparação da exequente pela privação da detenção e fruição de imóvel, esta tem direito a um valor igual ou correspondente à mesma privação, pelo que a indemnização é calculada nos termos do art. 562º do Cód. Civil. Assim não pode ser considerada desproporcional aquela indemnização, salvo se for erradamente calculada, o que não resulta da factualidade apurada.
Além disso, estando as recorrentes obrigadas a reparar aquele dano não se apura haver uma desproporção entre o sacrifício que tal obrigação constitui para aquelas, em relação ao beneficio que a exequente dela aufere, por se não saber, desde logo, qual o beneficio concreto que tiveram na detenção ilícita do imóvel referido – o que permitiria aferir da gravidade desse sacrifício.
Por último acrescente-se que a circunstância de no caso poderem, eventualmente, as recorrentes não haverem retirado benefícios concretos da detenção do imóvel, não obsta a que tenham de reparar o dano sofrido pela exequente independentemente desse efectivo beneficio.
Basta lembrar a situação de um fiador ou outro garante que pode ser obrigado a pagar obrigação alheia sem que tenha auferido qualquer benefício com o negócio em causa, para concluir pela desnecessária proporção entre os sacrifícios impostos e as vantagens do titular.
Em conclusão, diremos que dos factos provados não resulta qualquer violação dos princípios de boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico acima elencados para fundamentar a utilização aqui do instituto do abuso de direito.
Improcede, desta forma, mais este fundamento do recurso.
[...]».
Conforme resulta do excerto do acórdão recorrido, acabado de transcrever, a obrigação de indemnização que se pretende executar à custa do património da recorrente não resulta de qualquer actuação ilícita danosa levada a cabo exclusivamente por terceiros.
No caso concreto – e sendo certo que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a bondade da actuação do tribunal a quo no que respeita à interpretação e aplicação do direito infraconstitucional –, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a recorrente podia ser executada relativamente à obrigação de pagamento da indemnização, não só porque a sentença condenatória proferida na acção declarativa constituía caso julgado e título executivo relativamente ao interveniente principal provocado – ora Recorrente – nos termos do artigos 359.º, n.º 1, e 57.º, do Código de Processo Civil (na redacção imediatamente anterior à resultante da Reforma de 1995-1996), mas também porque se encontrava assente no plano dos factos que a Recorrente detinha e usufruía o posto de abastecimento de combustíveis cuja falta de entrega tempestiva à Exequente determinou a emergência de lucros cessantes e a consequente obrigação de indemnizar.
Não é possível, pois, dizer que este acórdão sustentou uma interpretação dos artigos 359.º e 57º, do Código de Processo Civil, com o sentido que tais preceitos implicam a legitimidade substantiva para se ser executado e responsabilizado em primeira via pelos eventuais prejuízos, que terceira pessoa, tenha causado a outrem.
Sendo manifesto que a interpretação normativa configurada pela Recorrente – relativa à aplicação dos artigos 359.º, n.º 1, e 57.º, do Código de Processo Civil (na redacção imediatamente anterior à resultante da Reforma de 1995-1996) – não corresponde ao fundamento jurídico determinante (ratio decidendi) da solução dada ao pleito pelo Supremo Tribunal de Justiça, o presente recurso de constitucionalidade, atenta a sua instrumentalidade, não seria dotado de qualquer repercussão útil no processo concreto de que emerge, isto é, o tribunal a quo nunca seria confrontado com a obrigatoriedade de reformar o sentido do seu julgamento.
Verificada a falta de aplicação da referida interpretação normativa, importa concluir que não estão preenchidos todos os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previstos na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, devendo, assim, ser proferida decisão sumária de não conhecimento, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
A Recorrente reclamou desta decisão, com a seguinte argumentação:
“O MM.º Juiz Conselheiro/Relator proferiu a fls. dos autos, douta decisão onde decidiu pelo não conhecimento do Recurso por parte deste Tribunal Superior.
O fundamento em que assentou a decisão de rejeição do recurso do MM.º Senhor Juiz relator, foi o não preenchimento de todos os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade,
Entendendo o MM.º Juiz Relator que o acórdão recorrido não “utilizou” o fundamento/interpretação jurídico em causa, na solução dada ao litígio “sub judice”.
