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Processo n.º 139/10
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, A. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de tal Relação, que, julgando improcedente o recurso por si interposto, na qualidade de assistente, relativamente à decisão absolutória proferida em 1.ª Instância, confirmou tal absolvição.
O recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
O recorrente fixou-lhe o seguinte objecto: “apreciação da (in)constitucionalidade da aplicação do artigo 157º (imunidade parlamentar) da Constituição da República Portuguesa, bem como dos artigos 22º e 23º, n.º 1 do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (Lei nº 13/91, de 5/6 e alteração introduzida pela Lei nº 130/99, de 21/08), ao abrigo dos quais o Acórdão recorrido considerou que o Arguido cometeu um crime de difamação qualificado e agravado, não respondendo, porém, por ele civil e criminalmente, em virtude da imunidade parlamentar de que goza.”
O recurso foi admitido no tribunal a quo.
2. No Tribunal Constitucional, porém, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“4. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o poder de sindicância do Tribunal Constitucional respeita apenas à inconstitucionalidade normativa e não à inconstitucionalidade das decisões judiciais em si mesmas, também não lhe competindo controlar a correcção da concreta interpretação acolhida pela decisão recorrida (v.g., Acórdão n.º 355/2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). O objecto do controlo deverá ser um critério normativo, dotado de generalidade e abstracção, que seja susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Escreveu-se sobre a questão no Acórdão n.º 551/2001:
«ao Tribunal Constitucional compete julgar, não o acto decisório recorrido em si mesmo considerado, envolvendo a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto, ou tão pouco o mesmo, visto como resultado da conjugação da matéria de facto ao critério normativo utilizado, mas sim a constitucionalidade mesma desse critério normativo. A esta luz, e como também se tem ponderado na jurisprudência deste Tribunal, não é sindicável por este meio a aplicação a uma dada situação concreta de um critério oriundo da subsunção do caso concreto à norma, operado pelo aplicador do direito (cfr., v.g., o acórdão nº 82/01, inédito: é a norma – ou a interpretação normativa – aplicada na decisão que compete julgar, aferindo-se a constitucionalidade do critério normativo e não o acto de julgamento, em si, ou a correspectiva decisão).
O que vale dizer que não importa cuidar do acerto lógico-jurídico da subsunção do caso sub judice à norma. O que está em causa são os critérios jurídicos autonomizados, genérica e abstractamente referidos pelo julgador para decidir quanto ao acerto constitucional de uma certa norma ou dimensão normativa do direito infra-constitucional, face ao texto constitucional».
Para que se esteja perante uma norma ou interpretação normativa, deve ser possível identificar na decisão recorrida a adopção de um critério normativo, com carácter de generalidade e abstracção, que possa ser aplicado a outras situações, critério a que depois se subsume o caso concreto. Pelo contrário, não estará em causa uma norma ou interpretação normativa quando estejamos perante a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às singularidades do caso concreto.
5. No caso em apreço o recorrente indica no requerimento um conjunto de artigos da Constituição da República Portuguesa (os artigos 1.º, 13.º, 20.º, 25.º, 26.º, 117.º e 157.º), bem como do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (os artigos 22.º e 23.º, n.º 1) e de princípios (adequação, necessidade e proporcionalidade), que considera haverem sido violados e que, assim, seriam apresentados como parâmetro de controlo.
Contudo, não indica uma norma infraconstitucional ou sua dimensão interpretativa à qual pretenda assacar a violação destes dispositivos. Refere, pelo contrário, que deseja ver apreciada «a (in)constitucionalidade da aplicação do artigo 157.º» da CRP (negrito nosso) e dos já mencionados artigos do Estatuto, que teriam sido aplicados pelo tribunal recorrido ao caso concreto, com a consequência de este haver considerado «que o Arguido cometeu um crime de difamação qualificado e agravado, não respondendo, porém, por ele civil e criminalmente, em virtude da imunidade parlamentar de que goza». Isto é, o requerente não suscita uma questão de constitucionalidade normativa, antes recorrendo de uma decisão judicial a que o tribunal chegou por aplicação das normas relativas à imunidade parlamentar. Não questiona normas ou dimensões normativas que em seu entender infrinjam a Constituição (ou, sequer o Estatuto), mas antes a concreta decisão do tribunal que, considerando que o Arguido cometeu um crime de difamação qualificado e agravado, não o fez responder por ele civil e criminalmente.
6. Tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, a sua admissibilidade dependeria igualmente, como se referiu, de a questão de constitucionalidade normativa ter sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC).
Mas resulta dos autos que o recorrente não suscitara durante o processo qualquer questão de constitucionalidade normativa (de norma ou de sua dimensão interpretativa). Ou seja, não só não foi questionada a constitucionalidade de uma norma ou dimensão normativa no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, como, mesmo que esta questão houvesse sido suscitada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, sempre estaria já por cumprir o ónus da suscitação prévia da inconstitucionalidade da norma chamada a dirimir a causa.
Apesar de no texto das conclusões 7 a 12 serem feitas pelo requerente referências a violações da CRP, estas, nos termos alegados pelo requerente, são assacadas à decisão judicial em si mesma (em especial as conclusões 7, 10, 11 e 12), e não a uma norma ou interpretação normativa que houvesse sido ratio decidendi da causa.
7. Note-se, por outro lado, que também pelo requerente são invocados como parâmetro de controlo normas do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, o que remete para uma questão de ilegalidade e não já de constitucionalidade. Assim, quanto a este aspecto, o recurso da alínea b) não poderia ser o meio processual adequado para conhecer situações em que se pretendesse ver apreciada a aplicação de uma norma que padecesse de ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma. De todo o modo, apesar de os artigos 22.º e 23.º, n.º 1 do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira serem apresentados como parâmetro violado, também aqui não é uma norma que é indicada como deles sendo violadora, mas a decisão do tribunal de que se recorre. O que é reforçado pelo facto de no pedido parte das normas que servem de parâmetro de controlo estarem, simultaneamente, ligadas (mas não o sendo) ao objecto do controlo, que é, afinal, a decisão judicial que resulta da aplicação dessas mesmas normas ao caso concreto.
Razões mais do que suficientes para se decidir não conhecer do recurso.”
É desta Decisão sumária que o recorrente reclama.
3. Na reclamação apresentada, refere o reclamante que a pretensão deduzida no recurso interposto para o Tribunal Constitucional é a “apreciação da inconstitucionalidade do artigo 157.º [imunidade parlamentar] da Constituição da República Portuguesa, bem como dos artigos 22 e 23º, nº 1 do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (Lei nº 13/91, de 5/6 e alteração introduzida pela Lei nº 130/99, de 21/08) quando interpretados no sentido de desresponsabilizar criminal e civilmente os deputados sempre que da sua actuação resulte supressão ou mesmo compressão dos direitos do cidadão comum à sua dignidade, bom nome e reputação, na medida em que o cidadão comum [tal como o assistente no caso concreto] está impedido de reagir às ofensas que lhe são dirigidas por um deputado, que goza, contrariamente àquele [cidadão comum] de imunidade parlamentar.”
Mais esclarece que o objectivo do mesmo recurso é a “interpretação e aplicação correcta das supra citadas disposições legais”, a “adopção de um critério normativo, com carácter de generalidade e abstracção, que possa ser aplicado a outras situações”.
Após, o reclamante expõe a sua interpretação do objecto de recurso como questão de constitucionalidade normativa, defendendo que suscitou adequadamente tal questão perante o tribunal a quo.
Acrescenta que, ainda que se entendesse que o requerimento de interposição de recurso não cumpre os requisitos do artigo 75.º-A da LTC, a solução não seria a da sua rejeição, por inadmissibilidade, mas a prolação de convite ao aperfeiçoamento.
Nesta consonância, conclui que, não lhe tendo sido dada a possibilidade de aperfeiçoar o seu requerimento de interposição de recurso, se verifica uma nulidade, que expressamente deixa arguida, mais referindo que interpretação diversa será inconstitucional, por violação dos princípios de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consignados no artigo 20.º da CRP.
4. O Magistrado do Ministério Público, notificado da presente reclamação, veio pugnar pelo indeferimento da mesma, manifestando a sua concordância com os fundamentos da decisão sumária reclamada.
