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Processo n.º 603/10
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Veio o arguido A., notificado do acórdão do Tribunal de 1.ª instância que o condenou, pela prática, em concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência grosseira e de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 137.º, nºs. 1 e 2, e 292.º do CP, respectivamente, na pena única de três anos e três meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de um ano, dele interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
Por acórdão de 10 de Fevereiro de 2010, decidiu o Tribunal da Relação do Porto (TRP) negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando, em consequência, o acórdão recorrido.
O arguido, inconformado, dele interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da «constitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal da Relação e pela 1.ª instância, quanto ao disposto no artigo 50.º do Código Penal».
O Tribunal recorrido, por despacho de 28 de Abril de 2010, rejeitou, contudo, o recurso de constitucionalidade, por inobservância, pelo recorrente, do ónus de suscitação imposto pelas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC.
É contra este último despacho que o arguido deduz a presente reclamação, invocando, para tanto, em síntese, que, contrariamente ao que julgou o Tribunal recorrido, suscitou na motivação do recurso interposto da decisão da 1.ª instância (nomeadamente, nos seus pontos 5.º, 12.º e 13.º), ainda que de forma não expressa, a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, o que, aliás, nem lhe seria exigível por se tratar de decisão cujo sentido, por inesperadamente contrário à jurisprudência do próprio Tribunal reclamado, não poderia razoavelmente prever.
O Ministério Público, em resposta, pugna pelo indeferimento da reclamação, porquanto, considera, o recurso não recai sobre qualquer questão de inconstitucionalidade normativa nem foi suscitada, de forma atempada e processualmente adequada, questão daquela natureza, ónus que recaía sobre o recorrente, por dele não estar dispensado, atenta a natureza não «inesperada, insólita ou imprevisível» da decisão recorrida.
Cumpre apreciar e decidir.
2. Delimita o recorrente o objecto de recurso de constitucionalidade, que veio a ser rejeitado, por referência a dada «interpretação» do artigo 50.º do Código Penal (CP), que não especifica claramente mas assentará nas considerações que, a seu propósito, o Tribunal recorrido teceu e se encontram transcritas no ponto 8. do respectivo requerimento de interposição de recurso, com o seguinte teor:
«Daí que, muitas vezes, e sobrepondo-se à ressocialização, seja necessária a execução de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático.
Por outro lado e muito embora o regime de suspensão da pena de prisão não seja graduado e condicionado materialmente em função do respectivo número de anos, não podemos deixar de atender que o alargamento de 3 para 5 anos de prisão do pressuposto formal que possibilita essa suspensão, faz realçar, nesse excedente, a necessidade de uma ponderação mais criteriosa dos pressupostos materiais que regulam a sua aplicação, mormente quanto às circunstâncias em que ocorreram a conduta criminosa e a protecção adequada dos bens jurídicos violados (Ac. do S.T.J. de 2008/Abril/03) (recurso n.º 4827/07-5).
E isto porque a suspensão generalizada e tida como “normal” ou “corrente” das penas de prisão de amplitude elevada, prejudica grandemente, por motivos óbvios de afrouxamento da reacção penal executiva, a eficácia preventiva do direito penal.
Para o efeito, no caso concreto, teremos que ponderar nos índices e nas graves consequências decorrentes dos acidentes rodoviários».
Ora, não se descortina no acórdão recorrido, designadamente no transcrito excerto, a adopção de qualquer interpretação, de alcance geral e abstracto, reportada à norma do artigo 50.º do CP, susceptível de constituir objecto idóneo de fiscalização da constitucionalidade.
Com efeito, o que o Tribunal recorrido se limitou a sustentar, à luz dos critérios consagrados no citado normativo legal – que previamente densificou, fazendo, designadamente, apelo à jurisprudência produzida sobre a matéria –, foi que, atentas as características particulares do caso sub judice, se impunha a aplicação de uma pena de prisão efectiva.