Ora, a questão discutida prende-se com a invocação do vício de inconstitucionalidade “Da norma extraída pelas instancias, designadamente pelo Tribunal “ a quo” – tal como anteriormente havia sucedido no tribunal da relação e antes ainda pelo tribunal de 1.ª instancia – nos termos da qual e da conjugação do disposto no art. 359º do Cod. Proc. Civil na sua anterior versão, com o art.º 57º do Cod. Proc. Civil – o que vem sendo generalizada nas instâncias – e em casos como os descritos nos autos, tais normativos implicam a legitimidade substantiva das Embargantes/recorrentes para serem executadas e responsabilizadas em primeira via pelos eventuais prejuízos, que terceira pessoa/entidade, terá causado à exequente (…)” é inconstitucional,
Por violação, entre outros, do princípio Constitucional da Proporcionalidade, da Confiança e ainda da Protecção à Propriedade Privada das mesmas, consagrados nos arts. 2º, 18 n.º 2, 20º e 62º n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa).
A Recorrente arguiu a inconstitucionalidade da citada norma interpretativa, pois foi surpreendida com as interpretações normativas dadas sucessivamente pelas instâncias no que tange aos atacados arts. 57º e 359º do C.P.Civil, - ou ao menos da norma que se extraiu nas interpretações dadas àqueles dispositivos legais - .
Refere o MM.º Juiz Relator que tal “questão” não foi o motivo/fundamento para a decisão proferido pelo acórdão recorrido.
No entanto, e salvo o devido e merecidíssimo respeito, que é muito, não pode a recorrente concordar com tal douto entendimento.
Desde logo porque tal “questão”, que não foi devidamente criticada/analisada no Acórdão recorrido, na medida em que nessa concreta questão, o Acórdão recorrido declara que “(…) as recorrentes não podem aqui ver reapreciada aquela questão da sua responsabilização na obrigação constante da sentença exequenda aqui em causa”.
Acabando por “impor” a referida interpretação adoptada pelas instâncias, precisamente no sentido de que as atacadas normas legais determinam legitimidade da Recorrente para ser executada e responsabilizada – “(…) o Supremo Tribunal entendeu que a recorrente podia ser executada relativamente à obrigação de pagamento da indemnização, não só porque a sentença condenatória proferida na acção declarativa constitui caso julgado e titulo executivo relativamente ao interveniente principal provocado (…)”.
Ora, é esse núcleo normativo que, no entender das instâncias, permite fazer recair sobre a recorrente/reclamante a obrigação de também ela pagar indemnização respeitante ao alegado ressarcimento de lucros cessantes em razão de uma terceira entidade – sociedade comercial “E., Lda.” – não ter entregue quando devia um determinado estabelecimento comercial que sozinha – e pelo menos sem qualquer intervenção dos que não eram sócios nem gerentes da mesma - que detinha e explorava como muito bem lhe convinha.
Eventualmente nas instâncias, de crescendo em crescendo, foi-se “alargando” a factualidade por forma a justificar-se a inclusão da reclamante e dos demais intervenientes que não eram sócios da dita sociedade debaixo da subsunção legal que o atacado normativo implica.
Mas como resulta dos autos, foi esse normativo extraído da aplicação dos arts. 359º nº 1 e 57º do CPC na redacção imediatamente anterior à resultante da reforma de 1995/96 que permitiu que a Recorrente, bem como os restantes co-herdeiros, fossem condenados, no que, quando muito, incumbiria indemnizar por parte da dita sociedade.
A solução propugnada pela decisão recorrida, quer pelas instâncias, de declarar a Recorrente – bem como os restantes co-herdeiros -, parte legítima na execução, quando manifestamente a recorrente/reclamante nunca aceitou ser fiadora ou qualquer outra figura semelhante dessa mesma sociedade, é tão violentamente injusta e cega em relação à realidade dos factos, que não pode passa incólume no crivo da inconstitucionalidade o pertinente normativo supra atacado.
A Recorrente nas Alegações, quer de Agravo, quer de Apelação, sempre invocou a questão da constitucionalidade subjacente à norma criada e resultante da interpretação do disposto nos citados artigos 359º nº 1 e 57º do CPC, que nas decisões recorridas vinha sido feita pelas instâncias, designadamente no que tange à violação dos também ali aludidos Princípios Constitucionais da “Proporcionalidade”, da Confiança e ainda da Protecção à Propriedade Privada das mesmas, consagrados nos arts. 2º, 18 n.º 2, 20ºe 62º n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa).
Pretender estender-lhe o manto do caso julgado no que a essa questão concerne e obriga-la ao pagamento da indemnização resultante de prejuízos causados por outros, é uma a consequência excessiva, desproporcional e materialmente tão injusta quanto inadmissível para a nossa consciência jurídica, fundada na ideia do Estado de Direito Democrático.