Refere, na sua resposta, que o que verdadeiramente o reclamante questiona, no seu recurso, é que, no caso concreto, o arguido pudesse beneficiar de imunidade parlamentar, não logrando delimitar uma verdadeira questão normativa.
Coloca inclusive a hipótese de o reclamante discordar da existência de imunidades parlamentares, por a sua consagração violar outros princípios constitucionais, salientando que, nesse caso, essa questão de inconstitucionalidade teria de ser inequivocamente assumida e suscitada de forma clara e inequívoca, o que não sucede na presente situação.
II – Fundamentos
5. Como resulta do teor da reclamação e do seu confronto com os fundamentos exarados na decisão sumária reclamada, o reclamante não aduziu qualquer argumento que abalasse a correcção do juízo efectuado.
Ao contrário do que refere o reclamante, a formulação do objecto do recurso, plasmada no requerimento de interposição respectivo, é clara quanto à natureza da sindicância pretendida, não deixando dúvidas quanto à ausência de uma verdadeira dimensão normativa.
Na verdade, quando o reclamante refere pretender ver apreciada a inconstitucionalidade da aplicação do artigo 157.º da Constituição da República Portuguesa, bem como dos artigos 22.º e 23.º, n.º 1 do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (Lei n.º 13/91, de 5/6 e alteração introduzida pela Lei n.º 130/99, de 21/08) – ao abrigo dos quais o acórdão recorrido considerou que o arguido cometeu um crime de difamação qualificado e agravado, não respondendo, porém, por ele, civil e criminalmente, em virtude da imunidade parlamentar de que goza - inequivocamente define, como objecto de recurso, a própria decisão jurisdicional, enquanto concreto acto de julgamento, compreendendo as concretas operações subsuntivas realizadas pelo tribunal, o que, de resto, resulta manifesto da expressão “inconstitucionalidade da aplicação” dos preceitos identificados.
Reitera-se, aliás – na sequência da fundamentação da decisão reclamada - que, ainda que o reclamante lograsse formular, no requerimento de interposição de recurso, uma verdadeira questão de constitucionalidade de norma ou interpretação normativa, fazendo incidir o objecto de recurso numa regra ou critério normativo - vocacionado para uma aplicação genérica – utilizado como ratio decidendi, mesmo assim a sua pretensão soçobraria, face à omissão de suscitação prévia de uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, junto do tribunal a quo.
De facto, percorrida a argumentação do recorrente na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação, não se vislumbra a suscitação de qualquer questão de constitucionalidade verdadeiramente normativa, sendo manifesto, ao invés, que o juízo de inconstitucionalidade é reportado à própria decisão, como se expõe, de forma clara e concludente, na decisão reclamada.
Não tendo o reclamante cumprido, oportunamente, o ónus de suscitação de uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, perante o tribunal a quo, ficou irremediavelmente perdida a possibilidade de vir interpor, com utilidade, recurso de constitucionalidade, porquanto o referido incumprimento é insuprível.
Dito de outra forma, se o reclamante não apresentou uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, de forma clara e perceptível, em momento anterior à prolação da decisão recorrida, não poderá vir ulteriormente – v.g. em sede de requerimento de interposição de recurso ou, por maioria de razão, em sede de reclamação – suprir essa omissão.
É essa insusceptibilidade de suprimento do requisito de suscitação prévia que torna inútil um ulterior convite ao aperfeiçoamento, que, obviamente, apenas poderia incidir sobre o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e não sobre peças processuais anteriores.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC, só tem sentido útil quando faltam apenas alguns requisitos formais do requerimento de interposição do recurso, carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam outros pressupostos de admissibilidade do recurso, insupríveis por essa via. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – deve o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional n.ºs 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Nestes termos, conclui-se que não foi omitido qualquer acto que pudesse influir no exame ou decisão da causa – artigo 201.º, n.º 1 do Código de Processo Civil – improcedendo, pois, a arguição de nulidade constante da reclamação.
Em face do exposto, reafirmando e dando por reproduzida toda a fundamentação constante da decisão reclamada, resta apenas concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do recurso e, em consequência, pelo indeferimento da reclamação da decisão sumária, proferida nestes autos a 7 de Setembro de 2010.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de Novembro de 2010.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.