E é, na verdade, contra o modo como o Tribunal recorrido valorou as circunstâncias particulares do caso e entendeu, face a estas, que não era de suspender a execução da pena de prisão aplicada, que o arguido, ora recorrente, se insurge, apelando, na linha do voto de vencido de um dos membros do colectivo de juízes que apreciou o recurso, para «todo um conjunto de circunstâncias e factos, designadamente o da ausência de antecedentes criminais, o arrependimento evidenciado de forma séria e isenta em audiência de julgamento, sua inserção familiar e social, o seu percurso de vida, o seu passado sem mácula», sob pena de «manifesta violação flagrante da estrutura constitucional da República Portuguesa na qual se encontra estruturado todo o modelo do processo penal português, entre outros, o artigo 32.º [da CRP]».
Não compete, contudo, a este Tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade de decisões judiciais, no modo como estas entenderam valorar os factos e enquadrá-los juridicamente, mas tão-só de normas jurídicas ou, no máximo, de interpretações normativas que, nelas fundadas, assumam traços de generalidade e abstracção que as tornam potencialmente aplicáveis a uma generalidade de situações idênticas.
E o objecto do recurso, tal como se encontra difusamente delimitado, não assume, pelas razões enunciadas, tais características de normatividade.
Por outro lado, e como considerou o Tribunal recorrido, também não foi suscitada em tempo (antes da prolação da decisão recorrida) e de forma adequada (clara e perceptível) qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que o Tribunal recorrido estivesse obrigado a conhecer, como imposto, como condição de admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade, pelas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC.
Com efeito, o recorrente, nas suas alegações de recurso, estruturou a sua argumentação, no que concerne à reclamada suspensão da execução da pena, na demonstração de que, contrariamente ao decidido pelo Tribunal de 1.ª instância, a ameaça da pena de prisão se revelava, no caso, suficiente para «acautelar as finalidades do direito penal, nomeadamente a função socializadora e de prevenção especial», sem porém, questionar, em qualquer momento, expressa ou implicitamente, a conformidade constitucional de qualquer norma jurídica, mormente a consagrada no ora sindicado artigo 50.º do CP, ou interpretação normativa dela extraída.
É que não releva como tal a mera afirmação de que foram violados, pela decisão recorrida, normas ou princípios constitucionais, como a contida no ponto 23 das conclusões do recurso, e não se vê nos destacados pontos das alegações de recurso (5.º, 12.º e 13.º) a invocação, mesmo não expressa, de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como pretende o reclamante.
E, ao contrário do que julga, não estava dispensado de um tal ónus de suscitação.
De facto, tendo o recorrente precisamente impugnado, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, a decisão de o condenar numa pena de prisão efectiva, considerando estarem verificados os pressupostos de aplicação da norma do artigo 50.º do CP, era previsível que o Tribunal recorrido a viesse a aplicar.
Por outro lado, e pelas razões atrás expendidas, não foi, em rigor, adoptada, em relação ao mesmo normativo legal, qualquer interpretação normativa, de alcance geral e abstracto, e, muito menos, de cariz insólito ou imprevisível, que objectivamente legitime a surpresa com que o recorrente diz ter recebido a decisão recorrida.
Na verdade, é irrelevante, para o efeito, que a jurisprudência do Tribunal recorrido, anterior à prolação do acórdão em causa, tenha determinado a suspensão da execução da pena de prisão em situações semelhantes, como alegado, pois que, mesmo a comprovar-se tal facto, o reclamante não alega nem demonstra que na origem de uma tal divergência esteja a adopção, pelo acórdão recorrido, de uma específica interpretação normativa do preceito em causa que tivesse inesperadamente invertido interpretação jurisprudencial antes perfilhada, de forma constante e uniforme, pelo mesmo Tribunal, e não apenas, como é expectável e decorre do próprio acórdão recorrido, uma diferente valoração dos factos, à luz do direito aplicável, não sindicável nesta sede.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.