Tal pretendida consequência, alegadamente retirada do disposto nos arts. 359º do CPC, na sua versão anterior, e do disposto no actual art. 57º do CPC, viola frontalmente o disposto nos arts. 62º nº 1 da Constituição - na medida em que se permite que o património da mesma seja apreendido e sirva para o pagamento de dívidas de terceira pessoa -, lido conjugadamente com o principio da proporcionalidade e, até com o principio da confiança, que se extraem quer do art. 2º, quer do art. 18º nº 2, quer até do próprio art. 20º da Lei Constitucional.
Os ditames contidos nos mesmos têm de ser apreciados à luz do princípio da ponderação de interesses subjacentes à ideia do Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2º da Constituição.
O Principio do Estado de Direito Democrático implica uma ideia de respeito pela dignidade da pessoa humana e de protecção da confiança, no sentido de segurança, certeza e previsibilidade da ordem jurídica.
Tudo para dizer que a norma extraída e o correspondente normativo criado pelo Tribunal “a quo” da conjugação do disposto no art. 359º do Cod. Proc. Civil na sua anterior versão com o art. 57º do Cod. Proc. Civil, na interpretação de que, em caso como o supra descrito implica a legitimidade da Recorrente para ser executados pelos eventuais prejuízos, que terceira pessoa e entidade, terá causado à exequente, padece de Inconstitucionalidade por violação dos Princípios da Proporcionalidade, da Confiança e ainda da protecção à propriedade privada destes, consagrados no art. 2º, art. 18º nº 2, art. 20º e art. 62º nº 1 da Constituição.
Sendo certo que, é de todo fundamental e imprescindível a apreciação da constitucionalidade de tal norma interpretativa nos presentes autos.
Na exacta medida em que a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tem, em regra, uma eficácia retroactiva.
Tornando-se indispensável para eliminar os efeitos produzidos pela norma questionada durante o tempo em vigorou e essa indispensabilidade for evidente.
Os efeitos de invalidação da norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral retroagem ao momento da entrada em vigor da norma declarada inconstitucional - artº 282º nº 1 CRP.
Além da invalidade e cessação de vigência ab initio, a eficácia retroactiva da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral implica a proibição de aplicação da norma às situações e relações jurídicas pendentes ou em aberto e desenvolvidas ao amparo da sua eficácia jurídica, ou seja, com ressalva das situações definitivamente consolidadas.
Daí que, salvo o devido e muito merecido respeito, verificam-se os pressupostos bastantes e suficientes à interposição do Recurso - ao qual tem inalienável direito - para este colendo Tribunal - arts. 70º n.º 1 al. b) e g), 72º n.º 2 e 75º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro na sua actual redacção.
Por tudo isto, e sendo de um ou de outro modo, entende a Recorrente que a douta decisão reclamada deverá ser reformada e, ou, alterada por forma a que seja determinado a admissão do recurso interposto para este Tribunal Constitucional nos termos do disposto no art. 76º, 77º e 78 da dita Lei nº 28/82 de 15 de Novembro.
A recorrida respondeu, sustentando o indeferimento da reclamação.
Fundamentação
No âmbito da fiscalização sucessiva concreta, a necessidade de que a interpretação normativa, cuja constitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize, integre a ratio decidendi do acórdão recorrido é um requisito essencial ao conhecimento do mérito do recurso interposto para este Tribunal.
Não se verificando essa condição, o recurso deixa de ter qualquer efeito útil, uma vez que a eventual pronúncia de inconstitucionalidade da interpretação normativa sindicada não tem qualquer efeito na decisão recorrida, dado que ela não determinou o sentido dessa decisão.
No presente caso, a recorrente pretendia que o Tribunal apurasse da constitucionalidade de uma interpretação dos artigos 359.º e 57.º, do Código de Processo Civil, com o sentido que tais preceitos implicam a legitimidade substantiva para se ser executado e responsabilizado em primeira via pelos eventuais prejuízos que terceira pessoa tenha causado a outrem.
Ora, da leitura da decisão recorrida, constata-se que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a recorrente podia ser executada relativamente à obrigação de pagamento da indemnização, não só porque a sentença condenatória proferida na acção declarativa constituía caso julgado e título executivo relativamente ao interveniente principal provocado – a ora recorrente – nos termos dos referidos artigos 359.º, n.º 1, e 57.º, do Código de Processo Civil, mas também porque se encontrava assente no plano dos factos que a recorrente detinha e usufruía o posto de abastecimento de combustíveis cuja falta de entrega tempestiva à exequente determinou a emergência de lucros cessantes e a consequente obrigação de indemnizar.
As razões que a decisão recorrida encontrou para sustentar a legitimidade passiva da recorrente na execução não coincidem, pois, com o critério normativo cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada, pelo que não é possível conhecer do mérito do recurso interposto.
Assim sendo, deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida por A..
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma)
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.